Desde aquela tarde quente de 1958 que o futebol argentino vive numa encruzilhada moral sem solução à vista. O fantasma de La Nuestra continua omnipresente a cada mandato e nem profetas e messias são capazes de criar uma sensação de continuidade e estilo no jogo da albiceleste. A Argentina sofreu na carne a ousadia de Zubeldía e Billardo e a utopia de Menotti e Bielsa mas os hinchas das pampas continuam sem saber a que joga a sua amada Albi.
Na ditadura da sorte pouco há a fazer.
Um penalty acabou com o billardismo quando este já cheirava a mofo. Outro penalty impediu Pekerman de escapar com vida a um dos jogos mais tristes de que há memória da albiceleste. E outro penalty, o de Tevez, acabou pacientemente com o sofrimentos dos hinchas argentinos. Porque, como o abate de um animal moribundo, esta equipa da Argentina precisava que a deixassem partir em paz. A derrota menos dolorosa permitiu a Messi sair aplaudido, a Sergio Batista continuar com o posto e aos argentinos a continuarem a sua própria via crucis moral. Nem no seu próprio torneio se livram desse fantasma de mais de 50 anos.
A sociedade argentina é, por defeito, a mais freudiana de todas as sociedades. Um dos mais belos e mais fascinantes países do mundo, a Argentina é também um quebra-cabeças sem solução, um desenho de Mafalda sem resposta. E o seu futebol está deitado no divã da moralidade há meio século. Passa da depressão à euforia de forma vertiginosa e muitas vezes encontramo-lo submergido num estado quase catatónico. Passou do estupor moral da brutalidade à admiração colectiva de um futebol que se assumia de esquerda e de todos. Conceitos misturados como só os argentinos são capazes. De tudo, menos de responder a essa imensa dúvida moral e existencial que os azota há tanto tempo. A invenção do Cinco, esse sacrificado jogador que a partir de então teve de carregar o peso da organização da selecção encontrou o oposto na glorificação do Enganche, do Diez, o artista, o último pantomino. Uma posição que só existe, de forma pura, no vocabulário futebolístico das pampas desde os dias de Onega até à morte lenta e dolorosa do mítico Riquelme. Nesse Mundial de 1966 a Argentina descobriu o 5 (Rattin) e o 10 (Onega) mas, sobretudo, percebeu que o sistema e o individuo viviam (e viveriam) uma relação de amor ódio. 40 anos depois na Alemanha verificou-se, uma vez mais, o mesmo confronto moral. Pekerman vencia, estava perto de eliminar a anfitriã, e no momento da dúvida preferiu retirar o 10 (Riquelme) e lançar um segundo 5 (Cambiasso) para acompanhar o titular (Mascherano). Foi o confirmar da morte do sistema histórico que Maradona enterrou ao tentar transformar Lionel Messi num falso Enganche, e que Batista confirmou ao lançar o genial Javier Pastore para o anonimato do banco. Com uma equipa partida os argentinos olhavam para o herdeiro de Onega, Ardilles e Riquelme e desesperavam. A que joga realmente a Argentina?
15 de Junho de 1958. O dia que mudou o rosto do futebol argentino. Ponto final.
Nessa gloriosa tarde de sol o mito de La Nuestra chegou ao fim debaixo de uma estrepitosa goleada (6-1) imposta pela modesta Checoslováquia. Os argentinos chegaram à Suécia como campeões continentais, sem os seus "angeles de cara negra" mas com a sensação de superioridade que habitualmente destrói as grandes equipas. Foi o seu pior Mundial de sempre, rematado naquela tarde por um combinado checo que nem se apurou para a fase seguinte. Quando voltaram a casa os jogadores argentinos sofreram humilhação após humilhação e o país renegou a herança cultural da Nuestra, a mentalidade de futebol de ataque que arrancou na década de 20 e que se manteve vigente durante quase três décadas.
