20.00 horas. 28 graus e um fim de tarde perfeito numa Madrid mergulhada em plena revolução silenciosa. A tribo mereungue reune-se no seu santuário para testemunhar mais um ritual histórico. Duas horas depois os 60 mil que encheram o Santiago Bernabeu voltam a casa com a sensação de ter presenciado, pela enésima vez, um momento histórico. 41 golos e ninguém fala de outra coisa. A brutalidade do Pichichi e Bota de Ouro é inquestionável. Cristiano Ronaldo desafiou a história e reescreveu-a a seu belo prazer.
Não foram precisos mais de 4 minutos.
Se antes do jogo o debate nas bancadas resumia-se á discussão sobre os golos reais que o número 7 do Real Madrid levava no torneio, o desvio súbtil ao segundo poste, depois de uma combinação estudada perfeita entre Xabi Alonso e Sérgio Ramos, matou a conversa. 22 anos depois os 38 golos logrados pelo mexicano Hugo Sanchez (tantos como o anterior recorde do vizcaino Zarra) foram ultrapassados. A verdade é que Ronaldo já sumava então 39 pelo simples facto de que o polémico golo marcado em Anoeta, desviado nas costas de Pepe, tinha sido atribuido ao português pela Marca. O jornal que instituiu e atribui o prémio Pichichi desde os anos 50.
Mas, nesse estilo habitual da imprensa espanhola em hostilizar o jogador mais caro da história, durante o ano todos se negaram a aceitar a evidência. Afinal, Ronaldo competia com Messi, e esse golo era importante para desatar uma polémica estéril em que nenhum dos jogadores entrou. Quando o argentino abrandou o ritmo, concentrando-se no seu designio europeu, Ronaldo ficou só. E decidiu superar a história, mais do que o seu eterno rival. Em quatro jogos apontou nove golos e estableceu a sua marca final em 41. Nunca em Espanha um só jogador tinha ultrapassado a barreira dos 40.
Quando se atirou ao chão, para celebrar o golo, Ronaldo sabia-o. Mas sabia, também, que os mesmos que não lhe davam o golo de San Sebastian iriam negar-lhe sempre esse direito histórico. A partir daí, e até ao minuto 78, passou todo o jogo á procura do golo que lhe confirmava, definitivamente, como um ser á parte. Foi insistente, irritante até. Quando Benzema marcou o terceiro golo (Adebayor já tinha feito o primeiro do seu hat-trick), Ronaldo não se lembrou. Estava sentado no relvado, ainda irritado com o árbitro por não ter marcado uma falta que ele tinha toda a intenção de transformar em golo. Foi assim todo o ano, Ronaldo contra o mundo. Um mundo que tem por ele um despeito especial. Desde que chegou, em Julho de 2009, que nenhum jogador foi tão criticado e atacado no país vizinho como CR7. "Ese português, hijo puta es..." é o cântico habitual em cada estádio que visita o Real Madrid. Algo inédito com qualquer outro jogador. A imprensa não lhe perdoa o seu estilo próprio e até este ano repetiam-se nas criticas sob a sua inoperância nos jogos a doer. Em 2010/11 só não marcou no Camp Nou. Marcou o empate em Madrid com o Barcelona, marcou a Valencia, Villareal, Sevilla, Bilbao e Atlético de Madrid. Decidiu a Copa del Rey e ajudou a levar o Real Madrid ás semi-finais da Champions League. Juntou a isso 41 golos. Nunca um atleta se exibiu de forma tão brutal nos relvados espanhóis.
O final de tarde quente não aqueceu demasiado os animos do imenso Bernabeu.
A goleada de 8-1 ao Almeria podia parecer um trâmite para muitos adeptos, mas não era. Mourinho, em silêncio desde que a UEFA decidiu declará-lo persona non grata, queria superar a linha dos 100 golos e confirmar-se como a equipa mais concretizadorada liga. Para isso o Real, que já sabia que o Barça vencera por 1-3 em Malaga, tinha de marcar 6 golos. Marcou dois, na primeira parte, e passou os segundos 45 minutos a desafiar o relógio.
O público sentiu o espirito ambicioso de uma equipa de tracção dianteira (Alonso, Kaká, Ozil, Adebayor, Benzema e Ronaldo) e fez-se ouvir. Não é normal. Habitualmente a tribo merengue é silenciosa e tranquila. Vai ao futebol para contemplar, não para animar. Por isso Ronaldo também se queixa de não ter atrás de si o mesmo apoio popular que tem Messi no seu Camp Nou. Talvez porque, sentado no último anfiteatro do estádio mais imponente de Espanha, ainda se houvem muitos adeptos que criticam a politica desportiva de Florentino Perez, o homem dos milhões. Mas nem esses tiveram razão para queixar-se. A 10 minutos do fim José Mourinho lançou o enésimo canterano (nenhum treinador fez estrear tantos jogadores do filial numa época desde o primeiro mandato de Del Bosque), o avançado Joselu. Dois minutos depois Ronaldo transformou o seu ego goleador, já aparentemente saciado, e assistiu primorosamente o jovem de 20 anos que não falhou. Correu para abraçar o seu idolo. A goleada estava completa e com um selo da casa para o contentamento dos mais veteranos.
Quando o jogo acabou o Real Madrid finalmente pôde olhar-se no espelho e sorrir. Não venceu o titulo - por culpa dos muitos pontos perdidos com os últimos, incluindo empates em Almeria e Coruña, dois dos despromovidos - mas jogou um futebol fluido, ofensivo e atractivo. Cristinao Ronaldo olhou para a história e sorriu, sabendo que quem quer que venha no futuro é a ele que terá de bater. Especialmente se esse alguém é Leo Messi. O futuro, leia-se a próxima época, pareceu mais risonho do que nunca. Muitos voltarão hoje, para ver o Real Madrid Castilla lutar pela promoção à Liga Adelante. Outros preferem ficar uns minutos mais para aplaudir José Mourinho. O setubalense não conseguiu quebrar a hegemonia do Barça. Mas começou a mexer com a mentalidade do Real Madrid, a despertar o monstro adormecido. E os adeptos mais fiéis sabem-no.
Entre a brutalidade dos números do Real Madrid e a imensidão do recorde de Cristiano Ronaldo, o Barcelona pode sentir ainda mais orgulho da sua época. Mas ao sair do Bernabeu, já noite dentro, calor intenso e com todos os ouvidos no que se passa na não muito longinqua Puerta del Sol, há quem sinta que o ciclo blaugrana pode estar a terminar. Não surpreende ninguém que, no meio das camisolas blancas, haja alguns atrevidos com o equipamento do português dos dias de Old Trafford. Porque, como dizia um dos muitos vendedores ambulantes que rodeiam o estádio, hoje o cachecol mais vendido foi o do Manchester United. Os últimos a sentirem na pele o que é desfrutar da febre goleadora de um homem que só se olha a si mesmo no espelho quando pensa em bater todos os recordes da história.