Pode um país de 10 milhões de habitantes, com uma economia decadente, uma sociedade congelada no tempo e sem um projecto de futuro definido ambicionar a ser potência de alguma coisa? Portugal continua a pensar que sim. Em véspera do derradeiro duelo de qualificação directa para o Euro 2012 voltam a assombrar os fantasmas da calculadora sem que adeptos e analistas entendam a crua, dura mas certeira realidade. Esta selecção é apenas o espelho de um país. Talvez por isso, futebolisticamente, valha menos e moralmente, hoje em dia, valha tão pouco.
Antes da última noite de qualificação só cinco potências europeias garantiram o apuramento automático para o Europeu organizado no próximo mês de Junho pela primeira vez na Europa de Leste. Nas já apuradas Ucrânia e Polónia.
Cinco países que definem a história do jogo, de Itália e Alemanha a Espanha e Inglaterra sem esquecer a omnipresente Holanda. Cinco realidades desportivas e sociais que espelham bem como se pode analisar de forma objectivo o fenómeno futebolístico no Velho Continente. A imprensa "especializada" volta a falar em nações com tradição, tentando enxotar Portugal para uma lista que vive num universo à parte, como quem exige notas de excelência quando as condições de trabalho são inexistentes. Há algo (não, há muito) nesses cinco países que explica o seu papel na evolução e na estruturação do futebol europeu. E por isso, sobretudo por isso, não é casualidade que sejam eles os primeiros a carimbar o passaporte para o torneio estival que nos espera em 2012.
O futebol é, hoje mais do que nunca, um fenómeno económico e social. Um espelho profundo onde as grandes diferenças se acentuam mais do que nunca. Em campo já não entram apenas 11 contra 11 jogadores. Apesar de ser um jogo, onde tudo pode suceder (que dizer da Grécia em 2004) em cada jogador entra também um símbolo da evolução do seu país no esquema politico, social e económico. Na aposta feita no desporto mas, sobretudo, na mentalidade incutida na sociedade que dá ou tira o grau de importância que se atribuiu a cada evento.
É uma mistura curiosa onde vários factores entram em jogo. Mas se há elementos que unem de forma inequívoca os cinco qualificados são a sua aposta na formação, o seu poderio económico e o leque de opções que o seu campo de recrutamento possibilita.
Portugal há muito que se distanciou das principais selecções europeias por muito que o brilhante registo logrado na última década diga o contrário.
Um país de 10 milhões com uma economia débil tem pouco que dizer quando se fala num contexto mais alargado e profundamente profissional como o que defendem as federações holandesa, alemã, italiana, espanhola ou inglesa. Mesmo o caso francês resulta paradigmático porque espelha um verdadeiro ponto de inflexão num país que tem os seus próprios fantasmas, espelhados pela polémica à volta das declarações de Laurent Blanc sobre o futebol de formação gaulês. Um país órfão da sua melhor geração sabe que tem de passar por um período de sofrimento que se acentua quando a escolha de excelência formativa ao mais alto nível mundial também acaba por se ver questionada dentro e fora das fronteiras do hexágono.
No meio desta salada de frutas, Portugal é um dos productos secundários por excelência. Não tem o campo de recrutamento da Rússia ou Turquia por exemplo. Nem a solidez económica dos países nórdicos (habitualmente mais interessados noutros desportos onde valem a sua condição para serem verdadeiras superpotências) ou a consciente aposta no futebol de formação de suíços, croatas ou gregos. Portugal, pura e simplesmente, transformou-se numa nação sem um trunfo na manga mas com muito prestigio.
Finalista de um Europeu, semifinalista de outro, quarto finalista em 2008, semifinalista de um Mundial e nono classificado no último campeonato do Mundo são números de uma potência que Portugal não é. O futebol luso tem vivido muito por cima das suas reais possibilidades, consequência directa de uma forte aposta na formação que deu os seus frutos durante 15 anos, da bonança económica que permitiu nos anos 90 esse salto de qualidade e, sobretudo, do peso mediático de figuras individuais que, de certa forma, taparam buracos graves que seriam imperdoáveis em nações de outro pedigree. Portugal passou a última década desportiva sem um guarda-redes e um dianteiro de nível mundial, algo impensável para quem aspira a algo mais do que picar o ponto. Viveu uma eterna orfandade de laterais esquerdos, um excesso de extremos e uma profunda carência de criatividade no miolo. No último Mundial actuou com um central de raiz como médio defensivo por não existir nenhum jogador capaz de dar a mesma segurança num lote de 23. Muitos dos jogadores convocados pelos últimos três seleccionadores actuam em equipas de nível médio-baixo e tudo isso tem um preço real.
