Pinto da Costa é um homem desorientado. O fracasso não é um conceito a que esteja habituado. Depois de mais de trinta anos, o presidente do FC Porto fez dos títulos e do reconhecimento global o seu cartão de visita. Mas o seu egotismo também tem as suas consequências. Para os adeptos dos Dragões a mais recente chama-se Paulo Fonseca. O presidente do clube tricampeão nacional criou um pequeno monstro e agora não sabe o que fazer com ele. Porque todos sabem que a origem de uma época de desnorte recai na mais temerária de todas as suas decisões.
Sempre incisivo com a imprensa, o mito Pinto da Costa forjou-se (também) com tiradas inesquecíveis para os jornalistas sedentos de sangue. Testemunhei em pessoa, trabalhando, como o presidente do FC Porto consegue ser criativo, perspicaz e incisivo com a imprensa. Mas no final do jogo com o Estoril, e a sua subsequente presença à porta do parking interior do estádio do Dragão, esse Pinto da Costa foi substituído por um ogre desorientado e ultrapassado pelas circunstâncias. Era a primeira derrota para o campeonato em casa dos Dragões em cinco anos. Mais um dos muitos recordes negativos estabelecidos esta temporada. Interrogado pelos jornalistas sobre o futuro do treinador, um dos inevitáveis responsáveis pela situação, ao presidente azul-e-branco faltou-lhe o jogo de cintura dos seus tempos áureos. Foi agressivo, mal-educado e ditatorial. Normalmente os grandes homens quando começam a ver o poder (ou a razão) a escapar-se-lhe das mãos transformam-se em algo parecido. E momentos como este são raros na carreira de Pinto da Costa.
Desde que assumiu a presidência do clube, em 1982, apenas por cinco vezes se viu perante esta situação. Nada mal. As duas primeiras soube resolve-las bem. Foram apostas arriscadas e pessoais que saíram mal. Tanto Quinito como o regresso de um sempre contestado Ivic não caíram bem com os adeptos e os jogadores. Duraram pouco. Para o lugar do primeiro, Pinto da Costa conseguiu resgatar Artur Jorge da sua primeira aventura por Paris. A equipa falhou o título nesse ano (apesar de estar só a um ponto da liderança no momento da troca) mas foi campeã no ano seguinte. Quatro anos depois, quando o bicampeão brasileiro Carlos Alberto Silva voltou ao Brasil, o líder dos dragões decidiu recuperar Ivic. O técnico jugoslavo esteve pouco tempo no cargo apesar de uma histórica vitória em Bremen (com uma equipa a jogar com cinco defesas). Bobby Robson, despedido pouco antes por Sousa Cintra enquanto liderava o campeonato, também não conquistou o título mas lançou as bases do Pentacampeonato. Foram dois erros graves sem grandes consequências pelo acerto e o timing na tomada de decisão presidencial. Mas também induziram o líder do FC Porto a crer na sua própria infalibilidade. E a política de riscos foi aumentando e com ela o desnorte.
O ponto critico no eterno mandato de Pinto da Costa aconteceu na era pós-Mourinho.
O próprio treinador sadino tinha sido uma correção de um erro inicial (previsível) chamado Octávio Machado. Mas quando o campeão europeu (e de tudo) partiu para Londres, ao presidente do FC Porto não se lhe ocorreu melhor ideia que contratar um italiano sem prestigio, experiência e flexibilidade para o cargo. O disparate Del Neri não sobreviveu à pré-época e o seu sucessor, Victor Fernandez (uma velha paixão) também não aguentou para lá do Natal. Numa espiral autodestrutiva o terceiro acto foi ainda pior. José Couceiro piorou os registos do seu antecessor e os dragões perderam o tricampeonato exclusivamente por culpa próprio. O mesmo é dizer, por consequência da megalomania de Pinto da Costa. Desde então o modelo manteve-se com um parêntesis - Jesualdo Ferreira - mais consequência das circunstâncias (o bater da porta de Co Adriaanse com a época a começar, do que por vontade própria. Tanto o holandês como, mais tarde, Villas-Boas, Vitor Pereira e Paulo Fonseca seguiram o mesmo padrão de treinadores quase desconhecidos, sem experiência e fáceis de controlar por uma direcção cada vez mais preocupada com realidades paralelas do jogo do que, propriamente, com uma filosofia de sucesso a médio prazo. O clube aumentou exponencialmente a sua faceta de emblema vendedor, reduziu ao mínimo os ciclos de treinadores e jogadores, sempre á procura do próximo negócio milionário. O sucesso desportivo deixou de ser a consequência de um bom trabalho feito para ser o oxigénio necessário para manter a escalada de gastos nesta corrida ao El Dorado. Ferido de morte pelas escutas do caso