Quando Guardiola emerge como figura máxima da expressão artística que define hoje o seu maravilhoso Barcelona atrás de si emerge sempre a figura na sombra de Johan Cruyff. Espelho de uma relação de admiração mútua que traça directamente a ponte entre o Dream Team e o Pep Team, olvidando pelo meio aquele herói que, ainda hoje, Can Barça teima em renegar. Sem ele o futebol moderno seria bem mais pobre e talvez o duelo entre Guardiola e Mourinho hoje fosse apenas uma mera utopia.
O elogio unânime ao futebol do Pep Team parte do principio que o técnico de Santpedor foi, provavelmente, o primeiro treinador a conseguir transformar o Camp Nou no santuário do futebol internacional recorrendo, sobretudo, à célebre cantera da Masia. Em Roma e Londres, palcos das suas duplas conquistas europeias, o Barcelona de Guardiola alinhou com oito jogadores da formação. Sete, se excluirmos Pedro Rodriguez, que chegou a Barcelona já com 17 anos e a formação realizada em Las Palmas. E, no entanto, desses sete jogadores, apenas um deve a sua presença no palco principal do futebol europeu ao técnico: Sergio Busquets.
Guardiola falou várias vezes da herança de Cruyff como elemento refundador do FC Barcelona moderna. Um discurso no qual alinham os seus jogadores, directivos e a esmagadora maioria da imprensa catalã contemporânea. É um reconhecimento natural de quem sabe que deve a sua carreira ao técnico holandês e quem se tornou, de certa forma, o símbolo dessa mutação desportiva em Can Barça que foi a valorização do producto interno. Até aos anos 90 o Barcelona era um espelho fiel do que é o Real Madrid de hoje, um clube mais gastador do que formador, clube que apostava em figuras incondicionais como Cruyff, Maradona, Liniker, Schuster, Simonsen, Romário, Laudrup, Stoichkov ou Ronaldo para paliar o seu imenso défice de produção própria. A cantera de Barcelona celebrizou-se na figura esguia e célere de Guardiola, criou o mito do número 4 - do qual Xavi, Fabregas e Thiago são sucessores - mas até à chegada de Guardiola poucos lhe prestavam a devida atenção. Talvez porque interessa à sempre facciosa imprensa catalã valorizar uma figura local, um homem que, se quisesse, seria hoje president da Generalitat, em detrimento de um passado vestido de laranja. E não o laranja de sant Jordi.
Cruyff, o homem que refundou a cantera do Barcelona com o seu ideário de "rondo, rondo, rondo", jogou a final do Wembley de 1992 com dois jogadores formados em casa. Guardiola era um. Ferrer, o lateral direito que passou pelo Chelsea, era o outro. Durante a sua estância em Can Barça o técnico holandês especializou-se a comprar, comprar e comprar o sucesso que obteve. Chegaram da liga espanhola os bascos Zubizarreta, Bakero, Goikotxea, Nadal, Sergi e Salinas. Da nata do futebol internacional Koeman, Stoichkov, Laudrup e Romário. À base de muito dinheiro o Dream Team venceu a Champions League de 1992 - a primeira do clube - e quatro ligas consecutivas, três das quais na última jornada. Depois de três anos de derrotas aos pés da Quinta del Buitre do Real Madrid, a última verdadeira aposta na formação do clube merengue. Quando Cruyff foi despedido, em 1995, a sua filosofia de cantera ainda fazia muito pouco sentido para a directiva do clube que preferiu apostar num inglês - Bobby Robson - que trouxe ainda mais estrelas para a equipa como Ronaldo ou Vitor Baía, que se juntaram a Figo, Hagi e Popescu, nomes que Cruyff tinha contratado para renovar as suas fileiras. Seguindo essa politica o Barcelona continuou a ignorar o producto bruto e só a figura, sempre criticada, de Ivan de la Peña, surgia como um náufrago de estrelas alheias.
Foi a chegada de Louis van Gaal que mudou, definitivamente, o rosto do clube catalão.
Hoje, mais de dez anos depois do seu ambicioso discurso, a maioria dos adeptos do Barcelona continuam a preferir esquecer a sua figura quase dictatorial e o seu génio desportivo. Depois de triunfar em Barcelona (só lhe faltou vencer a Champions League), van Gaal já se reinventou na Holanda (com o seu AZ Alkmaar) e na Alemanha (com o Bayern) e mesmo assim o mundo do futebol continua a olhar por cima do ombro quando o seu nome veio à baila. Nessa apresentação em 1998 o técnico que tinha levado o Ajax à glória europeia anos antes com base na formação local defendeu que o Barcelona, devido à sua idiossincrasia, devia apostar numa equipa formada, maioritariamente, com jogadores locais. Vencer a Champions League com uma maioria de jogadores da casa era o seu objectivo numa gestão a longo prazo. Não o deixaram estar tanto tempo mas houve outros que viveram da sua politica desportiva.
