Longe vão os dias das brincadeiras de Ruud Krol, capaz de deixar emudecido um imenso e apaixonado Santiago Bernabeu. Hoje um duelo europeu entre Real Madrid e Ajax Amsterdam (treze troféus em conjunto) é apenas uma noite europeia qualquer. Uma noite em que o modelo de futebol que levou ambas as equipas à grandeza mundial se esconde por debaixo de um tímido tapete verde à espera de voltar a ver os malabarismos de um génio pretérito qualquer...
A vitória do Real Madrid esconde, pela enésima vez, o mutismo futebolístico da equipa mais cara da história.
A obsessão constante pela vitória, doença crónica de um clube que encontrou em José Mourinho o melhor exemplo humano da farsa moral de uma instituição, ameaça com destroçar os resquícios de jogo que fizeram da Castellana uma rua temível, do Santiago Bernabeu um palco de sonho. Hoje vencer o Ajax Amsterdam é um triunfo tristemente menor, um triunfo sem sabor especial, longe desses duelos históricos capazes de definir um antes e um depois. Numa fria noite de Março de 1973 os holandeses visitaram o Bernabeu. Iam a caminho da sua terceira vitória consecutiva na prova. A equipa da casa há mais de uma década que não sentia o sabor da vitória, mas o seu peso moral no futebol europeu era inquestionável. Mas quando Cruyff, Neeskeens e Krol começaram a tocar na bola, todos no estádio souberam que viviam numa espécie de viagem no tempo em que o passado era cada vez mais distante e o futuro se tinha transformado num absoluto presente.
Hoje o futuro futebolístico do Real Madrid é um tremendo ponto de interrogação e o passado uma memória esquecida por debaixo da pedra dura e seca que cimentou as bases do mais bem sucedido clube de futebol do Mundo. O sucesso e as ideias aqui caminham em lados opostos da imensa Castellana, desencontrados de forma constante e quase irreconciliável. O futebol bate à porta mas ninguém o deixa entrar, sob falsos aspectos morais de triunfos a qualquer preço, de marketing puro e duro e, sobretudo, de uma equipa de trabalho que preferiu procurar os atalhos em vez de descobrir onde dava a avenida principal.
Um 3-0 enganador, como quase sempre, que deixa o Real Madrid na sua habitual euforia de optimismo.
Frente a um Ajax menor, moral e desportivamente. A equipa de Frank de Boer tem a intenção mas peca por falta de engenho, talento e, sobretudo, dimensão. Sem Luis Suarez foram campeões, pela primeira vez em largos anos, mas também perderam o toque de magia que os distinguia numa liga holandesa que, ano após ano, vai perdendo esse dom de mágica irreverência que sempre teve. Este Ajax é pequeno, pequeno demais para o seu próprio escudo, e não é o discurso populista e ideológico de De Boer, agarrando-se ao ideário cruyffiano, que irá resgatar um clube histórico mas, hoje, sem armas nem ideias.
Por isso mesmo é ainda mais penoso seguir noventa minutos vazios de futebol. Noventa minutos em que a bola, órfã, pedia a gritos que alguém se lembrasse que ela existia, mais do que para simular provas de atletismo. O Real Madrid abdicou, de forma definitiva, de jogar à bola. Optou pelo atalho do contra-golpe como uma perigosa constante que já deixou de forma declarada, a nu, todas as suas debilidades. Contra o Levante e o Racing Santander, equipas a quem há que saber jogar com a bola nos pés, que os espaços sabem guardar eles, os merengues foram tão inofensivos como um cachorro de pastor alemão. Contra aqueles clubes que, moralmente, são forçados a procurar a bola, mesmo sem a encontrar, o cachorro mostra os dentes e solta todo o seu pedigree.
Em lances rápidos o Real Madrid é a equipa mais perigosa do mundo. Lances que se parecem mais a ensaios de rugby, com corridas furiosas e celebrações histéricas do que, propriamente, a um jogo de futebol. A bola não se move pelo terreno de jogo, não se sente cómoda. É forçada a sprintar, a voar por cima da relva. Não há outra ideia, não há outro argumento. Xabi Alonso, talvez o melhor pensador de jogo fora do hemisfério Barcelona no futebol espanhol, é forçado a zarandear a bola de um lado para o outro, como um limpa pára-brisas humano. A velocidade do tridente ofensivo, incapaz de jogar de forma pausada, faz o resto. O golo inaugural é o exemplo perfeito da classe limitada deste projecto mourinhiano. Um projecto que em dois anos preferiu contratar e potenciar jogadores que gostam de entender o jogo como uma corrida de felinos. Kaká, potenciado pelo contra-golpe milanês e transformado num ídolo sem sentido. Karim Benzema, jogador de soberana classe que se entende melhor com a bola em alta velocidade do que com os momentos de necessária pausa e reflexão. O desborde louco e descontrolado de Angel Di Maria. A verticalidade com classe - mas tantas vezes sem pausa - do genial (e subaproveitado) Mezut Ozil. E o protótipo humano da máquina futebolística, sem magia de improvisação, de Cristiano Ronaldo. Entre eles, salvo o ausente argentino, alinharam-se para conjugar um excelente movimento colectivo a alta rotação que define, sem nenhum reparo, a identidade futebolística de uma equipa de futebol que gosta de jogar sem bola.
No final todos ficam contentes até ao próximo desaire. O projecto Florentino Perez 2.0, perdão, o projecto José Mourinho, vive eternamente no limbo, necessita a sua dose de adrenalina semanal, dessa histeria desportiva que não leva a lado nenhum. A bola pede que a acariciem, que a saibam sentir, mas há uma constante e eterna negação em procurar formas mais evidentes e claras de sentir-se superior. O Real Madrid actual supera-se ao negar-se, triunfa esquecendo-se desse gesto de Krol. A bola, que nos pés desse louco holandês se sentia cómoda suficiente para brilhar com luz própria, emudece quando a fazem suar como um recruta em exercícios militares. No fundo já nem sabe sequer se está a viver uma noite especial. Quando sobe ao relvado do Bernabeu é apenas mais uma noite europeia qualquer...