Portugal abandonou há uma década atrás o seu papel de referência na formação. O mesmo que devolveu à Espanha uma hegemonia que deteve a nível de clubes mas que nunca se viu plasmada na selecção nacional. O mesmo projecto que permite a um país como a Holanda, mais rico mas com menos população, manter-se eternamente no topo. Os holandeses são, de certa forma, tudo o que Portugal não é e devia ser. Aproveitamento dos emigrantes e imigrantes, desenvolvimento do futebol de formação nos clubes de média e baixa dimensão, fortíssima aposta na estrutura federativa e, sobretudo, a criação e perpetuação de uma identidade de jogo.Condimentos suficientes para garantirem que em Junho eles estarão na linha da frente, com espanhóis e alemães (que aplicam a mesma fórmula), para disputar o ceptro continental.
Se Portugal cair diante de uma Dinamarca que até aos anos 70 ainda era uma nação eminentemente amadora será tudo menos surpreendente. Os dinamarqueses estão longe da excelência técnico-táctica da selecção dos anos 80 mas continuam a ser um país economicamente forte e com uma aposta na formação local respeitável. Têm há largos anos o seu ideário de jogo e o que podia ser uma fraqueza transforma-se numa arma de ataque. Sabem que apesar de serem campeões europeus pretéritos (algo que nem Portugal logrou) não podem viver, como os lusos, das ilusões do passado e encaram cada fase de qualificação com tremenda seriedade. Talvez por isso tenham falhado tão poucos torneios nos últimos 30 anos. Apesar dos melhores resultados recentes de Portugal, lusos e dinamarqueses estão ao mesmo nível no panorama futebolístico e não fosse o capricho dos rankings FIFA e UEFA e talvez ambas as selecções tivessem defrontado rivais bem mais fortes nos seus respectivos grupos, como sucedeu com a Suécia (com a Holanda), como a Suiça (com Inglaterra) ou com a Turquia e Bélgica (com Alemanha).
Num grupo com um cabeça de série sonante ninguém exigiria que Portugal lograsse o apuramento directo para o Europeu mas nesse ar armante bem luso, os dinamarqueses são uma nação menor. Nem vale que tenham sido eles a garantir o bilhete directo para o último Mundial mandando Portugal para um duelo agónico com uma Bósnia que representa perfeitamente o melhor da nova Europa a quem poucos prestam a devida atenção. Essa ideia de um Cristiano Ronaldo mais dez, de uma selecção de Figos pretéritos, tapam a realidade de uma nação que não pode ambicionar a mais do que ser nona num Mundial ou sexta num Europeu, como sucedeu nos últimos dois torneios. Esses são os limites reais de Portugal.
Paulo Bento sabe-o mas de certa forma ele também é o espelho desse Portugal dos pequeninos que acredita que vale mais do que realmente vale. Os erros contra a Islândia foram só um reflexo de todos os erros de todas as qualificações portuguesas da última década onde a solvência e o saber estar nunca foram recorrentes. Podem Rui Patricio, João Pereira, Rolando, Eliseu, Carlos Martins, Ruben Micael, Helder Postiga, Ricardo Quaresma, Hugo Almeida, Miguel Veloso, Beto ou Nuno Gomes ser parte importante numa selecção que aspira a tanto mas que continua a valer tão pouco? Olhamos para os centro-campistas espanhóis, ingleses, alemães, holandeses, franceses ou italianos sentados no banco de suplentes e entendemos esse abismo que separa hoje, mais do que nunca, o futebol luso, abandonado às urtigas, do futebol da elite europeia.
Países como Dinamarca, Suécia, Croácia, Bósnia, Montenegro, Sérvia, República Checa, Turquia, Bélgica, Escócia, Eslovénia ou Irlanda, não possuem nomes globais como Ronaldo, mas como selecções hoje por hoje valem tanto como a equipa das Quinas. É perante eles que o futebol português tem de medir a sua bitola em vez de continuar com sonhos quixotescos de olhar olhos nos olhos com nações que fizeram o trabalho de caso a tempo e horas.
Dito isto e Portugal até pode qualificar-se de forma directa para o Europeu mesmo perdendo. Seria o pior que podia passar ao futebol luso porque, uma vez mais, o apuramento directo, sem vencer sequer o grupo, taparia todos os problemas reais e graves do futebol português. Talvez seja necessário para Portugal passar por um período de hibernação, como sucede com países com a Bélgica, Irlanda, Roménia ou Escócia, para entender qual deve voltar a ser o caminho a seguir. O problema é que a ampliação a 24 equipas dos próximos Europeus, uma vez mais, enganará tudo e todos e continuará a funcionar como desculpa perfeita para quem continua a adentrar-se no mar sem remos nem velas.