Nas sondagens e listados oficiais sobre os grandes treinadores da história ele nunca aparece. Não surpreende. O desconhecimento na era da globalização é maior do que possa imaginar e o nome de Maslov continua a ser um mistério para muitos. O homem que definiu o futebol contemporâneo morreu sem nunca ter passado pelo passeio da fama, mas 50 anos depois o seu legado é cada vez mais evidente. Talvez nunca tenha havido um treinador tão influente na história do jogo...
A última vez dói sempre mais. A de Viktor Maslov como treinador do Dynamo Kiev deve ter doido mais ainda.
Narra Jonathan Wilson no seu essencial Inverting the Pyramid, que o técnico moscovito foi despedido no hotel de concentração do Dynamo Kiev aquando de uma viagem a Moscovo para defrontar o Spartak local. No final do jogo a equipa saiu do estádio num autocarro rumo ao aeroporto. Ninguém falava. A meio caminho o autocarro parou diante de uma estação de metro. Maslov foi convidado a sair. Baixou pesarosamente as escadas e acenou aos seus jogadores. Chorou. Nunca o tinham visto chorar.
A cena é real e significou um ponto final na carreira do mais influente treinador do futebol moderno ao serviço do clube que serviu de balão de ensaio para os seus esquemas futebolísticos. Maslov ainda viria a vencer uma Taça da URSS com o Torpedo de Moscovo, dois anos depois, e um campeonato com os underdogs arménios Ararat Yerevan, mas a saúde débil já o minava por dentro. Em 1976 morreu na mais absoluta mediocridade e ninguém se lembrou dele durante anos até que alguns estudiosos começaram a analisar o jogo de trás para a frente e descobriram que este treinador a quem os jogadores chamavam carinhosamente de "Avôzinho", como é tão comum na Rússia a quem se tem um imenso respeito, tinha sido o mentor das grandes metamorfoses tácticas do beautiful game.
Maslov era, de certa forma, o oposto moral e emocional do seu sucessor em Kiev, o mítico Valery Lobanovsky. O que o ucraniano fez, partindo do principio cientifico, já Maslov o fazia, partindo do sentido comum que sempre orientou a sua carreira. Um técnico diferente a todos os niveis, o moscovita era conhecido por ser um dos entusiastas do modelo de auto-gestão. Consultava os jogadores para tudo e por várias vezes viu o capitão de equipa recusar que um jogador fosse substituído quando ele já tinha indicado ao suplente que se preparasse para entrar. Anos mais tarde, depois das acusações de falta de disciplina, os seus próprios jogadores vieram a público defendê-lo. Tratava-se apenas de uma mensagem que a equipa em campo recebia e respondia com a tranquilidade de que o jogo se ia resolver com os onze titulares. E sempre foi assim. Os seus registos em Kiev foram históricos e apesar da influência que detinha junto do Partido Comunista Ucraniano - que lhe permitia, entre outras coisas, recrutar vários jogadores de clubes mais pequenos com benefícios estatais - a forma como montou uma equipa capaz de desafiar o poder moscovita transformou para sempre o futebol soviético e estabeleceu as bases do que viria a ser o longevo mandato de Lobanovsky.
Pressing. Marcação à Zona. 4-4-2.
Palavras chave no vocabulário futebolístico de hoje mas que só existem no vocabulário desportivo a partir do momento em que Maslov as passa de um ideário em papel para o terreno de jogo. Durante os dez anos que medeiam a sua viagem ao Mundial da Suécia de 1958 e o zénite da sua equipa de Kiev, o técnico colocou em prática os conceitos que hoje fazem parte da bíblia de qualquer treinador.