Apito Dourado, Pinto da Costa foi perdendo o fulgor de outrora, retirando-se estrategicamente para a sombra, delegando cada vez mais poder na tribo aduladora que o rodeava e se preparava para colher os despojos. O que antes era uma forte direcção pessoal escondeu-se atrás do manto sagrado da SAD e dos negócios e homens que circulavam à sua volta. Mas para manter essa espiral de contratações, valorizações e vendas era necessário manter a linha de treinadores que pedem pouco e agradecem muito porque, na prática, sabem que sem o clube não são ninguém. Com o dinheiro investido e a qualidade individual ao longo dos anos, um FC Porto liderado por um treinador de prestigio poderia ter ido muito mais longe de onde foi. Mas nas mãos de jovens turcos com vontade de agradar, o desnorte tornou-se inevitável. E o maior desnorte possível chegou com Paulo Fonseca. Em quatro anos o antigo jogador do clube (por um par de jogos, para os mais esquecidos) passou da III Divisão para a Champions League. Rapidamente deu para perceber que era mais uma aposta de risco que saía mal. Corrigido a tempo, corria o risco de tornar-se numa anedota. Mas a Pinto da Costa faltou-lhe a sagacidade e força de outros momentos. Talvez "queimado" pelos seus erros anteriores, preferiu esperar. E à medida que o cenário ia piorando, o divórcio com os adeptos e jogadores confirmando-se, a inactividade do presidente parecia cada vez mais evidente. Paulo Fonseca poderá sair antes da época mas será sempre demasiado tarde. E se o erro na sua escolha podia ser o erro de qualquer um, mantê-lo no cargo durante oito longos meses vai contra todos os instintos de liderança de um presidente sem igual na história do futebol português.
Para os adeptos do FC Porto a situação de Paulo Fonseca é nova. Não pela evidente incapacidade do treinador em lidar com a situação e com o cargo. Não é o primeiro nem será o último treinador promissor a falhar o salto a um grande. Acontece em todos os lados. A situação é mais grave porque evidencia a evidente perda de liderança (e de qualidades de liderança) do homem em quem os adeptos sentiam que podiam confiar em todas as circunstâncias. E um sinal, evidente se fazia falta, que todos são finitos e que o futuro do FC Porto pós-Pinto da Costa tem tudo para ser similar ao que sofreu o Benfica e o Sporting no final das suas respectivas épocas douradas. Não será um final abrupto (ambos clubes tiveram quase uma década no topo, partilhando o sucesso com o seu sucessor, antes de cair) mas o ciclo histórico de quase três décadas que Pedroto idealizou e Pinto da Costa concretizou já esteve mais longe. O Império Romano caiu muito depois do seu fim efectivo. Paulo Fonseca, sem o saber, pode ser a primeira pedra num caminho de obstáculos para o futuro. O próximo defeso - e a soma de decisões do presidente dos dragões a vários níveis - poderá ser o mais importante da história moderna do clube que dominou como nenhum outro a história do futebol português.
O futebol não é um mundo estranho. É um espelho. Que nos reflecte a nós, os que dele bebemos com ânsias de emoção a partir de uma existência tranquila. Talvez por isso (também por isso) é impossível ser-se no futebol diferente do que se seria no quotidiano, não preto ou branco mas uma palete de constantes cinzas. Lamentavelmente o poder da opinião pública, a procura constantemente pelo maniqueísmo, levou para os campos os debates ideológicos do bem contra o mal esquecendo-se de que, quando falamos de Humanos, falamos de erros e enganos. Os que o negam rapidamente são apanhados na sua própria rede. São os fariseus do jogo.
Um penalty polémico. Um resultado para alguns, inesperado. Um triunfo por dois golos a zero que deixa praticamente sentenciada uma eliminatória que parecia mais equilibrada à primeira vista. O treinador derrotado, secamente, aproveita a conferência de imprensa para lavar as suas culpas, o seu esquema mais defensivo, especulativo, vitima desse eterno medo ao golo sofrido em casa que vale a dobrar. Culpa o árbitro. Cita teorias da conspiração. Critica a sua nacionalidade, como se houvesse árbitros de primeira e segunda de acordo com a sua competitividade. Talvez até se esqueça que ele próprio vem de um país periférico. Não faz mal. No final do seu discurso repleto de criticas contra a arbitragem diante dos membros da imprensa, provavelmente será punido pela UEFA. Falou demais. Falou sobre aquilo que os códigos de conduta da organização não permitem que se fale. E a história guardará o episódio.
