Há tão poucos jogadores que podem presumir do curriculo que tem Samuel Eto´o que é dificil descartar o camaronês como um dos grandes jogadores da última década. No entanto o histórico dianteiro preferiu os milhões russos à competitividade da Serie A italiana para a surpresa de muitos. Uma mudança que no entanto se podia antecipar desde que Eto´o chegou à Europa para tornar-se na máxima estrela do futebol africano contemporâneo.
Eto´o é um jogador sem medo. Com a bola e com as palavras.
A sua saída do Barcelona, onde se tinha transformado no mais letal dianteiro da história do clube, deveu-se à falta de feeling de Guardiola, uma forma educada, como sempre, do técnico dizer que não apreciava a brutal sinceridade do camaronês num balneário onde durante os anos prévios teve fortes discussões com os pesos pesados do clube. Essa postura de Eto´o acompanhou-o durante toda a vida. Desde a sua chegada à Madrid até à sua coroação em Milão houve poucos jogadores tão genuinos como ele.
A sua mudança para o milionário Anzhi pode parecer aos mais puristas como uma opção oportunista e mercantilista. Afinal, o camaronês deixa uma das ligas mais respeitadas do Mundo - onde era uma das máximas figuras - para jogar no emergente (financeiramente) mas ainda desportivamente débil campeonato russo. E deixa-o por muitos milhões. Cristiano Ronaldo, Wayne Rooney e Leo Messi, os três mais bem pagos do Mundo ganham à volta de 13 milhões de euros ao ano. Eto´o vai ganhar 14 (inicialmente falou-se em 20) num contracto de quatro anos que o irá transformar no maior bilionário na história do jogo. O dinheiro que Eto´o ganhou com este último contracto vai de encontro à sua filosofia de vida, aquela que enunciou sem papas na lingua quando começou a afirmar-se na Liga espanhola. "Trabalhar como um negro para viver como um branco". Missão cumprida.
O avançado chegou a Barajas, Madrid, com 17 anos e muito frio.
Veio de África sem uma muda de roupa e enquanto esperava os directivos do Real Madrid no aeroporto sentiu pela primeira vez o peso do ar condicionado dos aeroportos espanhóis. E viu durante a sua adolescência na antiga Cidade Desportiva como era tratado de forma diferente por todos. Empenhou-se em triunfar pelo clube merengue e fez até parte da equipa que venceu a Champions League de 2000. Mas com a chegada de Florentino Perez e a sua politica de Galácticos as portas do Bernabeu fecharam-se definitivamente. Mudou-se para a solarenga Mallorca onde se impôs como um dos maiores dianteiros do futebol europeu e quando apareceu o Barcelona de Joan Laporta, Eto´o sentiu que estava na altura de começar a sentir o que era viver como um branco no duro mundo do futebol espanhol.
Aguentou de tudo, insultos, provocações, desqualificações e muitas criticas. Em Zaragoza, numa noite histórica na luta contra o racismo no futebol, teve o nobre acto de sair de campo quando La Romareda começou a entoar os habituais cantos simiescos que ouvia semana sim, semana não. Ganhou o respeito colectivo e no clube respondeu com golos e titulos. Muitos golos, muitos titulos.
Nunca gostou de ser segundo plano mas aguentou estoicamente o sucesso de Ronaldinho e depois o de Messi. Isso sim, foi sempre uma figura critica no balneário da vida nocturna do brasileiro e do argentino, no que o levou a chocar imediatamente com Guardiola, decidido a fazer da jovem estrela das pampas o eixo central do seu projecto. A saída de Barcelona coincidiu com a chegada a um Inter de Milão onde encontrar um técnico tão ambicioso e profissional como ele. Para Mourinho o camaronês tornou-se no joker perfeito, actuando até de defesa se necessidade havia, e com ele venceu a sua quarta Champions League (depois de ter sido o desbloqueador das duas vitórias do Barcelona em Paris e Roma) e mais uma liga, a quinta do seu historial desportivo. Mas os desafios começavam a escassear e o envelhecido plantel do Inter já não era, propriamente, o lugar ideal para ir mais longe na sua corrida contra o tempo. Chegou o Anzhi, os milhões que ele sempre quis desde os seus dias a jogar em Nkon e um desafio radical. Homem habituado a fazer o inesperado, Eto´o embarcou na viagem mais louca da sua carreira.
O curioso de tudo isto é que o Eto´o, como os seus colegas, vai viver e treinar em Moscovo, a 2000 mil kilómetros do Daguestão, onde está sediado o clube e onde só se deslocará no dia dos jogos. Uma aventura pensada até ao mais minimo detalhe e que leva a viagem do pequeno camaronês dos trópicos de África à estepe russa. Um longo cruzeiro de um homem que conseguiu cumprir todos os seus objectivos e que já pode pensar na vida de milionário que o espera quando a bola deixar de rolar...
Jacques,
Bem vindo de volta como sempre.
Há três pontos no teu comentário que gostaria de rebater, embora concorde com a maioria das ideias que expôes.
