Por cada estrela planetária há uma centena de jogadores anónimos para a maioria dos adeptos mas que representam muito uma pequena parte dos amantes do beautiful game. Jogadores que fintam as adversidades com o que têm e que dão o que não têm para deixar a sua marca no tempo. Gary Speed, esse incombustível herói de muitas tardes, era um desses mitos anónimos estranho para muitos, tão familiar para mim...
Não quero saber como Speed morreu. Basta-me saber como viveu, como jogou!
Ouço boatos e prefiro guardá-los no caixote, debaixo desses mais de 500 jogos que disputou na Premier League. O primeiro a lográ-lo antes de que o veteraníssimo David James lhe roubasse o recorde. Talvez o único que detinha. Como se a ele isso lhe importasse algo. Speed era a antítese do seu nome. Jogador calmo, pausado, um box-to-box profundamente vertical mas que sabia jogar com critério, que encontrava sempre o passe certo para resolver a tarde. Tinha a garra e força de qualquer galês, esse espírito de guerreiro que transportou ao longo dos seus 20 anos como futebolista profissional. Mas possuía igualmente uma inteligência de jogo que nunca foi muito comum nas ilhas britânicas, essa capacidade de ler e pensar o jogo parando o tempo e medindo o espaço. Sem ser um jogador dotado de uma grande técnica (como foi, por exemplo, Mathew Le Tissier) ou um de uma superlativa visão de jogo, encontrava sempre o tempo certo para aparecer.
Doi-me a ausência de Speed quando relembro as tardes que passamos juntos, separados por tantos kilómetros, unidos pelos raios que saiam da televisão em forma de imagem onde o redescobria de branco, azul e amarelo ao lado desse tridente histórico composto por David Batty, Gary McAllister e Gordon Strachtan. Juntos formaram o miolo do Leeds United de Howard Wilkinson, o mesmo Leeds que devolveu à glória e aos titulos uma cidade murcha desde os dias de Don Revie.
O mediatismo do triunfo foi todo para um superlativo Eric Cantona - que não suportava nem o técnico nem os colegas - mas o trabalho duro desse último ano da First Division, desse despedir de uma era, pertenceu todo a essa linha de quatro onde Batty defendia, McAllister dava o último passe, Strachan emprestava veterania e Speed, um jovem Speed, estava por todos os lados. Esse titulo foi o primeiro e também o último da sua carreira. E no entanto a sua vida, de bola nos pés, estava apenas a começar.
Quando essa equipa histórica do Leeds se desfez (até que chegou O´Leary e a sua promissora juventude) mudei-me com Speed para Goodison Park onde o seu talento foi confirmado e reforçado. Capitão ao segundo ano no histórico conjunto dos Toffees, o galês encarnou à perfeição o espírito combativo de Howard Kendell mas foi com o treinador que começaram as desavenças que, em 1998, o levariam a norte a juntar-se ao projecto quase megalómano do Newcastle de Kenny Dalglish. Depois da ressaca da era Keegan (com dois titulos perdidos perto do fim), o técnico escocês procurou alguém que tivesse a calma necessária para trazer estabilidade a um onze demasiado balançado para a frente. Mas com a saída de Kenny e a chegada de Gullit e o seu "sexy football", o papel de Speed em St Jame´s Park, onde era mais um operário no meio de uma constelação de egos, viu-se relegado para um injusto segundo plano que pautou toda a sua passagem pelo Tyneside.
Como sempre - e como sucedia nos seus dias com a camisola vermelha de Gales ao lado do flamante Ryan Giggs com quem combinou sempre tão bem, e tão sós estiveram - lutou, impôs-se, brilhou sem ser espectacular, foi visto e deixou-se ver com remates colocados de segunda linha, livres directos implacáveis e um pulmão inesgotável.
Quando a sua etapa em Newcastle chegou ao fim, nova viagem e lá fomos para Bolton, talvez a primeira equipa inglesa a entender o jogo continental como algo mais que uma pura excentricidade. Speed foi contratado pela experiência mas, sobretudo, pela calma que transmitia ao jogar e ao lado de Sam Allardyce. O seu impacto junto dos colegas e adeptos foi tal que a direcção o convidou como técnico interino quando o manager abandonou o Reebok Stadium. Um primeiro passo rumo aos bancos que durou pouco. A bola ainda rolava na sua mente com demasiada insistência e Speed preferiu voltar ao tapete verde do que a manter-se comodamente sentado à espera de ver os dias passar. Primeiro em Bolton e depois em Sheffield matou a fome, mas a idade (39 anos) e as dores de costas, fizeram com ele o mesmo que com outros grandes. Disse-lhe adeus mas mantive-o debaixo de olho em Brammall Lane e depois em Cardiff, onde tomou conta do destino de um histórico que desde os anos 50 não participava numa grande prova internacional. O seu trabalho como seleccionador galês foi, todos o sabemos, impecável. Pela primeira vez em mais de duas décadas, Gales baixou do número 50 do ranking FIFA e o sorteio para o Mundial do Brasil parecia levantar sustentadas esperanças de um feito histórico. Bellamy, Bale e Ramsey convidavam a isso mesmo. Speed mais.
Enquanto o mundo de futebol se dedica a homenagear, a aplaudir de pé um desses heróis esquecidos, um desses guerreiros inombráveis, eu lembro-me de Speed com a mesma clarividência com que me fui cruzando com ele. Aquele remate colocado frente ao Norwich. O golo de cabeça que desmontou a defesa do Newcastle. O tiro indefensável que deu longos pesadelos a Peter Schmeichel. Essas correrias sem fim, essas tardes de sol, essas noites de chuva, essa eterna lembrança. Os jogadores de futebol não morrem, apenas eternizam esses longos 90 minutos...