Uma semana depois da derrota mais dolorosa, Arséne Wenger parece um treinador muito mais tranquilo do que seria de supor. O técnico do Arsenal foi seriamente contestado por um sector bastante forte dos adeptos gunners mas soube reagir com a prontidão que se esperava. Depois de mais de dezasseis anos à frente do clube londrino, Wenger continua a ser um homem que deixa sensações contraditórias. O francês soube reeducar o gosto futebolístico dos filhos do "boring Arsenal" mas continua a ser contestado pela falta de resultados. É o preço pagar por ter sabido esconder os graves problemas de um clube que há largos anos está longe da elite britânica.
Parecia uma gralha. Um erro gráfico talvez.
8-2 não seria realmente um 0-2? Não se teriam os senhores enganado? Quantos adeptos não devem ter pensado isso - e muito mais - quando se conectaram para saber do resultado do histórico confronto de Old Trafford entre gunners e red devils. Os que viram o jogo, no entanto, levaram com a crua realidade em directo. Uma realidade enganadora mas, não por isso, menos dolorosa.
Quando David de Gea parou o penalty de Robbien van Persie o jogo estava ainda tremendamente equilibrado apesar do 1-0. Como se de uma espécie de cerco se tratasse, esse foi o momento em que a fortaleza cedeu. O plus de confiança transformou o jogo ofensivo do Man Utd (foram oito, podiam ter sido doze) e descaracterizou por completo um Arsenal que, em momentos, se assemelhava mais ao Brighton and Hove do que à equipa que tem marcado presença de forma consecutiva entre a elite europeia na última década. Num dia inspirado de Wayne Rooney, Ashley Young, Nani, Phil Jones, Tom Cleverley ou mesmo Anderson pouco mais havia a fazer. Para piorar mais a situação - ou justificando-a, em parte - os gunners jogavam contra o eterno rival repleto de baixas da máxima importância. Só isso justificou a estreia de Alex Chamberlain, os minutos de Coquelin, Jenkinson e Traoré e a falta de critério colectivo de um onze orfão do talento de Nasri e da cerebralidade de Fabregas.
Sem os seus dois maestros (e sem Vermaelen, Sagna, Gibbs, Whilshere ou Song) era fácil de imaginar que o Arsenal seria derrotado por um Manchester há largas semanas a evidenciar que Ferguson conseguiu reerguer, uma vez mais, das cinzas, um clube a quem muitos estão mais do que fartos de passar a extrema unção.
8-2 foi um resultado tremendo mas Wenger é um pragmático. Sabe que o jogo pode ter deixado uma marca profunda nos adeptos, mesmo naqueles mais fiéis que contradizem o discurso do resultadismo, mas aos jogadores transmitiu a ideia de que, no máximo, perderam-se três pontos e um confronto directo difícil de igualar. Nada mais. Uma derrota aparentemente previsível nos seus cadernos e que, simplesmente, acelerou o inevitável. Três dias depois o Arsenal mostrou-se hiper-activo no fecho do mercado com as chegadas do veterano Meertesacker, os talentosos Benayoun e André Santos e o homem que terá por obrigação liderar a carga do meio campo, o espanhol (ironia das ironias) Mikel Arteta. Quatro nomes a que se podiam ter juntado outras (Cahill do Bolton, Gotze do Dortmund, Hazard do Lille), não fossem as ofertas dos gunners rejeitadas sem qualquer opção de negociar.
Se Wenger já montou e desmontou equipas de alto standing é difícil pensar que o alsaciano perdeu a habilidade de repetir o feito.
Até porque o Arsenal pós 2008 é tudo menos uma equipa de top. Em 2006 a equipa chegou ao mais alto. Uma final de Champions League, a única espinha ainda atravessada no historial do clube e do técnico. Desde dois anos antes que o clube não vencia um troféu doméstico e desde então a razia foi in crescendo. À medida que os artífices dessa campanha foram deixando o clube, as caras novas foram incapazes de manter o ritmo. Mas, sobretudo, e isto para um homem como Wenger é fundamental, a balança do poder financeiro da Premier mudou drasticamente as regras do jogo.