Sem nomes, sem citações concretas de jogos, apenas pela lembrança popular, seria fácil associar o treinador em questão. Há uma corrente de opinião que demoniza os que exprimem a sua opinião sem tentar agradar a todos. Quem está no mundo do futebol quer ganhar. Pode querer algo mais, uma imortalidade que nem sempre a vitória concede, mas o apetite ganhador é o que forja os campeões. Mesmo que morram a tentar cumprir os seus objectivos. Para um treinador, a personagem mais solitária do universo milionário do futebol, as queixas são parte do trabalho. É uma forma de auto-defesa fácil e certeira. Desviar as atenções para fora enquanto se procuram solucionar os problemas dentro. É antiga. Helenio Herrera e Bill Shankly faziam-no nos anos sessenta a nível global, mas desde que o futebol é futebol sempre houve espaço nas crónicas para criticas aos árbitros, aos relvados, ao jogo violento ou ultra-defensivo dos rivais, à falta de atitude, a conspirações. Todos os treinadores passaram por essa porta. Uns mais do que outros. Uns de uma forma mais educada do que outros. Mas há aqueles que o assumem. E os que não. Os primeiros são demonizados, quando dão a cara. Os que utilizam essa ferramenta mais vezes ou de forma mais virulenta, transformam-se no alvo dos puristas, dos românticos (os mesmos, provavelmente, que têm o maravilhoso Red or Dead na sua lista de livros favoritos) que os acusam de sujar a imagem do jogo. Os segundos, alabados pelo seu fair-play, são canonizados no acto. São os que estão acima de qualquer suspeita, os que defendem outro modelo de jogo. Os que se distanciam moralmente dos primeiros para receber o coro de aplausos de quem os eleva às altura. Quando perdem, e todos perdem em algum momento, facilmente se esquecem do seu compromisso ideológico. E são possuídos pelo espírito do mal, o espírito dos demónios das salas de conferência. Esse é o momento em que os eleitos se transformam no que realmente são, fariseus.
O primeiro paragrafo do texto podia referir-se a José Mourinho.
Ao seu comportamento pouco edificante no final da meia-final da Champions League, em Abril de 2011, disputada entre o seu Real Madrid e o Barcelona no Santiago Bernabeu. Um jogo equilibrado tacticamente (com um Real Madrid de contenção defensiva frente a um Barça especulativo e paciente) até ao momento em que Pepe é expulso por agredir Dani Alves com uma entrada violenta sobre o joelho. Depois desse momento, com dez (e sem treinador no banco) o Real rendeu-se ao génio de Messi que resolveu o jogo com duas pinceladas de magia. Game over. No final, Mourinho proferiu mais um dos seus célebres discursos citando uma lista de árbitros e as suas "naturais" incompetências e suspeitas. Era uma arma habitual nele nos momentos de fragilidade. Ninguém esperava, sinceramente, outra coisa. Foi genuíno até ao fim. Autodestrutivo, injusto e oportunista (como poderão dizer os adeptos do Manchester United, Deportivo la Coruña ou do próprio Barcelona nas suas duas Champions conquistadas). Mas igual a si mesmo. Mas o mesmo paragrafo também podia referir-se a Manuel Pellegrini. Sim, ao profeta chileno do jogo bonito, dos treinadores silenciosos e pacíficos. Dos homens que nunca se queixam dos senhores do apito. Dos que acreditam que a competição é pura no seu estado natural e que o que se passa no campo deve ficar no campo. Dias antes do jogo contra o Barcelona - aproveitando uma sequência de dois jogos com o Chelsea - Pellegrini conversou amigavelmente com o prestigioso jornalista da Marca, Santiago Segurola. Segurola, amigo pessoal de Valdano, Guardiola, Raúl e Pellegrini, um quarteto nada inocente nisto das ideologias, foi um dos homens responsáveis por queimar a imagem pública de Mourinho desde a sua chegada ao Bernabeu. Estava no seu direito. É um cronista fabuloso e um dos jornalistas que melhor interpreta o futebol. Na sua entrevista, guiada até ao ponto inevitável da comparação estilística e ideológica, Segurola quis traçar a diferença entre Mourinho e Pellegrini nas formas. Conseguiu que este afirmasse, não sem pudor, que tudo aquilo que Mourinho (e os que se comportam como ele) representam o que ele não gosta no futebol. O que seria incapaz de fazer. Os mind games, as queixas arbitrais, as provocações. Tudo isso distrai do que vale a pena. Da "pelota", que nunca se mancha. Soou bem como quase sempre tudo o que Pellegrini diz soa. Mas ontem, no City of Manchester, o chileno transformou-se quando viu uma polémica decisão destroçar o seu próprio plano de contenção defensiva. Frente a um Barcelona que, como em 2011, foi muito superior, o City quis defender primeiro, aguentar depois e procurar levar o jogo para o Camp Nou. O mesmo esquema de Mourinho. No inicio da segunda parte, como em 2011, um erro posicional grave de Demichelis provocou um penalty e uma expulsão que Messi não desaproveitou. Alves marcou perto do fim o 2-0 e fechou praticamente a eliminatória. Como em 2011.
