Há noites assim. Noites que convidam à épica histórica. Noites que ensinam como se sonha. As memórias recentes de noites históricas não estavam tão perdidas assim na penumbra. A contundente vitória do FC Porto frente ao Villareal não dita apenas o destino provável de uma eliminatória. Não permite apenas sonhar com uma final histórica para o futebol português. Permite entender que o jogo é mais do que um jogo, que a épica é sempre algo mais do que uma ilusão.
Quando Falcao colocou a bola num recanto de tal forma escondido ao olhar perdido de Diego Lopez, o estádio do Dragão sentiu o fim do peso de uma memória. Durante anos os adeptos azuis e brancos viveram com a mitica vitória frente á AS Lazio. Foi o inicio da era Mourinho, como se conhece, e abriu as portas do reinado europeu dos dragões. Nunca mais, nem na corrida para Gelsenkirchen, houve tanta emoção durante 90 minutos. Até hoje. Precisamente até ao golo de Cani. Um belo golo de uma grande equipa, como sempre demonstrou ser o Villareal, que estava a ser mais perigosa e mais certeira nas poucas ocasiões que o jogo permitia. Um golo que matou uma primeira parte equilibrada onde o FC Porto dominou com a bola mas em que o perigo era do celebre Submarino Amarelo espanhol. E que lembrou Claudio Lopez, esse argentino endiabrado que abriu o sonho dos adeptos da Lazio. E dos portistas também. Sem o saber.
Depois nunca mais houve luta. Cinco torpedos, cinco verdadeiros tiros ao alvo que afundaram um sólido submarino, uma equipa perfeitamente colocada no terreno de jogo mas que não teve oxigénio e cabeça para aguentar a avalanche ofensiva dos locais. Guarin e Moutinho, dois verdadeiros dínamos no miolo, permitiram estender a teia que amarrou por completo o talento de Cazorla, Valero e Bruno. E depois surgiu Falcao. Talvez o melhor ponta de lança puro do ano no futebol europeu. Talvez um dos jogadores mais determinantes do futebol actual, o colombiano destroçou com o seu timing perfeito o Villareal. Um penalti ganho e convertido de forma eximia, escondendo fantasmas recentes. Um gesto técnico primoroso, depois de mais uma lição de superioridade física de Hulk, que os espanhóis nunca souberam controlar, e dois cabeceamentos tão certeiros como o outrora mítico Jardel. Tudo noite de fantasmas antigos, tudo noite de evocações de glórias passadas. E tudo numa noite de um imenso sentido histórico. Não pelo provável apuramento mas pela dimensão da autoridade de uma equipa que há um ano apenas vivia na amargura de um fim de ciclo quase inevitável.
André Villas-Boas é, sem dúvida, o mentor desta rebelião. Deste grito de guerra.
A sua atitude ao intervalo transmitiu a tranquilidade que faltava e a motivação escondida. Se o Villareal controlou inicialmente o seu dispositivo táctico inovador - com Cristian Rodriguez mais como médio interior, abrindo a ala a Alvaro Pereira e abdicando assim do 4-3-3 habitual - com a pressão alta e asfixiante do segundo tempo não houve forma de lidar. A bola que na primeira parte circulava sem grandes pressas no segundo tempo lembrou-se de correr. E nunca mais parou. Velocidade, eficácia, garra, palavras de ordem de uma atitude que foi a base para a reviravolta.
Villas-Boas sabe do poder que a mente tem sobre os seus. Motiva-os como fazem poucos técnicos no futebol actual e o fantasma, outro, de Mourinho, é cada vez mais uma sombra distante. Quem diria.
Depois de humilhar, e o termo certo é esse, os russos do CSKA e Spartak de Moscovo, depois de bater, com esforço, sorte e eficácia o poderoso Sevilla, o Villareal parecia ser um desafio á altura. E esta equipa, ao contrário do que diz o resultado - mas também por isso - é uma grande equipa e soube estar como tal no Dragão. A táctica de Garrido funcionou e a equipa soltou-se cedo da pressão do FC Porto para explorar as falhas de marcação defensiva que a linha de quatro bem avançada deixava atrás. O golo de Cani parecia indicar tudo aquilo que se viveu á posteriori. Com o valor a dobrar do golo, o clube português sabia que precisava de mudar. E mudou. Não no esquema táctico, não nos interpretes, nem sequer na atitude. Mas na forma de olhar olhos nos olhos o rival. Hulk encarou, Falcao moveu-se, Guarin e Moutinho circularam e a bola nunca mais se sentiu cómoda nos pés dos espanhóis. Um, dois, três, quatro, cinco. Contas fáceis de fazer, contas habituais nesta corrida europeia. Contas de uma equipa que não conhece limites. Em Portugal, comprovadamente. Na Europa, inequivocamente. Independentemente do que espera os lusos no Madrigal - um clima fantástico mas que sentirá certamente a grandeza da tarefa - a épica remontada, essa lembrança de Sevilla, começa a sentir-se de forma cada vez mais intensa. Porque se os saudosos ainda se lembram dessa equipa como a cumbre da era Mourinho, o seu falso discípulo, André Villas-Boas, terá de viver com a sua própria sombra a partir de agora porque já não á volta atrás. A história, a do jogo, a que realmente conta, já tratou de guardar-lhe um lugar especial. A Europa, essa dimensão estrutural de um jogo ás vezes perdido em picardias nacionais, há muito que desconfia e agora sabe bem de que matéria se faz este renovado FC Porto.
Em Dublin, se a tendência se confirmar, a festa será portuguesa. Seja o Braga, seja o Benfica, "uma noite portuguesa, com certeza", é um facto consumado que a presença do FC Porto foi ganha a pulso, tal como há oito anos atrás. E se a Europe League não é a Champions League, porque está claro que não o é, três dos semi-finalistas têm praticamente garantido o lugar na elite europeia em 2011. Um forte aviso de que há outra face do futebol europeu para lá dos Clásicos, das polémicas e da confusão emocional em que se tornou a prova rainha da UEFA. E entre os três nenhum pode assinar uma época tão memorável como o FC Porto. Com dedo do mestre André, com a atitude de uma cultura desportiva, com um sonho que não esquece fantasmas antigos...com um conceito de épica que é o mesmo que dá sentido ás cores da História.