- Milla foi considerado o melhor jogador africano do Século XX pela FIFA, isso a mim diz-me muito pouco. É uma manobra de marketing, dessas que a FIFA domina como ninguém. Longevo é-o, mas grande, pouco. Tu analisa a carreira do Milla (Football Against the Enemy é um bom livro para começar) e verás que além de desportivamente a sua carreira ter sido absolutamente insignificante, tanto em África como em França, a verdade é que Milla é o exemplo perfeito de um futebolista que se agarra a regimes dictatoriais para crescer e que vive á sombra de uma politica informativa bastante selectiva. Se há alguém que eu conheça. no futebol africano, que não tem critério para falar de moral é ele.
- Para mim o Etoo é um grande futebolista. Gosto de avaliar futebolistas pelo seu talento, pelo seu mester, e não pelo que são ou fazem fora do campo, tendência habitual de quem quer utilizar o futebol como um manuel de bons costumes. O caracter de Cruyff, Maradona, Best, Garrincha, Di Stefano ou Muller, para citar alguns dos grandes, também nunca foi grande coisa, mas são imensos futebolistas porque se valoriza o que fizeram no terreno de jogo. Em campo Etoo foi tremendo como poucos, versátil, eficaz, entregado. Fora dele cometeu imbecilidades tremendas, teve atitudes que oscilam da infantilidade ao egocentirsmo puro e duro, mas eu, pessoalmente, avalio futebolistas, não sou ninguém para avaliar pessoas.
- Aos 30 anos ele podia ter jogado onde quisesse, como o Drogba que continua a lutar no Chelsea e tem mais anos do que ele. Mas também imagino que um jogador com o palmarés e a experiência que ele já tem se sinta mais cansado da exigência do futebol de elite do que muitos possamos pensar. Como disse, e apontaste bem, ir para o Anzhi é uma decisão tipica dele e não excluo sequer daqui a 1 ano ou 2 a vê-lo outra vez em Espanha e Itália. Etoo é assim, imprevisivelmente previsivel!
um abraço
PS: Admiro muitissimo o jogador, como dizes no principio, mas há outros africanos que admiro mais. No entanto há algo no jogo de Etoo que me faz sentir que, excluindo Eusébio, é sem duvida o mais completo futebolista africano de sempre.
De jaques a 3 de Setembro de 2011 às 19:22
Falar de moral... Falar de carácter... Falar de bons costumes... É uma tentação perigosa, mas quem não gosta de ver exemplos como o de Cesc Fabregas, que para jogar no Barcelona aceitou pagar, do seu salário, um milhão de euros por ano ao Arsenal, em cada um dos cinco anos de contrato com o clube do seu coração!
O futebol mexe com emoções, e as pessoas gostam de ver futebolistas que tenham magia nos pés (sim, senhor), mas que também se saibam sacrificar pela equipa, pelos companheiros, pelo clube que amam (casos cada vez mais raros), ou pela Selecção.
Foi só isso que Eto'o nunca soube fazer, ao contrário de outros craque de moral duvidosa, a começar pelo tal Milla e a acabar em Pelé, que também tem de dar cobertura, ainda hoje, às trapalhadas do Ricardo Teixeira e do seu Mundial de 2014.
Dentro do campo, na efectiva "moral da bola", Milla, Pelé e Maradona foram homenzinhos, respeitados por companheiros e adversários, e num tempo de tantos meninos mimados a malta gosta de ver homenzinhos, principalmente se jogarem como nos nossos sonhos de criancinhas.
Abraço
Jaques,
O ser humano, no futebol e fora dele, procura sempre os seus heróis e os comportamentos a seguir. Pessoalmente nunca acreditei nisso nem nunca vi nos futebolistas um exemplo a ser, um porta-estandarte de atitudes, pelo contrário, gosto precisamente do oposto, do rebelde contra o estabelecido, contra o que se espera. Suporto mil vezes mais um Cantona, um Laudrup, um Romário, um Maradona ou um Ronaldinho do que um Messi, um Maldini ou um Weah.
No caso do Etoo, naturalmente, quem procura essa identificação não a encontra porque ele sempre foi e será um jogador/individuo, profundamente individualista. Mas sempre soube ser homem em campo.
Desbloqueou duas finais da Champions League, mandou calar um estádio com os gritos racistas e colocou em cheque a direcção de uma liga de futebol, foi sempre um jogador reconhecidamente entregado em treinos e jogos por onde quer que passou. O seu individualismo, hoje, perde-o mais do que perdeu a Garrincha ou a Best, mas não deixa de transparecer os mesmos traços. Não foi o grande Cruyff quem fez a birrinha de deixar o Ajax quando não votaram nele para capitão?
PS: Quanto ao Milla, continuo na minha. Um homem que só foi ao Mundial de 94 porque o governo camaronês, desejoso de vender-se ao mundo, lhe prometeu pagar a sua fundação, é tudo menos um patriota, um homenzinho. Se ainda falasses do Weah, forçado a sair do país por lutar contra a podridão em que os seus compatriotas vivem, agora o Milla, o homem que foi dispensado por onde quer que passou e de quem ninguém realmente se lembra, a não ser pelos golos do Mundial de 90? Milla tem a mesma importância para o futebol como Schillachi!!!!
um abraço
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