Pellegrini tinha razões para queixar-se. A falta sobre Messi é evidente (e a expulsão também) mas nas camaras percebe-se que é fora da área. Nas camaras. Em campo é impossível apreciar-se qualquer falta e a marcação do penalty tem toda a lógica do mundo. Poderia questionar-se se a jogada era válida, já que a recuperação de bola do Barcelona tinha chegado de uma falta prévia, de Busquets sobre Navas, segundos antes. Mas treinadores como Pellegrini não deviam falar destas coisas. Até que falam. E dizem exactamente o mesmo que os demónios de gabardine. Pep Guardiola, provavelmente o melhor treinador dos últimos vinte anos da história (decididamente o mais apaixonante de seguir) passou pelo mesmo processo de versão imaculada alimentada por uma imprensa sectária até ao momento em que as coisas correram mal. Depois de se ter queixado de um fora-de-jogo (no limite) na final perdida da Copa del Rey de 2011, na temporada seguinte, com o título já perdido, chegaram as suspeitas de que algo não estava bem no mundo arbitral. Como sucede com todos os treinadores - que são humanos, como tu e eu - a derrota traz o nosso lado mais obscuro à superfície. Ninguém está imune.
O caso de Pellegrini vs Mourinho tem sido utilizado este ano até à saciedade. Não só porque são os dois grandes rivais pela Premier como também porque o chileno foi despedido do Santiago Bernabeu para ter sido substituído pelo português. Foi para Málaga, um clube que Mourinho disse que nunca treinaria, levantando ondas de polémica sobre os pequenos injustiçados, segundo o próprio chileno. O mesmo que ontem disse que um árbitro sueco não tem validade por não estar habituado à exigência da alta competição. Talvez os argentinos pudessem ter pensado o mesmo de um treinador chileno, há alguns anos atrás. Mourinho já passou por esse caminho. Várias vezes. Consegue ser uma pessoa desprezível em muitos sentidos. A sua agressão a Tito Vilanova não pode ser esquecida. As suas provocações, muitas vezes, roçam o ditatorial. Não é flor que se cheire. Mas é sempre o mesmo. Pertence a esse grande colectivo de treinadores humanos, com falhas e acertos. Pellegrini era, até ontem, o profeta dos surreais, dos homens impolutos que não se deixam tocar mesmo quando lhe apertam o coração. A realidade, na vida como no futebol, é bastante mais complexa. Eriksson nunca se esquecerá de Pellegrini como Frisk se lembrará sempre de Mourinho. E nós, de este lado da vedação, saberemos sempre que nem tudo o que vem na capa dos jornais é certo!
Sempre que penso em Moeller-Nielsen penso em Portugal. Penso na esperança de um futuro, não melhor. Mais feliz. Depois de uma década com uma selecção maravilhosa, viciada nas derrotas inesperadas, os dinamarqueses encontraram em Møller Nielsen o antidoto para a depressão. Foram campeões da Europa e não se perguntaram como e porquê. Não fazia falta. Depois de uma geração dourada pode sempre haver ouro. É preciso é saber como encontrá-lo.
Lembro-me de cada jogo do Euro 92. Consumi o torneio até à exaustão possível.