Van Gaal foi o primeiro treinador a convencer os directivos do Barcelona a lançar, à imagem e semelhança do Ajax, uma rede de olheiros em todo o Mundo para pescar, na mais tenra idade, as grandes promessas do futebol internacional. Assim chegou, em 2001, um tal de Leo Messi desde a Argentina, algo impensável sob o modelo de gestão anterior do clube.
O técnico holandês queria aplicar a filosofia de Cruyff a outro patamar e foi com ele que realmente todas as equipas do clube, desde os infantis aos seniores, começaram a jogar no mesmo desenho táctico que permitia para o futuro formar algo mais do que números 4. O "rondo, rondo, rondo" continuou a ser o modelo de jogo vigente, mas os conceitos de pressão, de preparação física e, sobretudo, mental, que não existiam na filosofia cruyffiana, tornaram-se objecto de estudo e aprendizagem na fábrica de La Masia. Enquanto a equipa principal vencia títulos com esse misto de holandeses, estrelas internacionais e estrelas em ascensão, começavam a formar-se as condições para que os Iniesta, Fabregas, Valdés, Piqué e companhia encontrassem um Barcelona muito diferente àquele que Guardiola conheceu no final dos anos 80.
O mal amado holandês, sempre criticado pela imprensa local, foi também o responsável directo pelo sucesso actual do clube catalão quando, contra indicações da própria direcção, lançou na primeira equipa a jovens como Xavi Hernandez, Charles Puyol (na sua primeira etapa) e mais tarde a Andrés Iniesta, Victor Valdés e Fernando Navarro (hoje no Sevilla) quando voltou a Barcelona, sem grande sucesso. O seu braço direito de então, José Mourinho, foi o responsável por algumas dessas apostas, já que era o técnico responsável de orientar os jogos na Taça Catalunya, onde Xavi, Puyol e companhia deram os primeiros toques na bola como profissionais do Barça.
Quando van Gaal saiu do clube - e o projecto de Gaspart entrou em espiral destructiva - o clube equacionou vender tanto a Xavi como a Puyol. O dinheiro da transferência de Figo foi gasto em jogadores de segunda linha e a formação continuou a ficar esquecida até que outro holandês, Frank Rijkaard, herdou a herança de van Gaal (com Valdés e Iniesta à cabeça) e seguiu as suas directrizes, juntando ao quarteto da casa - que se sagrou campeão europeu em Paris - o génio de Ronaldinho. E, no entanto, sob o seu mandato - e o de Laporta - tanto Piqué como Arteta e Fabregas foram forçados a emigrar para a Premier porque o clube continuava a olhar de outro lado para o producto da casa por muito que o técnico tentasse ir lançando jovens da cantera.
Guardiola herdou um esquema perfeitamente montado pelo ideário táctico de Cruyff e, sobretudo, a aposta clara de van Gaal na ideia de um onze da casa. Herdou sobretudo um esqueleto formado por quatro jogadores em quem só van Gaal acreditou durante larguíssimos anos e a figura omnipresente de um Leo Messi que, talvez, sem a politica de prospecção importada pelo mal amado técnico desde Amesterdam talvez nunca tivesse jogado de blaugrana. Desde a sua chegada, em 2008, que Guardiola já fez estrear a 19 jogadores da casa, o último dos quais a grande promessa Gerard Deulofeu. E, no entanto, só um deles, Busquets, encontrou um lugar à sombra na equipa principal. Entre os restantes 18 há jogadores que abandonaram o navio, outros que continuam a preparar-se na equipa B e um trio (Fontás, Thiago e Cuenca) que é utilizado como back-up de um plantel que continua a ser quase tão gastador como nos dias de Cruyff (Villa, Alves, Ibrahimovic, Abidal, Adriano, Maxwell, Keita, Afellay, Alexis Sanchez) e que mesmo assim consegue transmitir uma ideia totalmente desfasada da realidade na opinião pública. O génio táctico de Guardiola é inequívoco mas o seu rosto de Lancelot da formação blaugrana é uma das mais gritantes falácias do futebol actual. À distância, o mesmo homem que rejuvenesceu o Ajax, revitalizou o Bayern Munchen e quebrou a hegemonia do futebol holandês com o seu AZ continua a ver a sua criação recolher os mais rasgados elogios sem que nunca o seu nome saia à tona. Mourinho, outro dos seus discípulos, outro producto dessa sua formação obsessiva - até de treinadores - está no outro lado da barricada e não tem o mais mínimo interesse em seguir a filosofia de um dos seus mentores. Talvez olhando para o que se vive em Barcelona tenha razão. Afinal, se nem Xavi nem Puyol se lembram de onde vieram, porque não acreditar neste conto de fadas?