A vitória tem destas coisas. Um triunfo categórico nos números, complicado na forma, carimbou a passagem de Portugal para o seu quinto Campeonato da Europa consecutivo, um logro ao alcance apenas da verdadeira elite do futebol europeu. Mas nesse clima de euforia tão habitual a quem não está habituado a ganhar começam a distinguir-se os traços de arrogância que costumam ser maus companheiros de viagem. Portugal estará em Junho na Europa de Leste, mas não deixará de ser um convidado secundário numa festa com outros protagonistas.
O estádio da Luz não encheu mas foi suficiente. Para os bósnios pelo menos.
A equipa dos Balcãs não quis jogar os primeiros 90 minutos, recorrendo a tácticas tão legitimas como pré-histórica. Na hora e meia que passou no tapete verde impecavelmente cuidado do estádio onde Portugal já se habituou a resolver noites difíceis, não conseguiu. Os nervos, a combustão interna de Safet Susic e a primeira meia-hora das estrelas portuguesa fizeram o resto. A equipa da Bósnia esteve mais dentro da eliminatória pelos erros arbitrais do que por méritos próprios. Dzeko nunca fez juz à sua merecida fama internacional e nem Misimovic nem Pjanic souberam ter a tranquilidade mental para explorar as constantes debilidades defensivas de um Portugal que, mesmo com tudo a favor, acabou por sofrer demasiado.
Ficou evidente que a selecção lusa continua a ser mais uma manta de retalhos individuais que uma verdadeira equipa. Decidiu o génio individual de Cristiano Ronaldo e Nani na primeira parte e culminou a noite um golpe magistral de Miguel Veloso, naquele que foi talvez o seu mais completo jogo pela equipa das quinas. Desiludiu profundamente o trabalho do quarteto defensivo com Fábio Coentrão apagadíssimo (e infantil como poucos no lance da grande penalidade) e um Rui Patricio que, com a bola nos pés, continua a ser um terror para os próprios colegas. Mas como os bósnios tinham a bola exíguos minutos nos pés, o público não notou e fez a festa com que a maioria não contava. Depois da sofrida vitória por 1-0, frente aos mesmos bósnios, em 2009, ou os triunfos diante de Hungria e Estónia em 1999 e 2001, a Luz voltou a ser o talismã para uma noite de gala. Uma noite de enganos.
Paulo Bento continua a ser um técnico com debilidades tão evidentes que só mesmo a imagem do arregaçar nas mangas explica bem o que vai por aquela cabeça. Homem mais de acção do que planificação, o seleccionador apresenta-se como um novo Scolari, figura militarizada que aposta mais no esforço, na raça e no querer do que, propriamente, nos conceitos de preparação técnico-tácticos. O 4-3-3 que aplicou na selecção lusa continua a ser um tapete de espaços mortos onde os conceitos se confundem com os indivíduos. Quando algum jogador falta e um ou outro está em baixo de forma, a inépcia de Bento é mais do que evidente. Viu-se na Dinamarca onde Portugal podia ter sido humilhado com profunda naturalidade. Um seleccionador que marca toda a linha do seu trabalho em homens e não em conceitos corre o risco de se transformar numa presa fácil da sua própria fortuna. Ontem, pela primeira vez em largos anos, Portugal brilhou. Mas realmente brilhou no individual - como uma constelação onde as estrelas Nani, Cristiano, Meireles e até Moutinho fizeram das suas - enquanto que voltou a não convencer no colectivo.
Aqueles que habitualmente se deixam levar pelo frio na espinha que os hinos nacionais costumam provocar encontrarão mil e um motivos para sufragar Bento que tem a seu favor um registo de resultados mais do que aceitável. O mesmo sucedeu com Queiroz antes da viagem à África do Sul, onde se percebeu que uma brilhante fase de qualificação contava pouco quando os jogos a doer eram com rivais de outro calibre.
Portugal continua a ser uma equipa da parte média do futebol europeu, não demasiado longe de uma Bósnia que cometeu dois erros crassos na preparação deste play-off e que, por isso, mereceu a eliminação.
A batalha de Zenica era escusada e acabou, paradoxalmente, por beneficiar Portugal. Em lugar de aproveitar, como se viu nos últimos 20 minutos, a fragilidade mental dos lusos a equipa da casa preferiu a provocação e o anti-jogo e acreditou que um golo em Portugal seria suficiente para quebrar uma malapata de seis anos. Não foi. Portugal soube responder com categoria com dois golos de bola parada, um gesto técnico irrepreensível e três tentos de ponta-de-lança que transformaram uma qualificação numa orgia nacionalista. E no entanto o rival pareceu incomodar menos os jogadores de vermelho do que a péssima (outra vez) arbitragem de Wolfgang Stark que parece não se dar bem com jogadores lusos. Os golos, a celebração, escondem a realidade, como sempre.