Caderneta de cromos completa (para quem não se lembra, a caderneta incluía a Jugoslávia), vídeo sempre preparado para gravar jogos, resumos e uma bola esfarrapada, destinada a ser chutada da mesma forma que as estrelas golpeavam debaixo do estranho sol sueco o esférico oficial do torneio. Lembro-me de tudo e no entanto, lembro-me pouco da Dinamarca. A razão é simples e prosaica. Não eram uma equipa para recordar. Jogavam pelo seguro, com quatro defesas duros, cinco médios rápidos e correctos e Brian Laudrup, livre de ataduras tácticas, só na frente. Sim, Brian. Os que adoravam a ideia de um triunfo dinamarquês faziam-no, seguramente, porque tinham na retina a mítica Danish Dynamite. Os anos dourados de Elkjaer, Simonsen, Lerby, Molby, os irmãos Olsen...e Michael Laudrup. Mas o maior génio da história do futebol nórdico não estava lá. Tinha preferido ficar na praia onde o resto da equipa se preparava para descansar depois de uma dura temporada. A suspensão da Jugoslávia, acabada de entrar em guerra, abriu uma vaga surpreendente para os dinamarqueses. Laudrup, que não suportava os métodos de Moeller-Nielsen, preferiu retirar-se temporalmente. Já imaginava um destino similar ao dos torneios anteriores. Enganou-se. Sem ele (também porque jogavam sem ele) os dinamarqueses sobreviveram a uma fase de grupos soporífera com a pior versão de sempre das selecções inglesa e francesa numa competição oficial. Apuraram-se como segundos, atrás dos anfitriões, aguentaram a soberba holandesa até ao penalties e confiaram tudo às mãos gigantes de Peter Schmeichel. Quando os alemães deram conta, já tinham perdido uma final que a Dinamarca não podia ganhar. Mas que tinha ganho. Moeller-Nielsen, o homem que atirou o futebol dinamarquês vinte anos atrás no tempo, foi coroado rei de Copenhague. O mundo ao contrário.
Se alguém pergunta a um adepto de futebol neutral com algum conhecimento da história do jogo quem foi o treinador mais importante da história do futebol dinamarquês, a resposta sai fácil. Sepp Piontek, alemão de nascimento, pegou num país onde o futebol era um desporto quase amador e transformou-o numa das maiores potências do continente europeu. Durante dez anos a Danish Dynamite fez o mundo sonhar. Mas um dinamarquês poderá ter outra resposta na ponta da língua. Poderá dizer que, para eles, esse homem foi Richard Moeller-Nielsen. O que faz uma vitória.
Nielsen era um treinador cinzento, sem grande inspiração. Apostava, sobretudo, na organização táctica do sector defensivo como pedra de toque das suas equipas. Era um homem precavido. Defender primeiro, atacar depois e com o menor número de toques a ser possível. Era um dos seguidores da escola britânica que tinha conquistado a Escandinávia nos anos setenta, entrando pela Suécia e chegando rapidamente até aos vizinhos noruegueses e dinamarqueses. A sua etapa ao comando da selecção dinamarquesa provou ser o apogeu dessa corrente. Foi durante esses anos que a Noruega chegou a ocupar o primeiro posto do ranking FIFA, participando em dois Mundiais consecutivos. E que a Suécia, depois de três décadas cinzentas, chegou a duas meias-finais de competições internacionais. Era o renascimento do futebol nórdico a partir de um ideário táctico e emocional em tudo distinto ao que celebrizou os dinamarqueses dos anos oitenta. Mas compensava. Com dois títulos - o Euro 92 e a Taça das Confederações de 1995 - Moeller-Nielsen deu ao povo dinamarquês o que nunca tinham tido: sucesso. A "Geração Dourada" tinha ficado presa na nostalgia romântica dos anos 80. Eram bons, muito bons. Tinham o apoio dos adeptos neutrais internacionais. Mas não sabiam ganhar. De repente, uma geração repleta de ilustres desconhecidos, onde o jovem Laudrup, Kim Vilfort e Schmeichel eram as figuras de proa, aparece do nada e a partir da ordem, da organização defensiva e do trabalho colectivo começam a ganhar. Uma redenção emocional como houve poucas na história do futebol mundial. A eliminação na fase de qualificação para o Mundial de 1994 (uma derrota em Sevilha com a Espanha, a besta negra dos dinamarqueses) e um pobre Euro 96 (graças, a entre outros, a cabeça de Sá Pinto) acabaram com o reinado de Moeller-Nielsen. A sua carreira caiu em picado porque a sua fórmula era limitada, pouco inspiradora e estava datada. Com um ar mais ofensivo, com Laudrup de novo ao leme, os dinamarqueses realizaram um brilhante Mundial de 1998 e qualificaram-se para os quatro torneios seguintes. Mas o seu papel na história não pode ser esquecido. E serve de aviso. Principalmente para países como Portugal.