Quando começou a treinar o Torpedo de Moscovo (na altura liderado pela estrela soviética Eduard Streltsov) decidiu aplicar o ideário táctico que viu na espantosa equipa do Brasil de Zezé Moreira. Entendendo, como poucos na altura, que o sucesso brasileiro dependeu, mais do que Garrincha, Pelé e Vavá, no jogo de Didi e no posicionamento de Zagallo. Ao voltar a Moscovo começou a ensaiar um jogo de toque no meio campo abandonando progressivamente o ritmo vertiginoso do WM. O 4-2-4 foi o seu primeiro sistema táctico - um caso de precocidade na Europa - mas foi, sobretudo, o seu conceito de pressing, que revolucionou por completo a sua forma de analisar o jogo. Observando o espaço que os defensores deixavam a Streltsov, Garrincha ou Kopa, começou a trabalhar o treino de pressão. O seu quarteto defensivo, mais do que esperar pelos rivais, tinha instruções de avançar sobre eles, reduzindo o tempo de manobra do contrário. Com isso melhorou significativamente os registos de golos sofridos do conjunto moscovita, antecipando em muitas ocasiões oportunidades claras de golo. O seu sistema de pressing provocou um aceleramento do jogo e obrigou, por outro lado, a ter um meio-campo capaz de temporizar e controlar os registos de posse de bola com discrição. Maslov procurou durante toda a sua carreira a versão soviética de Didi, o homem que parava o jogo do Brasil quando todos aceleravam. No duro e rígido futebol soviético a sua missão era complicada e essa mutação táctica levou muitas vezes a situações em que a sua defesa se via forçosamente descompensada.
Em 1964, depois de oito anos em Moscovo, aceitou o desafio de orientar o Dynamo de Kiev ucraniano. Aí encontrou as armas que precisava para colocar em prática o sistema que vinha idealizando há muito. Para tal teve de livrar-se de algumas das estrelas da companhia (entre as quais o aclamado Valery Lobanovsky) e a principio a sua presença sofreu com a eterna desconfiança dos ucranianos face a um treinador que tinha feito toda a sua vida desportiva em Moscovo. Mas rapidamente a relação entre técnico e equipa atingiu níveis de imensa cumplicidade e quando Maslov começou a mexer as peças do xadrez, a equipa seguiu-o entusiasticamente. No seu primeiro ano abandonou o 4-2-4 brasileiro e inventou o que hoje conhecemos como 4-4-2. Dois anos antes dos Wingless Wonders de Alf Ramsey, o russo abdicou do jogo de alas, a quem acusava de não terem critério para funcionar no jogo colectivo, e colocou um playmaker puro (o seu Didi) atrás do duo de pontas de lança com três homens no apoio directo atrás de si. Para aprofundar ainda mais o seu sistema de pressing (que apurava com sessões de treino intensas, inusuais à época) começou a desenvolver um sistema de marcação à zona que obrigava os jogadores a estarem atentos ao espaço e não ao homem. Quando um jogador passava pelo seu marcador, para evitar um desgaste físico desnecessário e um desajuste táctico, este simplesmente deixava-o para o homem seguinte. A conjugação do pressing a meio campo, do trabalho de marcação implacável e, sobretudo, da temporização do jogo com a bola no pé, encurtando o espaço, Maslov definiu os conceitos que Rinus Michels adaptaria no seu Ajax e que entrariam no vocabulário comum como "Futebol Total". Com o seu Dynamo Kiev logrou os melhores registos, vencendo duas ligas soviéticas e desafiando os potentados europeus, apesar de ter caído, no seu melhor ano, frente ao Celtic de Glasgow que se sagraria campeão europeu depois de um duplo encontro intenso.
Se na marcação à zona o conceito foi emprestado (e aperfeiçoado do exemplo brasileiro) já a pressão alta e o 4-4-2 são exclusivos absolutos do homem que não foi entendido pelo seu tempo mas que, a médio prazo, abriu o caminho para a evolução táctica que o futebol iria forçosamente seguir. O ritmo de jogo e a ocupação dos espaço, hoje verdadeiro obsessão, era algo tido como supérfluo até que Maslov entendeu todo o seu potencial. A sua influência só se pode comparar a Jimmy Hogan e Herbert Chapman, definidores dos modelos de jogo continentais e britânicos nos anos 20. Enquanto o mundo se debate entre Mourinho e Guardiola, Sacchi e Cruyff, Menotti e Michels, Ramsey, Shankly, Busby e companhia, a verdade é que todos eles são um pouco melhor treinadores porque um dia o "Avôzinho" decidiu inventar o futebol moderno!