No ambiente fervilhante da Oktoberfest anual há poucos sítios no Mundo mais interessantes para se estar do que no coração da Baviera. Numa das zonas mais tradicionais e poéticas da sempre pragmática Alemanha há um fenómeno subterrâneo que começa a ganhar vida própria. Depois de anos e anos de ódio colectivo o (bom) futebol está a transformar o Bayern Munchen num clube que as pessoas realmente apreciam. Será que o Hollywood FC tem os dias contados?
A Alemanha vive dias complexos.
Motor da recuperação económica europeia, sofre com os erros alheios. Lider há muito do projecto europeu, é incapaz de entender o seu papel num grupo repleto de dicotomias. E no meio, depois de várias décadas, os alemães, já suficientemente confusos, deparam-se com o novo fenómeno que chega de Munique. Um Bayern entranhável.
Desde há largos anos que o futebol alemão está a viver um admirável mundo novo. Uma metamorfose que se começou a gestar, precisamente, quando o Hollywood FC vivia os seus últimos dias de glória. A alcunha da imprensa teutónica é antiga e remonta aos finais dos anos 70, época em que o clube bávaro se transformou no ódio por excelência de qualquer adepto alemão que gostasse de futebol. O Bayern ganhava - quase sempre - mas havia sempre algo que justificava o triunfo. E nunca era o seu real valor.
As festas, a vida de milionários dos seus jogadores e dirigentes, o papel de figuras controversas como Beckenbauer, Hoeness, Rummenige, Mathaus, Effenberg ou Oliver Kahn foram perpetuando essa imagem de clube aristocrático, conflictivo e profundamente autista. Um clube onde o dinheiro parecia importar mais do que o jogo, em que os resultados valiam mais do que os projectos. Uma imagem mentirosa - já lá vamos - mas que ficou profundamente enraizada no sentimento comum. O Bayern era, dentro e fora da Alemanha, um dos papões do futebol, impossível de admirar quando mais de gostar ao adepto neutral. As vitórias nacionais, de dois em dois anos, os triunfos por essa Europa fora, sem esse jogo bonito, agudizaram o mito. Nem as derrotas imprevistas contra rivais que pareciam, a principio, equipas inferiores (Aston Villa, FC Porto ou Manchester United) pareciam criar algum tipo de comiseração. Qualquer derrota do Bayern era uma vitória do futebol. Ponto.
Mas essa imagem hoje está longe da realidade.
Nesta nova Alemanha o clube de Munique conseguiu, finalmente, começar a mudar a tendência.
Claro que esse fenómeno não é ainda omnipresente. Que o digam os adeptos do Schalke 04, incapazes de perdoar a mudança de Manuel Neuer, um jogador que chegou a Munique debaixo dos assobios dos adeptos de ambos lados. Esse papel de papão no mercado de transferência interno ajudou a criar a lenda de um clube preparado para asfixiar os rivais directos a peso de ouro. Mas quando a equipa começa a apostar definitivamente na formação e no mercado internacional, os alemães têm cada vez menos pretextos para odiar os vermelhos do sul.
Jupp Heynckhes, ele próprio um homem respeitado no futebol alemão apesar do seu passado como técnico bávaro (essencialmente por ter sido dispensado por duas vezes por Uli Hoeness), ajuda a criar esse clima. O herdeiro de Louis van Gaal - técnico sempre polémico onde que quer passe - ajudou a acalmar algumas das vozes criticas oferecendo aquilo a que muito poucos estão habituados: ver o Bayern jogar muito, muito bem.
O arranque do clube na Bundesliga tem sido apaixonante. Depois de uma derrota no encontro inaugural frente ao Borussia Monchengladbach (equipa onde Heynckhes brilhou como jogador) os bávaros não voltaram a perder e lideram comodamente a classificação. Mais ainda, as vitórias têm sido solventes, apaixonantes e profundamente meritórias. Abandonando o modelo suicida de van Gaal na sua segunda temporada (a que ajuda, de certa forma, a ausência de Robben) o novo técnico apostou num 4-3-3 em que Ribery e Muller apoiam Mario Gomez de forma directa com Kroos e Schweinsteiger soltos no miolo - apoiados pelo ucraniano Tymotschuk - a funcionar como interiores ofensivos sempre que a equipa tem a bola nos pés. A consistência defensiva, pecado no mandato do holandês, com Rafinha e Boateng como incorporações determinantes, ajudou a libertar as ânsias atacantes dos de Munique que contam, a estas alturas, com 21 golos marcados e apenas um sofrido (em sete jogos). Na Champions League a equipa voltou a dar uma demonstração de autoridade naquele que é, sem dúvida, o "Grupo da Morte". Depois de praticamente humilhar futebolisticamente o Villareal em Espanha, os homens de Heynckhes vergaram um Manchester City incapaz de transformar o seu cartel de estrelas numa equipa de topo europeu num duelo intenso no Allianz Arena. Um duelo que Gomez, o homem do momento na capital da Baviera, mais uma vez decidiu.
Curioso nisto tudo é que a fama do Bayern não deixa de ser contraditória com a própria essência do clube. Um clube que resistiu, como poucos, à influência Nazi no futebol alemão. Um clube que pagou o salário completo a um jogador que sofreu um grave acidente pouco depois de assinar o contrato com a entidade até terminar a duração do mesmo. Um clube que só a partir de finais dos anos 60 entrou no grupo dos ganhadores e que desde então adoptou no terreno futebolístico os mesmos preceitos que estiveram por trás da própria ressurreição politico-económica da RF Alemanha. Hoje com a classe no terreno de jogo e a elegância fora dele, o Bayern Munchen transformou-se num caso sério de superação mediática. Talvez seja mesmo verdade, talvez o Hollywood FC seja só mais um mito pretérito numa Alemanha reinventada.