Como pode a cor da pele influenciar uma decisão desportiva? O racismo europeu que nunca desapareceu debaixo da capa da hipocrisia social sempre encontrou no futebol um escape moral onde a cor da pele nunca permitiu marcar diferenças sociais. A grandeza de Pelé ou Zidane nunca se mediu pelo seu tom de pele. Mas em França, um país de muitas luzes e muitas sombras, a verdade é mais negra que a pele dos jogadores que a Federação Francesa de Futebol quer excluir dos seus programas de formação. É a verdade amoral de um país com memória curta e um sério problema entre as mãos.
Ser africano, caribenho, magrebino, asiático, negro, castanho, amarelo ou vermelho ainda é importante. Pelo menos em França.
E, surpreendentemente, no mundo do futebol. Porque aí o racismo faz menos sentido ainda. Está à vista de todos a qualidade de um atleta, independentemente da sua cor de pele, do seu credo. A sua performance fala por si, não precisa de passar por um canal de avaliação preconceituoso. Em França, país que há anos vive assustado com o seu próprio futuro, isso não é bem assim, nem nunca o foi. O racismo existiu sempre no futebol e de uma forma aberta e socialmente aceite. Os jogadores "importados" das antigas colónias nunca foram tratados ao mesmo nível que os herdeiros dos gauleses, seja lá o que isso for. Roger Milla, o ícone dos Camarões. andou durante anos em clubes pequenos do futebol francês e mais tarde reflectiu o seu desencanto pela forma como dirigentes, técnicos e colegas o tratavam simplesmente por ser negro. Até aos anos 80, e apesar de serem uma presença constante nos clubes da Ligue 1, eram raros os atletas negros, magrebinos ou mulatos que chegavam a representar a selecção. Até Just Fontaine, nascido em Marrocos ( e branco), chegou a ser questionado pela imprensa gaulesa por não ter nascido em território europeu. Com Tigana, Tresor e companhia a situação foi-se alterando. Os franceses aprenderem a aceitar lado a lado os imigrantes das ex-colónias com os emigrantes dos países europeus (como foram Kopa ou Platini, filhos de polacos e italianos respectivamente) junto com os "seus" heróis nacionais. Hoje talvez alguns deles fossem impedidos de actuar com a camisola dos Bleus. Porquê? Porque talvez excedessem as quotas de minorias étnicas que a Federation Française du Foot estava, em segredo, a preparar para o seu futebol de formação.
A polémica estalou quando foram divulgadas as conversas que muitos já sabiam que existiam nos bastidores.
Vários dirigentes e administrativos da FFF confessavam o seu desejo de instituir um número mínimo de lugares reservado para jogadores de ascendência caribenha (como Thuram), africana (como Desailly) ou magrebina (como Zidane) de forma a não asfixiar o progresso natural dos jovens filhos dos "franceses de verdade". Uma quota de 30% para satisfazer todos os interesses era a ideia da FFF. E nem sequer era nova. Este debate repete-se em França em todos os lados num país que ainda não entendeu que a sua identidade nacional não pode excluir todo aquele que não é branco, mas era um tabu no mundo do desporto. Porque se há alguém a que os franceses devem as suas grandes vitórias desportivas, esse alguém é certamente o "jogador imigrante". Os títulos em ténis de Yannick Noah, o talento dos principais jogadores das selecções de rugby e andebol e, acima de tudo, a selecção de futebol que entre 1998 e 2000 venceu tudo o que havia para vencer, falam por si.
Por isso mesmo quando a voz de Laurent Blanc se juntou ao coro de defensores deste gueto futebolístico, o país, ou parte dele pelo menos, entrou em choque. Porque Blanc era o capitão dessa selecção. Era o homem que tinha ganho tudo ao lado de negros como Desailly, Thuram e Vieira ou magrebinos da estela de Zidane. Aquele que melhor deveria entender que o sucesso da França de 1998 foi o sucesso do multiculturalismo é agora o primeiro que quer impedir que essa realidade se repita. Uma amoralidade profundamente perturbadora.
O homem que foi contratado para regenerar uma selecção em estado de sitio rapidamente caiu nas graças de todos. Jogadores, adeptos, dirigentes. Afinal Laurent Blanc era um professional respeitado e um treinador consagrado depois do seu sucesso com o Bordeaux. Aliás os seus primeiros meses à frente da equipa nacional não deixou nenhuma pista sobre o seu posicionamento porque à selecção chamou jogadores de todo o tipo de proveniências. E saiu-lhe bem. Blanc pediu desculpas públicas (ele que foi apanhado a dizer, sem papas na língua, que a poderosa Espanha não tinha esse problema porque não tinha "negros"). Mas isso pode não ser suficiente. O problema é que não é o único. O problema é que é apenas o rosto público de uma ideia enraizada entre dirigentes, treinadores e adeptos. As quotas às minorias no desporto são apenas o espelho das quotas que a sociedade francesa gostaria de aplicar em vários sectores chave do país. Blanc defendia-se, nas polémicas gravações. declarando estar farto de ver como Clarefontaine - a casa dos centros de formação dos gauleses - formava jovens que depois preferiam jogar pelos seus países de origem ou mesmo os países de origem dos seus pais ou avós. Que esse espaço e esses recursos estavam a ser desperdiçado em jogadores sem interesse em defender as cores de França e que podia ser dirigido aos jogadores autóctones. Demasiados negros, demasiados magrebinos, poucos brancos. Uma ideia que não faz sentido mas que tem muitos adeptos. E que podia começar a ganhar forma não fosse a divulgação pública das chamadas gravadas por um membro da FFF de origem argelina, Mohammed Belkacemi. O homem que era responsável por avaliar o trabalho dos jovens que chegavam à selecção vindo das pequenas academias dos banlieus disse basta a uma politica que existe, não oficialmente, em muitos clubes do "hexágono". E não só.
Muitos foram os rumores que falavam em desentendimentos na selecção francesa de 1998. Emanuelle Petit escreveu sobre isso, Aime Jacquet calou-se sobre isso. O sucesso pagou o silêncio de um país que depois de voltar a sentir o sabor da derrota voltou a relembrar fantasmas antigos. Blanc queixa-se agora da fórmula que o fez campeão do Mundo. Ser negro ou magrebino tornou-se um crime público para o futebolista francês quebrando toda a moral de uma sociedade moderna. Quebrando toda a moral de um país que saiu para a rua para glorificar negros, brancos e magrebis da mesma forma, com o mesmo entusiasmo. Talvez se Nasri e Anelka tivessem levado a França à final de Joannesburg nada disto fosse conhecido pelo público. Porque nos bastidores a amoralidade da FFF sempre esteve presente à espera de uma oportunidade para se fazer ouvir.