A decadência lusa é um fenómeno evidente e facilmente reconhecível desde 2006.
O último biénio da era Scolari pautou-se por uma mensagem em tudo similar à que preconiza hoje Bento, o habitual discurso do guerrilha de bairro sem ideias que se apoia, sobretudo, no génio de quem o rodeia. Seleccionador que gostava de deixar vitimas pelo caminho como Bento(e mostrar-se orgulhoso disso), seleccionador que gosta de criar o "grupo" antes que premiar os melhores, (como Bento) e, sobretudo, seleccionador sem um conceito de jogo na cabeça. Depois de suar desnecessariamente num grupo acessível, Portugal fez fraca figura no Europeu de 2008 e deixou claro que a elite europeia, por onde tinha andado desde 2000, era uma utopia. Mas não deveria ser um drama, até porque é fácil constatar que a selecção francesa, carrasco preferencial dos lusos, vive na mesma situação sensivelmente desde então. Mas para os portugueses, sempre fáceis de ferir no seu orgulho, parece um insulto reconhecer a realidade. Não o é, até porque ser parte da elite, partir como favorito, sempre foi mais um handicaap para países pequenos do que propriamente uma bênção.
A falta de realismo de Paulo Bento é atroz e a sua reencarnação no espírito de José Torres deixa maus augúrios para um futuro. Sonhar com os pés no chão é algo que Portugal nunca soube e quando o máximo responsável pela selecção se arroga ao direito de que lhe deixem sonhar está a passar a mensagem sufragada pelos jogadores - de que Portugal pode repetir noites históricas no próximo mês de Junho. E, no entanto, pode tanto como qualquer outra das 16 equipas presentes e, sobretudo, pode muito menos do que aqueles que realmente vão ser o centro das atenções. Apesar de Cristiano Ronaldo, os lusos vão ser convidados secundários na festa de espanhóis, alemães, holandeses e italianos, seguramente os verdadeiros protagonistas. Portugal apresentará os seus problemas estruturais crónicos (falta de um guarda-redes e ponta-de-lança de nível máximo, falta de profundidade de um plantel que tem de recorrer a figuras secundárias de clubes de ranking baixo do campeonato espanhol em posições chave) e dependendo da fortuna do sorteio, pode dar-se por contente por ter participado. Afinal uma equipa sem um único criativo, uma equipa onde cabem jogadores tão medianos como Micael, Postiga, Almeida, Pereira, Patricio, Bruno Alves, Martins, Quaresma ou Rolando que pode fazer numa prova internacional que não possam fazer suecos, dinamarqueses, croatas, gregos ou russos, todos eles seguramente sem uma estrela mediática do nível de Ronaldo, mas com valores individuais seguros e um colectivo (e mais do que isso, uma estrutura táctica e mental) muito mais forte que a lusa?
Em 2008 a fortuna permitiu que o decadente projecto de Scolari se encontrasse com o grupo mais fácil do certame. A reedição do modelo de duplos cabeças de série pode reservar o mesmo destino, com Ucrânia e Polónia, Rússia e Inglaterra, Irlanda e República Checa como companheiros de viagem ideais. Mas tudo o que é bom acaba e será fácil entender que num hipotético Espanha-Alemanha-Portugal-França/Dinamarca, os lusos sejam os últimos de grupo. É essa a realidade que os 6-2 da noite de ontem já começaram a esconder em jornais, blogues e nas conversas de café. Onde ninguém vai perder tempo a entender o desajuste defensivo de Portugal no final da primeira parte, a falta de nervos de Patricio, a inépcia do jogo ofensivo dos laterais ou, sobretudo, a falta de opções de nivel quando o génio individual de Ronaldo-Nani não funciona. Em Portugal continua a pensar-se pouco futebol e por isso, para muitos, Junho pode ser um mês de frustrações quando devia ser um mês de celebração e festa. Hoje Portugal está num top 16 europeu, mas de pertencer ao top 4 passou a ser parte do último lote de quatro, por muito que o ranking da UEFA tenha sido mais amigo do que habitual. Querer criar uma sensação de vitória futura com base num só jogo é apenas poeira para os olhos de quem procura agarrar-se a algo no meio do lodo. Mas como os deuses gregos já provaram uma vez, o realismo no mundo da bola vem sempre ao de cima, por muito que doa.