Com o final da era de ouro chegou a época das trevas. Osvaldo Zubeldía transformou-se no Fausto do futebol argentino. Vendeu a alma ao diabo, moldou o seu Estudiantes de la Plata numa máquina de vencer e destroçou por completo o ideário artístico dos albicelestes. Definiu o 4-4-2 como táctica base, com o 5 e 10 no miolo como elementos chave na balança mas, sobretudo, deu ao jogo dos argentinos esse carácter de dureza e violência que ainda hoje subsiste. As alfinetadas dos defesas, as entradas dos médios centros e a falta de escrúpulos dos dianteiros valeram vitórias mas, sobretudo, criaram escola. A Argentina nunca mais se esqueceu que há uma forma feia de ganhar e mesmo quando surgiu o Hurácan de Menotti, o profeta da beleza, houve quem renegasse do ideário ofensivo e socialista do mítico técnico de Rosário. Menotti, génio como poucos, defendeu um regresso às origens mas pelo caminho pescou em Zubeldía algumas das ideias que mudaram o rosto, definitivamente, do futebol albiceleste. A sua selecção de 1978 era uma verdadeira mistura entre o talento (e com Maradona de fora, bem longe do ideário corajoso do Brasil de 58 entregue a outro menino genial, Pelé) e a força bruta. Um ideário que podia ser socialista mas que se integrou à perfeição no ritmo dictatorial de Videla, nos treinos intensos, nas vitaminas tomadas até à exaustão e nas vitórias polémicas que levaram a equipa da casa até ao seu primeiro titulo Mundial.
Menotti devolveu o orgulho estético aos argentinos mas nunca soube retirar essa picardia zubeldiana. O fracasso do Mundial de 82, com Maradona perdido no esquema do seleccionador da mesma forma que Messi não se encontra cómodo hoje, abriu portas a uma nova mutação genético, um regresso a um passado recente. Com Billardo chegou a cara mais suja do jogo da albiceleste, o lado mais provocador e violento do verdadeiro herdeiro de Zubeldía. O homem que inventou o 3-5-2 transformou o jogo numa batalha, os seus jogadores em legionários e o seu maior talento individual, num guerreiro de proporções mitológicas. Maradona não venceu sozinho o Mundial de 1986 porque ao seu lado havia uma máquina bem oleada para o proteger, mas foi o único que soube transmitir um pouco de perfume futebolístico a um país que perdia rapidamente qualquer traço de conexão com o futebol arte que sempre se aplaudiu na cancha. Quatro anos depois a Argentina foi ainda mais violenta e ainda mais decepcionante, agora que Maradona, também ele, tinha perdido a sua faceta artística. Billardo foi-se mas Basile continuou o seu legado e nem Bielsa, esse louco, soube romper com o malefício ideológico. O seu 3-5-2 era diferente do utilizado pelo Narigón, entregue à classe dos seus melhores artistas, mas até estes tinham perdido a magia. Quando Riquelme, desaparecido em Berlim, foi substituído e no seu lugar não entrou Saviola nem Messi (nenhum deles um Enganche puro) percebeu-se que a Argentina tinha chegado a uma encruzilhada final.
Desde então o problema deixou de ser o sistema táctico (que passou do 4-2-3-1 ao 4-1-3-2 ao 4-3-3), do lote de jogadores ou do seleccionador de turno. Batista não sabe a que joga a sua Argentina tanto como qualquer hincha. É um problema mental que asfixia o futebol de um país perdido em mil e um problemas do qual o futebol é apenas mero espelho. Contar com a suma individualidade, como é Messi, não é suficiente porque há muito que para os argentinos, ao contrário dos brasileiros, o sistema se tornou mais importante do que o homem. Quando enterrou o espírito da La Nuestra a Argentina enterrou os seus Messis se estes não se vissem rodeados de um esquema que atirasse para o campo a garra, violência e determinação dessa era pós-zubeldiana. Ardilles encontrou-o em 1978, nesse acosso constante que foi o Mundial videliano, e Maradona sentiu-o a cada passo que dava pelos relvados do México. Hoje sem sistema, sem rumo e, sobretudo, sem saber a que joga, a Argentina continua a ser uma presa fácil. O futebol da individualidade há muito que sucumbiu ao futebol colectivo. Messi sabe-o melhor que ninguém porque o seu melhor rosto vê-se quando joga na equipa que melhor sabe trabalhar o espírito corporativo do jogo. A sul do rio La Plata a longa sessão no divã continuará, talvez por mais 100 anos de solidão...