Eternos derrotados, os portugueses já sofreram o fim de três "Gerações de Ouro". Aconteceu no pós-66, no pós-86 e depois de 2006, quando ficou evidente que nem a união do melhor dos meninos de Riade e da Luz com o FC Porto de Mourinho e a aparição de Cristiano Ronaldo era suficiente para apagar as mágoas. Para muitos adeptos a sentença final estava dada. Se nem com esta equipa a selecção portuguesa vencia, nunca seria a hora. Mas talvez isso fosse o que pensavam os dinamarqueses. Antes de 1992, antes de Moeller-Nielsen. Ele é o exemplo perfeito de que um treinador sem chama nem brilho pode encontrar um atalho para o sucesso pelas vias mais inesperadas. Provavelmente, no futuro, ninguém se lembre dele em comparação com o romantismo da geração anterior. Mas no livro de história só há um selecionador dinamarquês campeão da Europa. E é ele. O homem que hoje nos deixou para sempre e cujo o legado será sempre analisado com a suspeita de quem não se lembra sequer de se o seu cromo aparecia na colecção oficial!
Sou um nostálgico. Vivo preso no tempo. Cresci nos anos oitenta. Acho que isso tem grande dose de culpa. A era em que brincar ao futebol significava passar horas na rua. Jogar com peças de legos montadas para fingir equipamentos reais. Ou com os jogadores de Subbuteo, muitos sem cabeça. As consolas eram protótipos do que são hoje, os jogos de gestão desportiva um enigma e o futebol, esse, era outro. Daqui a uns meses vou ter o prazer de rever nostalgicamente as minhas velhas conhecidas Colômbia e Bélgica num Mundial outra vez. Tenho saudades desses tempos. E de todas as outras equipas dessa era que ficaram pelo caminho.
Um dos meus sonhos é ter uma réplica perfeita do equipamento da Dinamarca de 86. Ou da Holanda de 88. (quem os tiver, o email de contacto está abaixo à esquerda)!
Sim, sou assim de estranho. Mas já me contentava com aquela camisola colorida da Colômbia de Asprilla ou da Jugoslávia de Stoijkovic. Sei adivinhar o ano de um jogo só pelo equipamento das respectivas selecções. Vivi a era das três tiras nos ombros da Adidas. Dos desenhos da Nike na camisola do Mundial dos Estados Unidos ou das tiras finas tão popularizadas nos anos oitenta por escoceses, franceses e dinamarqueses. Tenho saudades de ver a Preud´Home fazer defesas impossíveis a Hassler ou de imaginar como um desdentado Jimmy Leighton era capaz de defender sobre a linha um tiro de cabeça de Tore Andre Flo. Durante essa geração o futebol europeu consagrou grandes equipas. A maioria dos adeptos sabem quais são, não é preciso que me repita. Mas houve uma série de actores secundários igualmente brilhantes que me roubaram o coração. É como no cinema, onde tantas vezes prefiro apreciar aquele actor de low profile no fundo do plano em vez de perder-me no grande plano ao protagonista. Essas eram as equipas que me tocavam na alma. Talvez porque, nesses dias, Portugal fosse um desses secundários. Não vivi, de forma consciente, o Mundial de 1986 e por isso tive de esperar até já estar no ciclo para ver a selecção das Quinas jogar uma competição internacional. Quando Portugal disputou o seu primeiro Mundial depois de Saltillo estava a dois meses de entrar na universidade. Toda a adolescência tinha passado a pensar que a selecção que então equipava - que saudades - de vermelho e verde, seria sempre um jogador de segunda numa mesa de especialistas em bluff.
Esses eram os dias em que a Europa tinha menos países. Menos estados independentes significava equipas mais fortes e místicas.
Lembro-me da devoção especial que sentia pela Jugoslávia e como rapidamente a emergente Croácia me conquistou o coração. Por razões clubísticas sempre torci pela Eslovénia e pela Sérvia. Mas tudo me levava sempre àquela equipa que mereceu melhor sorte no Itália 90, com a orgulhosa estrela vermelha sobre o centro do equipamento. O mesmo podia dizer da União Soviética e o icónico CCCP. O que me custou aprender a dizer Rússia e a pensar na lógica de existir uma Ucrânia em jogos oficiais quando todas as estrelas soviéticas, de vermelho e branco, eram do Dynamo de Kiev. E que dizer da última época dourada do futebol nórdico. Da Suécia de Dahlin, Anderson, Thern, Brolin e de um adolescente rastafari chamado Henrik Larsson. Ou da reinventada Dinamarca, sempre e quando Michael Laudrup estivesse em campo (as horas que passei a treinar "aquele" passe). Para não esquecer-me, evidentemente, da histórica Noruega que chegou ao topo do ranking FIFA com um estilo de jogo importado directamente da segunda divisão inglesa com os seus gigantes nas duas áreas a impor a sua lei. Nesses tempos, quando Portugal tinha de defrontar este tipo de equipas, não havia Ronaldo que nos salvasse. Era drama assegurado.
