A globalização transformou o rosto do futebol contemporâneo de forma inegável. Mas ainda há pérolas e diamantes escondidos que o grande público desconhece. O trabalho dos observadores mudou com o tempo mas a sua essência permanece igual. Eles são a alavanca de qualquer projecto desportivo de sucesso. E ás vezes, sem que o pensemos, ditam as modas do futuro. São os rostos invisiveis neste circo mediático. Olhar para o futuro agora é uma missão quase impossível. Menos para eles...
Uns clubes precisam de vender. Outros têm dinheiro para comprar. Assim se fazem os negócios. Mas no mundo da bola há negócios e negócios.
Nem todas as instituições podem gastar 100 milhões de euros num só homem, por muito que seja o melhor. Ou, já que estamos, 200 milhões em quatro, porque há que pagar as contas no fim do mesmo. Nem todos os clubes são o Real Madrid, a mais conhecida instituição internacional à hora de por o dinheiro sobre a mesa. Mas nem todos são o Athletic Bilbao que praticamente produz tudo o que consome e que compra ocasionalmente jogadores num circulo tão restrito que nunca há espaço para muita imaginação. São duas filosofias dispares. No meio está a normalidade. E, já sabemos, há normalidades e normalidades.
O papel do observador, o popular olheiro, é hoje mais importante do que nunca. A lei Bosman mudou o rosto do futebol europeu e, por arraste, ditou também as mudanças a nível mundial. Revolucionou o futebol sul-americano que se tornou numa fábrica de exportação constante, abriu ao mundo o mercado africanos e deu forma ao mercado asiático. Sem a lei Bosman hoje, talvez, muitos dos grandes jogadores não europeus que actuam no Velho Continente ainda estariam nos seus países de origem. Todos sabemos que o desaparecimento das limitações de jogadores não nacionais não se limitou a destroçar o futebol de formação europeu. Fez com que o dinheiro chegasse a países que sempre viveram na raia do negócio futebolístico. E, por arraste, levou os olheiros a terras impensáveis há vinte anos atrás. O que antes passava por um trabalho tranquilo de observação local e regional transformou-se numa labor global. Todos os grandes clubes sabem que têm de ir mais além. A internet e as telecomunicações encurtaram as distâncias e todos os treinadores têm as suas particulares dvdetecas de exibições prometedoras. Mas o cheiro do terreno continua a ser fundamental e os voos encheram-se de enviados especiais de todas as espécies prontos a descobrir, como os antigos exploradores, a nova rota para a Índia.
Nesta nova dimensão poucos clubes souberam lidar com os novos tempos como o Manchester United.
Rever cada jogada de Javier Hernandez é um elogio constante ao trabalho de prospecção de um clube de primeiro nível mundial que ainda se importa com o trabalho dos seus olheiros. Porque, não nos enganemos. O Barcelona apoia-se na sua "cantera", recrutando miúdos também noutros pontos do Mundo muito cedo mas depois empapa-os de "barcelonismo" e depois só volta a mergulhar no mercado para gastar boas quantias ou para tapar buracos na estrutura local. Daniel Alves, Zlatan Ibrahimovic, Yaya Touré ou Ronaldinho, Etoo, Deco e Giuly não foram, propriamente, descobertas de olheiros mais informados que outros. E o mesmo se aplica a outros gigantes como Inter, AC Milan, Real Madrid ou Bayern Munchen. A chegada de Carlos Queiroz foi fundamental mas a visão de Alex Ferguson ditou essa nova filosofia dos Red Devils. Que lhe permitiu reconstruir as suas equipas até à exaustão.
