Qualquer adepto seria capaz de citar de memória um eventual top 3 do futebol holandês. Há Cruyff, há van Basten, há Gullit...mas, faz este pódio (ou qualquer outro) algum sentido quando não há espaço para aquele que foi, provavelmente, o jogador tecnicamente mais dotado da história recente do futebol europeu? Para Dennis Bergkamp o futebol era, sobretudo, uma questão de arte...
Não era ballet mas tinha traços desse movimento de pés súbtil e perfeccionista. Mas também não era propriamente futebol.
Certamente que a definição do jogo de Bergkamp estaria sempre a meio caminho de qualquer coisa. Na sua Holanda natal a vide mede-se em ângulos exactos, em regras rigidamente definidas pelo tempo, pela história e pelo espaço. Os holandeses aprendem desde cedo o que custa manter um país ganho ao mar, o que vale cada centimetro de erva. Um país sem montes, um país sem curvas que contornar, onde todos seguem em frente, onde todos podem olhar para lá do horizonte. Mas onde nem todos são capazes de ver tudo o que o horizonte é capaz de esconder.
Sem necessidade de correr, os holandeses aprenderam o valor de fazer as coisas andando. Bergkamp mais do que nenhum outro. Se Cruyff ficou célebre pelas suas arrancadas, se van Basten se posicionava com pequenos passos enquanto Gullit corria de um lado ao outro, o jovem Dennis sempre trabalhou a uma velocidade diferente de todos os outros. Nem demasiado rápido, nem excessivamente lento. E sempre entendeu o valor de uma linha recta.
Como um quadro de Piet Mondrian, esse revolucionário que os holandeses entendem melhor do que se imagina, o jogo de Bergkamp moldou-se sempre na simplificação do complexo. No poder do fácil. Cada gesto técnico era executado com a frieza e limpeza de um cirúrgião, de um verdadeiro profissional. Bergkamp não era um matador, o desfrute dele não fazia sentido num jogo pautado pelo conflito. A sua experiência falhada em Itália, ao serviço do Internazionale, espelhou bem o seu desencontro com um mundo onde a arte, a estética, eram relegados sempre para um apagado segundo plano. Tecnicamente, Bergkamp continuava a ser melhor do que todos. Mas os outros 21 jogadores, pura e simplesmente, estavam a jogar outro jogo. E só, como quase sempre se sentiu, o prazer perdia-se.
A sua fama de filósofo moderno dos relvados embate com a crença actual de que um jogador de futebol pode ser tudo menos um artista culto.
Bergkamp pode sentar-se num qualquer café de Amesterdam e debater sobre o mais erudito dos temas sem que deixe transparecer que foi na verdade um futebolista de elite. Entre todos os seus treinadores só Arsene Wenger o entendeu, só ele soube falar o mesmo idioma.
Nem Cruyff, o seu primeiro técnico, dono de um vocabulário e uma mente própria, nem Hiddink, o seleccionador que não o soube aproveitar da melhor forma ao serviço da Orange, souberam decifrar o seu eterno enigma. O do homem que não voava por pavor a morrer numa queda violenta mas que era capaz de adentrar-se na selva de pernas dos defesas napolitanos num derby quente no San Paolo.
Quando chegou a Inglaterra, em 1995, a Premier League ainda não era no que se tornou e salvo Eric Cantona e David Ginola, dois franceses desterrados, os estrangeiros continuavam a ser olhados com desconfiança. Com ele o "boring Arsenal" transformou-se numa ópera clássica de requinte especial. O seu jogo de pés, a sua visão e, sobretudo, a parceria que estableceu com o cosmopolita Ian Wright, mudaram a face do jogo nas ilhas britânicas e transformou radicalmente o rosto de um clube adormecido.
Ao serviço do Arsenal o genial holandês executou as suas maiores obras de arte. Para Bergkamp um golo não era mais do que uma tela nua, preenchida com o seu apurado pincel e depois exposto com orgulho diante dos olhares atónitos do mundo. Essa falta de espirito killer provocou-lhe demasiadas criticas mas, por outro lado, reforçou ainda mais a sensação de grandeza cada vez que Dennis se transformava em Bergkamp.
Perder a conta aos golos, passes, desmacarcações ou sublimes remates de Bergkamp tornou-se num hobby tão respeitável como o de passar horas sentados no Louvre a contemplar, em adoração, as obras mais ousadas de da Vinci. A forma como abria e fechava o campo com um só gesto, autoritário como um general, diletante como um pintor da rive gauche parisina, tornaram-no num jogador especial. Wenger posicinou-o atrás do ponta-de-lança, primeiro Wright e depois Henry, dois jogadores que falavam o mesmo idioma intelectual e refinado que o holandês. Emulou assim a Cantona, que então se retirava, num gesto táctico que significou a morte definitiva (mas não imediata) do histórico 4-4-2 britânico. Esse posicionamento, que não repetiu numa Holanda repleta de outros artesões com egos muito maiores que o seu, permitiu ao Arsenal voltar a saber o que era ser campeão e durante meia década tornou-se igualmente no santo e senha dos amantes do futebol champagne, que os gunners herdavam do Milan de Sacchi com uma tremenda e insuspeita naturalidade.
Como muitos dos grandes génios, o seu reconhecimento passou ao lado dos grandes momentos. Com a sua Holanda falhou um Mundial que lhe parecia destinado, especialmente depois de, com três movimentos astairianos, desmembrar a jugular da nação argentina. Com os "gunners" faltou-lhe a consagração europeia que tinha servido à santa trindade holandesa que citamos ao inicio para confirmar o seu papel como estrela absoluta do jogo. Num desporto baseado em números, os de Bergkamp parecem efectivamente menos impressionantes que os dos seus compatriotas. Mas como a arte, essa revolta interna de um homem contra o mundo, ainda não se pode medir, é possível que haja sempre alguém corajoso o suficiente para proclamar Bergkamp como a tulipa mais resplandecente que o horizonte pode contemplar...