Mas o que realmente me produz nostalgia é o desaparecimento progressivo de verdadeiras selecções históricas. Daquelas que durante mais de meio século definiram o que era o futebol europeu. Tenho saudades de um Escócia vs Áustria muito antes de ter sabido que esse foi o duelo estético e ideológico que definiu o modelo de jogo que mais me apaixona. Tenho uma tremenda nostalgia quando vejo as camisolas da Hungria cruzaram-se com as da Bélgica, pensando nesses jogos perdidos no tempo em que os Nealazi e os Scifo se cruzavam com naturalidade. Com o passar dos anos, a Europa reinventou-se e nasceram novas potências como Portugal e várias selecções desapareceram do mapa. Raramente vemos equipas do leste europeu que não estejam suportadas por magnatas do petróleo ou do gás, ou clubes nórdicos e britânicos da velha guarda. Isso provocou a decadência de selecções que na era pré-Bosman estavam sempre lá. Eram os dias em que a França, Itália, Espanha ou a Inglaterra podiam falhar um Mundial ou um Europeu e ninguém punha as mãos na cabeça. No seu lugar havia sempre alguém disposto a aproveitar a ocasião como a Bulgária de 94 ou a Dinamarca de 92.
Vai ser muito difícil que a situação mude. A ampliação dos Europeus a vinte e quatro equipas - uma decisão que discordo por completo - poderá permitir um último hurrah a algumas destas selecções. Mas a magia nunca será a mesma. O guarda-redes escocês terá uma dentição perfeita. Os belgas terão afros mas nenhum barbudo. Os carecas búlgaros terão tatuagens no crânio e os avançados noruegueses serão imigrantes perfeitamente integrados na sociedade nórdica e não guerreiros vikings de outros tempos. Tenho saudades desse futebol porque sei que passe o que passar, nunca mais vai voltar. E tenho saudades do Escócia vs Áustria porque quando me sentava a ver estes jogos só tinha de me preocupar por fazer o trabalho de casa no carro, a caminho da escola, sem que se dessem conta.
Toca-a outra vez. Quando ninguém dava por eles, quando ninguém acreditava. Toca-a outra vez. Quando os bajitos estavam na lista de transferíveis e os "todocampistas" enchiam as capas de revistas. Toca-a outra vez. Com a moral pelo chão, com as angústias do passado ao virar da esquina. Toca-a outra vez viejo! Luis Aragonés reinventou o futebol espanhol misturando a sua herança histórica, que sacou das entranhas de um país farto de desilusões, com as melhores inovações tácticas da escola centro-europeia que aterraram no país. O elo perdido numa história de desencontros que se fez magia, uma noite em Viena.
Luis nunca esqueceu o tiro que Sepp não soube parar. O tiro perfeito. O livre indefensável que ia acabar com a hegemonia espanhola do Real Madrid na competição que os merengues diziam ser sua por direito divino. A bola entrou, os colchoneros celebraram. O título parecia seu. Cedo demais. Reina, mais entretido em fazer-se fotos do que em estar atento aos últimos lances do encontro, não soube parar o remate desesperado de Schwarzenbeck. Uma bola que nunca devia ter entrado. Mas que custou a Aragonés o título que lhe faltava no dia do seu adeus.
Esse foi o momento que talvez passou pela cabeça do Sabio de Hortaleza quando Torres e Lahm correram a disputar o mesmo esférico. Ao seu lado, no banco, o filho do seu velho amigo Reina susteve a respiração. El Niño foi mais rápido, mais ágil e mais eficaz. Desta vez os alemães teriam de ver como Aragonés, sobre todos os outros, levantava o troféu. Outra taça, certo, mas o seu ajuste de contas pessoal. Despedido antes da competição ter sequer arrancado, sabia que era outra forma de dizer adeus. Em Viena ninguém lhe estragaria a festa. A sua obra estava completa, a trajectória como jogador reivindicada como técnico. A história teria de memorizar o seu nome, quer quisesse quer não. Podia ir em paz.
