Sábado, 7 de Maio de 2011

Como pode a cor da pele influenciar uma decisão desportiva? O racismo europeu que nunca desapareceu debaixo da capa da hipocrisia social sempre encontrou no futebol um escape moral onde a cor da pele nunca permitiu marcar diferenças sociais. A grandeza de Pelé ou Zidane nunca se mediu pelo seu tom de pele. Mas em França, um país de muitas luzes e muitas sombras, a verdade é mais negra que a pele dos jogadores que a Federação Francesa de Futebol quer excluir dos seus programas de formação. É a verdade amoral de um país com memória curta e um sério problema entre as mãos.

 

 

 

Ser africano, caribenho, magrebino, asiático, negro, castanho, amarelo ou vermelho ainda é importante. Pelo menos em França.

E, surpreendentemente, no mundo do futebol. Porque aí o racismo faz menos sentido ainda. Está à vista de todos a qualidade de um atleta, independentemente da sua cor de pele, do seu credo. A sua performance fala por si, não precisa de passar por um canal de avaliação preconceituoso. Em França, país que há anos vive assustado com o seu próprio futuro, isso não é bem assim, nem nunca o foi. O racismo existiu sempre no futebol e de uma forma aberta e socialmente aceite. Os jogadores "importados" das antigas colónias nunca foram tratados ao mesmo nível que os herdeiros dos gauleses, seja lá o que isso for. Roger Milla, o ícone dos Camarões. andou durante anos em clubes pequenos do futebol francês e mais tarde reflectiu o seu desencanto pela forma como dirigentes, técnicos e colegas o tratavam simplesmente por ser negro. Até aos anos 80, e apesar de serem uma presença constante nos clubes da Ligue 1, eram raros os atletas negros, magrebinos ou mulatos que chegavam a representar a selecção. Até Just Fontaine, nascido em Marrocos ( e branco), chegou a ser questionado pela imprensa gaulesa por não ter nascido em território europeu. Com Tigana, Tresor e companhia a situação foi-se alterando. Os franceses aprenderem a aceitar lado a lado os imigrantes das ex-colónias com os emigrantes dos países europeus (como foram Kopa ou Platini, filhos de polacos e italianos respectivamente) junto com os "seus" heróis nacionais. Hoje talvez alguns deles fossem impedidos de actuar com a camisola dos Bleus. Porquê? Porque talvez excedessem as quotas de minorias étnicas que a Federation Française du Foot estava, em segredo, a preparar para o seu futebol de formação.

 

A polémica estalou quando foram divulgadas as conversas que muitos já sabiam que existiam nos bastidores.

Vários dirigentes e administrativos da FFF confessavam o seu desejo de instituir um número mínimo de lugares reservado para jogadores de ascendência caribenha (como Thuram), africana (como Desailly) ou magrebina (como Zidane) de forma a não asfixiar o progresso natural dos jovens filhos dos "franceses de verdade". Uma quota de 30% para satisfazer todos os interesses era a ideia da FFF. E nem sequer era nova. Este debate repete-se em França em todos os lados num país que ainda não entendeu que a sua identidade nacional não pode excluir todo aquele que não é branco, mas era um tabu no mundo do desporto. Porque se há alguém a que os franceses devem as suas grandes vitórias desportivas, esse alguém é certamente o "jogador imigrante". Os títulos em ténis de Yannick Noah, o talento dos principais jogadores das selecções de rugby e andebol e, acima de tudo, a selecção de futebol que entre 1998 e 2000 venceu tudo o que havia para vencer, falam por si.

Por isso mesmo quando a voz de Laurent Blanc se juntou ao coro de defensores deste gueto futebolístico, o país, ou parte dele pelo menos, entrou em choque. Porque Blanc era o capitão dessa selecção. Era o homem que tinha ganho tudo ao lado de negros como Desailly, Thuram e Vieira ou magrebinos da estela de Zidane. Aquele que melhor deveria entender que o sucesso da França de 1998 foi o sucesso do multiculturalismo é agora o primeiro que quer impedir que essa realidade se repita. Uma amoralidade profundamente perturbadora.