Javier "Chicharito" Hernandez é um grande jogador, destinado a grandes momentos. Mas já o era há um ano atrás quando o serviço de olheiros do Man Utd se decidiu a apostar nele de forma imediata ignorando a petição do Chivas de ficar com o avançado um ano mais. Jim Lawler, chefe dos olheiros do United, recebeu vários relatórios dos olheiros locais. Ficou tão impressionado que decidiu passar um mês no México a vê-lo jogar em pessoa. E não admira ninguém que à posteriori se soubesse que, como ele, também passaram pelo radar Guardado, Dos Santos, Vela e Barrera, outras promessas locais desconhecidas então no Velho Continente. Depois do o estudar ao detalhe, Lawler aprovou a contratação recomendando a Ferguson que se antecipassa ao Mundial, onde se esperaria que o jovem acabaria por brilhar. E assim foi. Nisto tudo, o que realmente surpreende é a capacidade de adaptação do mexicano que evitou assim seguir o exemplo de outras descobertas espantosas da equipa de observadores dos ingleses. Esses são os mesmos que pescaram Diego Forlan, Giuseppe Rossi, Gerard Piqué, Nemandja Vidic, Anderson (com quem já tinham um pré-acordo quando este chegou ao FC Porto), os irmãos da Silva e, claro, Cristiano Ronaldo. Todos eles chegaram a Old Trafford por valores irrisórios comparativamente com a sua situação actual. Alguns afirmaram-se de imediato (Vidic), outros precisaram de tempo (Ronaldo) e outros, pura e simplesmente, não aguentaram a exigência e foram brilhar para outras paragens (Rossi, Forlan, Pique), provando que o trabalho de observação tinha sido perfeito. Hernandez destaca talvez pela sua rápida adaptação e pelo seu preço ridículo o que faz dele, já, a mais bem sucedida contratação da era Ferguson. Não é que tenha o mesmo valor de Schmeichel, Cantona, van Nistelrooy, Rooney ou Ronaldo, mas tem potencial para o lograr e já o demonstrou com juros. É o espelho de um trabalho bem feito.
Os olheiros que o clube inglês tem nos quatro cantos do Mundo têm ajudado o técnico escocês a superar as sucessivas birras dos seus melhores jogadores (Beckham, van Nistelrooy, Ronaldo), sempre preparados para sair quando atingem a sua melhor forma. Com estes backups constantes, mesmo quando o dinheiro escasseia - e as finanças do clube há muito que estão no vermelho, literalmente - são fundamentais para que o Manchester United esteja perto de um feito histórico, só logrado por outro clube inglês: 3 finais da Champions League em quatro anos.
Muitos citam o trabalho de formação do Arsenal e a verdade é que a rede de observadores dos gunners inclui alguns dos melhores do mundo nisto da prospecção. O problema do clube londrino está na estrutura que não permite estabelecer uma ponta entre o presente e o futuro. Ferguson mantém consigo os seus braço-direito e dá espaço à afirmação dos mais novos. Wenger atira (porque é forçado, muitas vezes) os seus jogadores aos leões às vezes cedo demais. E paga o preço. São dois clubes com filosofias distintas mas com uma politica de prospecção muito similar, em tudo diferente aos modelos espanhóis e italianos que esperam sempre que outro clube actue antes, como um colchão. Em Itália é fácil ver o Napoli, Palermo, Fiorentina, Udinese e companhia arriscarem nos Cavani, Pastore, Jovetic, Sanchez e depois aparecerem em cena os grandes colossos que pagam mais do que deviam para os recrutar. Isso resulta também da legislação do Calcio que só permite a inscrição de um extra-comunitário por temporada. Mas também é um espelho da cultura do medo. Kaká, Coutinho, Vucinic foram sempre a excepção, nunca a regra. Essa filosofia mediterrânica, que se vive também em Espanha, França e Portugal, de que um clube grande só contrata jogadores de qualidade contrastada tem muito a ver com a realidade financeira de cada país. Clubes como o Sevilla ou o Villareal só podem chegar ao topo como o têm feito, com boas redes de olheiros rápidos a antecipar movimentos. Depois sabem que estão resignados a vender aos Madrid e Barcelona que esperam a sua hora para agir. A rede de olheiros do Barcelona é de tal forma desastrosa que os Henrique, Keirisson, Caceres, Giovannis e companhia sempre foram deixados em evidência, comparativamente com o produto local. Em Madrid, já se sabe, os milhões impedem que negócios como os de Marcelo ou Higuain se repitam. Durante anos ambos os jogadores, verdadeiras pérolas descobertas antes do tempo, sofreram o estigma de terem custado pouco para uma instituição habituada a pagar tanto.
O futebol latino, uma vez mais, vê-se atrasado nesta corrida atrás das jovens pérolas. Portugal escapa, ligeiramente, pelas relações privilegiadas com a América do Sul mas, essencialmente, pela sua constante necessidade de vender. Em Inglaterra (e, a pouco e pouco, na Alemanha e Holanda, talvez os pioneiros nesta matéria) há tempo, paciência e dinheiro. Portanto não estranha que aí se concentrem também os mais hábeis observadores do Mundo. Nem todos acabam nas ilhas, que o problema da adaptação impede muitas vezes que pérolas de outras longitudes se afirmem na dura Premier, mas as suas referências estão lá, nas gavetas, para uma memória futura. Enquanto o sul da Europa paga o preço do sucesso, o futebol inglês paga para garantir o futuro. E paga menos. E ganha mais. E desfruta com Javier Hernandez com um sorriso nos lábios. Porque sabem que, lá no fundo, são capazes de ter razão.