Luis Aragonés foi o homem que redefiniu o Atlético de Madrid da era de Vicente Calderón. Como jogador e como treinador permitiu ao clube manter uma identidade emocional própria numa época em que o seu rival a norte de Madrid parecia invencível. Com as suas declarações polémicas, carácter indomável e espírito guerreiro, Luis uniu a paróquia à volta de uma ideia comum. A fortuna nunca lhe acompanhou como merecia nas suas sucessivas etapas no banco do Manzanares. Mas ninguém naquelas bancadas se esqueceu do seu contributo. A história do futebol, essa, lembrar-se-ia dele por uma invenção inesperada que roubou o coração do Mundo. Pela sua simplicidade, romantismo e honestidade. Um comentador desportivo chamou-lhe tiki-taka. Para Luis era apenas o velho espírito espanhol aliado com o que melhor holandeses e jugoslavos tinham trazido para o país através de treinadores como Michels, Cruyff, van Gaal, Boskov ou Miljanic. Um estilo de jogo que não abdicava dos princípios emocionais da "Fúria" mas que lhe dava critério, pausa e sabedoria. Um modelo que fazia da bola e não dos ídolos das bancadas, o protagonista principal. Aragonés podia suspeitar mas não saber que a sua invenção dominaria o mundo do futebol com uma frieza germânica. Tudo começou na sua cabeça.
A vida de Luis foi marcada por episódios conflitivos.
As declarações racistas sobre Henry como forma de motivar a Reyes. A exclusão dos pesos-pesados da era Clemente e Camacho da selecção, a começar pelo "intocável" Raúl Gonzalez. A sua crença absoluta nos "bajitos", jogadores que então eram desprezados pelos seus próprios adeptos. Enquanto o Camp Nou assobiava a Xavi Hernandez e a direcção pensava em vendê-lo ao AC Milan, o técnico fez dele a sua bússola. O pequeno Iniesta, que alguns pensavam que não tinha lugar no meio-campo catalão, foi o seu joker. Com eles chegaram também os Silva, os Cazorla, os Alonso e os Fabregas à selecção que ele insistiu de chamar de Roja. A sua senha de identidade, da mesma forma, dizia, que os brasileiros eram a canarinha e os argentinos a albiceleste. Sem conotações políticas. Aragonés tinha vivido a Transição e sabia que no seu tempo essa expressão estaria condenada. Com ele, e a sua teimosia, o país aprendeu a aceitar a palavra que definia o seu combinado nacional. O que não tinha medo de confiar o meio-campo a um brasileiro reconvertido. O que permitia a Sérgio Ramos as suas loucuras. O que decidiu ignorar as velhas guerras Madrid-Barça para forjar um selo de união que ainda hoje perdura, para lá de todas as tentativas da imprensa e de treinadores de quebrar o elo. Sobretudo, uma selecção que aprendeu a tocar a bola como nenhuma outra. Onde se jogava por valor e não por estatuto. Um esquema que começou a desenhar-se no Alemanha 2006 e que foi traído pelo último sopro de vida de Zidane. E que se fez mito nos campos austríacos que testemunharam como o futebol se decidia finalmente a ajustar contas com Espanha. Na meia-final, talvez o melhor jogo de toda a geração do tiki-taka, os ambiciosos e refrescantes russos foram atropelados por um vendaval de futebol de ataque. Organizado, coordenado, pensado. Mas ambicioso, vertical e letal. O fantasma dos quartos tinha ficado para trás e com ele todos os complexos. Em Viena, dias depois, os alemães não assustaram como antes provavelmente teriam feito. Espanha para conquistar a Europa aprendeu a conquistar-se a si mesma. Aprendeu com ele, o homem que não tinha nada a ganhar e nada a perder.
Depois da selecção veio a polémica. Alguma imprensa tentou ajustar contas com anos e anos de palavras secas, frases polémicas e decisões contestadas. O novo staff dirigente da selecção, capitaneado por Del Bosque, manteve-se respeitoso com o passado mas foi a pouco e pouco alterando o ADN impresso por Luis e Espanha tornou-se mais eficaz mas menos espectacular. Com esta nova abordagem veio o Mundial nunca ganho e o terceiro Europeu da história. Mas também uma certa aura de desencanto sentida pelos próprios espanhóis que tinham aquele Junho austríaco na memória. Aragonés, sempre polémico, preferiu o silêncio. Tinha conseguido o mais difícil em campo e não estava disposto a voltar a ser protagonista por algo que não fosse Viena e os seus "Bajitos". Silenciosamente aceitou ser o Quixote da saga nos seus campos manchegos de moinhos de vento endemoniados. Um Quixote que ensinou um país a gostar de si mesmo com a sua franqueza e que demonstrou que o futebol se podia jogar de mil e uma formas, sem dogmas. Depois veio Guardiola, o anti-guardiolismo, a frieza italiana de Del Bosque, o mourinhismo e tudo serviu para atacar a sua herança. Mas quem viveu na pele a euforia de celebrar a sua Espanha em 2008 sabe que hoje partiu um dos homens mais importantes da história do futebol europeu. Só por isso vale a pena dizer uma vez mais, "Gracias, viejo".