O homem que foi contratado para regenerar uma selecção em estado de sitio rapidamente caiu nas graças de todos. Jogadores, adeptos, dirigentes. Afinal Laurent Blanc era um professional respeitado e um treinador consagrado depois do seu sucesso com o Bordeaux. Aliás os seus primeiros meses à frente da equipa nacional não deixou nenhuma pista sobre o seu posicionamento porque à selecção chamou jogadores de todo o tipo de proveniências. E saiu-lhe bem. Blanc pediu desculpas públicas (ele que foi apanhado a dizer, sem papas na língua, que a poderosa Espanha não tinha esse problema porque não tinha "negros"). Mas isso pode não ser suficiente. O problema é que não é o único. O problema é que é apenas o rosto público de uma ideia enraizada entre dirigentes, treinadores e adeptos. As quotas às minorias no desporto são apenas o espelho das quotas que a sociedade francesa gostaria de aplicar em vários sectores chave do país. Blanc defendia-se, nas polémicas gravações. declarando estar farto de ver como Clarefontaine - a casa dos centros de formação dos gauleses - formava jovens que depois preferiam jogar pelos seus países de origem ou mesmo os países de origem dos seus pais ou avós. Que esse espaço e esses recursos estavam a ser desperdiçado em jogadores sem interesse em defender as cores de França e que podia ser dirigido aos jogadores autóctones. Demasiados negros, demasiados magrebinos, poucos brancos. Uma ideia que não faz sentido mas que tem muitos adeptos. E que podia começar a ganhar forma não fosse a divulgação pública das chamadas gravadas por um membro da FFF de origem argelina, Mohammed Belkacemi.  O homem que era responsável por avaliar o trabalho dos jovens que chegavam à selecção vindo das pequenas academias dos banlieus disse basta a uma politica que existe, não oficialmente, em muitos clubes do "hexágono". E não só.

 

 

 

Muitos foram os rumores que falavam em desentendimentos na selecção francesa de 1998. Emanuelle Petit escreveu sobre isso, Aime Jacquet calou-se sobre isso. O sucesso pagou o silêncio de um país que depois de voltar a sentir o sabor da derrota voltou a relembrar fantasmas antigos. Blanc queixa-se agora da fórmula que o fez campeão do Mundo. Ser negro ou magrebino tornou-se um crime público para o futebolista francês quebrando toda a moral de uma sociedade moderna. Quebrando toda a moral de um país que saiu para a rua para glorificar negros, brancos e magrebis da mesma forma, com o mesmo entusiasmo. Talvez se Nasri e Anelka tivessem levado a França à final de Joannesburg nada disto fosse conhecido pelo público. Porque nos bastidores a amoralidade da FFF sempre esteve presente à espera de uma oportunidade para se fazer ouvir.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 03:15 | link do post | comentar

4 comentários:
De 10A a 8 de Maio de 2011 às 00:01
É lamentável que o Homem ainda faça distinções absolutamente primárias tendo por base o tom ou a cor da pele, o local de nascimento, ou o apelido de família. E se em todos os domínios da vida tal distinção é incompreensível, no desporto - que tem dado sucessivas lições de união da humanidade desde o nascimento das Olimpíadas da era moderna - isso é completamente absurdo.
Que tais considerações surjam de um jogador cujo ponto mais alto da sua carreira foi obtido precisamente no seio de uma das selecções mais caleidoscópicas de que há memória, cujo trabalho em equipa dentro de campo era memorável e que, pelo menos aparentemente, tinha uma grande união, é que me entristece. Sobretudo pelo enorme exemplo de acefalia dado por Blanc, que, vivendo essa experiência por dentro, nem sequer percebeu a lição que ajudou a dar ao mundo e à França em particular, e insiste em retomar a ideia mofada de que é legítimo reduzir alguém a coisas que não têm a mínima importância.


De Miguel Lourenço Pereira a 8 de Maio de 2011 às 11:51
A10,

Não é por acaso que escolhi aquela imagem como exemplo desta gritante amoralidade. O Blanc sabe perfeitamente que a França multicultural é uma realidade e funciona no desporto como se calhar em nenhum outro sector da sua sociedade. Fala dos jogadores negros como se não tivessem existido Pelé, Jairzinho, Barnes, Ronaldos e companhia, maestros da técnica pura, como se fossem apenas "bestas" humanas.

Uma desilusão profunda mas que não surpreende num país que continua sem entender que 1/5 da sua popualação não entende a França como o bastião dos Asterix e companhia.

um abraço


De Tiago a 8 de Maio de 2011 às 18:33
Miguel,

Para não variar um grande artículo da tua parte.

Tenho curiosidade em saber quais serão os resultados desportivos de uma França tão mesquinha....

Abraço


De Miguel Lourenço Pereira a 8 de Maio de 2011 às 20:10
Obrigado Tiago ;-)

Basta imaginar uma selecção sem Evra, Benzema, Diarras, Menez, Anelka, Malouda, Boumsong, Sakho, Mandanda, Remy e companhia e veriamos onde está a França hoje em dia.

um abraço


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