Quando o clube decidiu gastar todas as fichas numa só jogada não foi capaz de prever o que o fenómeno Abramovich seria capaz de fazer ao futebol inglês. Estávamos em 2003, o ano em que se forjou a lenda dos Invencibles, e ao Manager foi-lhe dito que o dinheiro para transferências iria acabar durante os anos seguintes. Todos os rendimentos do clube seriam redirigidos para a construção (e pagamento) do novo estádio, o Emirates Stadium, ele também uma petição expressa de Wenger, cansado de ver um Old Trafford com 75 mil almas contra as 32 mil que abarrotavam o velho Highbury. Economista, apaixonado das finanças e gestor de elite (basta ler Moneyball para entender como Wenger mudou o rosto do futebol moderno), o técnico gaulês traçou um plano de futuro que contradizia em grande parte o que tinha feito nos anos anteriores. Apostou nas camadas jovens do clube (reforçadas por contratações de promessas em todo o planeta graças a uma aplicação informática que lhe permitia estudar em detalhe características chave nos jogadores mais interessantes que os seus olheiros descobriam), apostou em jogadores desconhecidos do grande público e, sobretudo, apostou em reduzir a carga salarial do plantel.
Simon Kuper defende (e no meu entender, correctamente) a teoria de que é o que um clube gasta em salários o que determina o seu real posicionamento no mercado e nas expectativas que pode ter. No arranque da década o Arsenal era o clube que mais gastava em salários, só ultrapassado pelo Manchester United. Uma década depois o clube caiu para um sétimo lugar por detrás de United, Chelsea, City mas também Aston Villa, Tottenham ou Liverpool. Sairam os pesos pesados, os mais novos cobram relativamente pouco comparado com os de outros clubes e sempre que um jogador com o perfil, digamos, de Nasri (o caso de Fabregas é muito especial) quer renegociar o contrato em alta, o clube prefere vender. Essa politica marcou a segunda etapa do técnico no clube e de certa forma os seis anos sem titulos ou os 8-2 em Old Trafford apenas espelham essa realidade. O Arsenal não tem poder financeiro para competir pelo titulo. Nem sequer pela Champions League. Hoje, tecnicamente, os gunners são uma equipa de Europe League e têm-no sido nos últimos anos. Mas a boa gestão de Wenger, o seu estilo de jogo, as grandes descobertas do técnico foram mantendo o Arsenal acima do esperado, dando a ilusão de poder que realmente não tinha. O clube nem pode gastar 40 milhões num jogador nem sequer - e isso é o mais problemático - gastar as fortunas em salários anuais que recebem os mais bem pagos, os jogadores de top. Uma realidade que começa a mudar agora. Mas só agora. Agora porque o clube acabou de pagar o estádio (seis anos depois). Agora porque o clube pode voltar a investir. E agora que o inferno passou, agora que o clube pode voltar ao seu rumo depois do mais difícil, agora Wenger perde a confiança?
O certo é que Arsene Wenger continua a ser o santo e senha para a maioria dos gunners. E com todo o sentido. O "boring Arsenal" de George Graham venceu títulos mas nunca convenceu ninguém. Wenger venceu títulos também mas sempre encantou, mesmo nas mais cruéis derrotas, até ao mais imparcial dos adeptos. Tacticamente é um treinador de top mas é como gestor de recursos - humanos e financeiros - que o seu papel na história está assegurado. Transformou o Arsenal numa potência real e deixou as bases de futuro para um projecto sólido e sustentável. Sem o dinheiro de sheiks ou magnatas, sem o background económico do Man Utd (que antecipou em 15 anos tudo o que os restantes clubes fazem hoje) conseguiu dar luta até ao fim ano após ano. Ninguém pode dizer que 2011/12 vai ser diferente. Arsene já nos surpreendeu outras vezes no passado. O desafio é difícil mas se há alguém que se sente estimulado por jogar contra as expectativas é o homem em que os gunners ainda confiam.