Depois de doze anos Marcelo Bielsa regressa à Liga Espanhola. Não deixou grandes recordações aos adeptos espanhóis mas mais de uma década depois o técnico argentino é uma das grandes novidades da Liga. Traz consigo os seus particulares conceitos de tempo e espaço e um estudo detalhado da realidade vizcaína. Herda uma equipa de primeiro nível com legitimas ambições. E um projecto rendido à sua aura de revolucionário futebolístico. Na liga de Guardiola e Mourinho ele é o verdadeiro foco de interesse.
Na conferência de imprensa de apresentação da candidatura de Josu Urrutia, o novo presidente do Athletic Bilbao, Bielsa falou durante hora e meia.
Os jornalistas apontaram num papel tudo o que ouviam do técnico argentino. E era muito. Bielsa falou de táctica, de sistema de jogo, de posicionamento defensivo, de temporização, de jogadores da primeira equipa internacionais e de jogadores dos juvenis. Falou com o conhecimento de causa que só um fanático do estudo e da perfeição pode ter. Falou com a naturalidade de um apaixonado que olha para um desajuste táctico com o mesmo olhar clínico com que um cirurgião olha para uma perna fracturada. Com essa sede de corrigir o errado e de mandar o paciente para casa.
Bielsa é um doutor do futebol como o foi Menotti, talvez o seu mentor ideológico. E a bola que rola, o seu eterno paciente. Uma bola que se estende por tempos e espaços que escapam à maioria dos treinadores. Das pessoas do futebol. Os jornalistas pareciam aborrecidos com o discurso do homem que promete revolucionar o futebol rígido e previsível do Athletic Bilbao. Numa conferência por webcam, directamente de Rosário, as palavras de Bielsa anunciavam um futuro brilhante, realidade desconhecida de um clube que continua a apostar numa forte mensagem politica e social. Aqui só jogam bascos!
No final do discurso houve tempo para perguntas mas pouca paciência para questões elaboradas. Bielsa deu-se conta e pediu desculpas aos jornalistas por ter sido uma maçada. Ele próprio sabe que fala através de um vocabulário que poucos entendem. Talvez só ele e Deus. Mas apesar das desculpas e dos longos e apaixonados discursos, o argentino foi o eixo central que deslocou a vida do Bilbao. O clube foi a eleições e quando todos esperavam a reeleição de Fernando Macua - presidente há quatro anos e responsável pelo renascimento desportivo do clube, com Joaquin Caparrós no banco - eis que o ex-jogador Josu Urrutia chega com o Che Guevarra futebolístico debaixo do braço. A vitória foi esmagadora. Todos têm particular interesse em ver Bielsa de novo em Espanha. De novo ao comando de um clube de futebol.
Os últimos doze anos do treinador funcionaram como um retiro espiritual desportivo.
O que Bielsa logrou no campeonato argentino é pouco conhecido na Europa mas mesmo assim um logro impressionante. Chegou do nada e levou o Newell´s Old Boys da sua Rosário natal (a mesma cidade de Che Guevarra, a mesma cidade de Messi) a dois títulos consecutivos e históricos. Depois tomou a herança de Carlo Bianchi no Velez Sarsfield (herança pesada) e levou o conjunto azul a um novo titulo. Um sucesso estrondoso baseado num modelo de jogo iminentemente ofensivo, apostando numa defesa de 3, um meio-campo com sucessivas trocas de posição e um voraz apetite pelas redes contrárias. Bielsa redefiniu de certa forma o futebol argentino, repescou a herança de Menotti depois dos anos em que imperou o billardismo com Billardo e Alfo Basile como principais símbolos. Não surpreendeu ninguém que em 1998, depois do fracasso que significou a eliminação da albiceleste nos Quartos de Final do Mundial de França, ele fosse o homem que toda a Argentina queria para o posto de seleccionador. Bielsa tinha estado em Espanha, a treinar o Espanyol, mas a experiência não tinha corrido bem e "El Loco" decidiu afastar-se do intenso futebol de clubes. Aceitou o desafio e depois de uma Copa América sofrida chegou o Mundial da Coreia do Sul. Bielsa e os seus eram os grandes favoritos. A obsessão do técnico era tal que levou mais de 200 vídeos para a concentração para analisar todas as equipas que se podiam cruzar no seu caminho ao mais mínimo detalhe. Não foi necessário.
Numa dessas conjugações improváveis, a Argentina ficou pela fase de grupo no seu pior Mundial de sempre. Nem Gallardo, nem Ortega, nem Aimar, nem Piojo Lopez, nem Kily Gonzalez, nem Veron, nem Batistuta, nem Crespo, a nata de uma geração irrepetível, foram capazes de inverter a tendência suicida da equipa que dominou todos os jogos e só ganhou um, o mais inconsequente de todos eles. Bielsa foi criticado mas, mesmo assim, ficou para provar que a sua filosofia era válida. Dois anos depois deu à Argentina o único titulo que lhes faltava, as Olimpíadas. Nesse ano chegou à final da Copa América e apurou a Argentina para Mundial. De um momento para o outro disse adeus, com sensação de missão cumprida. E deixou o pais orfão de um guru especial único. Passado um breve hiato temporal aceitou rumar ao Chile e começar a trabalhar do zero. Adaptou à selecção andina toda a sua filosofia e transformou a Roja numa equipa de ataque irresistível. Depois do Mundial da África do Sul saiu, por divergências ideológicas com a nova direcção da Federação. Abdicou de uma indemnização choruda e de um contrato milionário com o Inter. Para ele Bilbao é mais do que um desafio.
Bielsa é um desses treinadores que fazem a diferença. Pela forma como aborda o jogo, pelo sentido de inovação técnico-táctica que sempre preconizou desde os primeiros dias como treinador principal. Quando Guardiola se decidiu a ser treinador foi até Rosário onde esteve onze horas seguidas a falar de táctica com ele, bebendo cada ensinamento. Todos os jogadores reconhecem que com ele o seu conhecimento futebolístico supera o da média dos atletas treinados por homens mais convencionais. Bielsa é um homem de ideias, de projectos, de filosofias. Nunca foi um treinador de resultados e, no entanto, resultados é o que esperam os adeptos do Bilbao, equipa que tem com Martinez, Herrera, Muniain, Iraola, Iraizoz e Llorente no onze. Será fascinante entender a relação entre um dos treinadores mais especiais do Mundo e um clube que faz das suas particularidades, a marca da casa. Bielsa e Bilbao, uma conjugação imprevisível e absolutamente irresistível.