Prometeu muito, deixou pouco. O Mundial 2014 chega ao fim. Com ele a mais espectacular fase de grupos de que há memoria. E uma ronda a eliminar que foi descrendo de qualidade até alcançar uma final decepcionante. Foi um torneio de oito e oitentas, de guarda-redes fadados a momentos de glória e de estrelas globais abaixo do que prometiam. Um torneio que não deixa uma grande equipa, um grande jogador mas sim uma grande certeza. A queda da Espanha não significou o fim do tiki-taka e a sua Némesis defensiva vai encontrar sempre forma de continuar a morder-lhe os calcanhares.
No dia em que os oitavos-de-final arrancaram, com o drama entre Brasil e Chile, os adeptos de futebol estavam no céu. Tinham vivido quinze dias de uma intensidade única. Golos – muitos, de muitas formas e feitios – grandes exibições colectivas e individuais (sobretudo dos guarda-redes) e surpresas. Parecia que o torneio ia igualar as desigualdades sociais do Mundo e que os europeus seriam a chacota. O Brasil avançava a passo tremido para fazer história e o futebol perfumado das caraíbas encandeava mais que o jogo dos europeus. Um mundo ideal quase previa uma final Colômbia vs Costa Rica. Foi um sonho bonito. Mas curto. Quinze dias depois a sensação não podia ser mais distinta.
O torneio abandonou o seu ritmo de samba e entrou num longo e angustioso solo de Bossa Nova, lento e previsível. Os favoritos foram eliminando os rivais sem problemas de maior. As surpresas desapareceram e com elas a magia do momento. Os europeus que sobreviveram à purga inicial (principalmente uma purga de equipas mal preparadas) impuseram-se sobre os rivais sem dificuldades de maior. Pela primeira vez na história dos Mundiais fora da Europa a competição esteve a uma grande penalidade de ter os dois finalistas do “Velho Continente”. Lá se foi a justiça social. Os guarda-redes foram perdendo protagonismo (salvo se entraram para defender penalties) e os nomes do costume foram aparecendo. Mas a anos-luz do que sabem e podem fazer. Não houve uma grande série de exibições mágicas de um jogador nem um futebolista que se impusesse como figura icónica do torneio. O futebol moderno dá cada vez menos liberdade aos Ronaldo, Zidanes ou Romários – para não ir mais atrás no tempo – reclamar o seu lugar na história. A péssima qualidade das arbitragens só encontrou par no péssimo estado táctico e emocional do Brasil. Foi o descalabro numa semana de um espectáculo inesquecível. Depois de uma fase de grupos digna do México 86 ou Espanha 82 a competição a eliminar caiu ao nivel emocional de um Itália 90 ou Coreia do Sul-Japão 2002. E claro, dentro de tantos falsos mitos que fracassaram, um imperou sobre os demais. Sobrava a Alemanha.
O futebol germânico teve o merecido premio a oito anos de trabalho.
A aventura que Klinsmann começou mudou o curso quando Low se encontrou com Espanha. Em duas provas seguidas a Mannschaft caiu aos pés do tiki-taka. Foi suficiente para introduzir no seu próprio ADN o código de sobrevivência do futuro. Espanha pode ter sido a selecção mais decepcionante do torneio – continua a ter, quase posição por posição, um dos três melhores do Mundo – mas a sua herança manteve-se viva nos alemães. Uma equipa que teve altos e baixos evidentes no torneio, que sofreu – como os espanhóis – nos jogos contra equipas tacticamente organizadas na defesa, e que não tem um interprete singular mas um rosto coral de maravilhosos músicos capazes de tocar em harmonia absoluta. A Alemanha foi a melhor selecção colectiva do torneio sem ter sido, no entanto, uma selecção para a história. Pode perfeitamente este ter sido o ponto de inicio para uma nova era de hegemonia mundial, que o próximo Europeu confirmará ou não. Há muita juventude e opções de futuro para pensar nisso. Mas este pode ser também o titulo que coroa um trabalho que vem de longe e que merecia este reconhecimento. Os alemães deram um toque vertical ao tiki-taka espanhol (no fundo o mesmo que o modelo tinha na sua primeira encarnação e que Guardiola, um treinador mais vertical do que se pensa, exige no Bayern) e souberam ser eficazes nos momentos certos. Foram protagonistas do jogo mais marcante da competição (o melhor, esse, foi o Itália vs Inglaterra, duas equipas eliminadas o que diz muito da magia da primeira quinzena de torneio) e só esses sete golos ficarão seguramente para a história impressos com mais força que o titulo mundial. Foi a gesta do torneio, mas nem foi brilhante, nem foi a única.
O Mundial foi, sobretudo, um torneio previsível quando os astros se alinharam. Beneficiando de um cruzamento acessível desde a fase de grupos, a Argentina ultrapassou o seu Rubicão e chegou à final com pouco futebol e aplicando a antítese do tiki-taka que deixaria Mourinho orgulhoso. Marcaram poucos golos (nenhum finalista marcou menos na história na fase a eliminar, apenas dois golos em 430 minutos), defenderam bem e tiveram em Mascherano a sua figura. Messi esteve mal acompanhado no ataque e demasiado longe da área para criar perigo real. Lutou com as armas que tinha, manifestamente insuficientes. Na fase a eliminar não marcou nem decidiu nenhum dos jogos a favor da sua equipa e depois de uma boa primeira ronda eclipsou-se progressivamente. Na final passou de uma excelente hora de jogo a uma fantasmagórica exibição no prolongamento, vómito incluído. Não foi o seu Mundial a pesar de ter chegado à final. Olhando para o futebol argentino actual é possível que seja a única da sua carreira. No entanto, continuar a insistir que um jogador do seu calibre precisa de um titulo Mundial para ser grande é não conhecer a história do jogo. Messi é o jogador que define o futebol pós-2008 pelo seu jogo, não pelos títulos que conquistou.
Messi foi uma figura decrescente como todas à medida que o torneio avançava. Robben, Muller e James Rodriguez foram os mais constantes no brilho que deram a uma competição onde Neymar, Benzema e Suarez começaram por prometer muito mas, por motivos vários, deixaram de produzir à medida que passavam os dias. No fim da competição foram os Mascherano, Lahm ou Kroos que se fizeram indispensáveis. Os guarda-redes também passaram da magia da primeira ronda à sobriedade dos momentos difíceis. O torneio foi perdendo a magia à medida que o Brasil deixava a nu todas as deficiências e equipas como a Costa Rica, Colômbia, Bélgica ou França diziam adeus. A Holanda manteve-se em competição mais pelo génio táctico de van Gaal e a excelente forma de Robben do que pelo mérito do seu colectivo. Os europeus, que começaram tão mal – Itália, Inglaterra, Portugal, Croácia e, sobretudo, Espanha – impuseram a sua vontade e pela primeira vez venceram um torneio fora do seu continente. Foi também a terceira vitória consecutiva da Europa deixando claro que se a alma do futebol está na América, a qualidade de jogo está na Europa. Será difícil mudar a tendência enquanto a desorganização nos gigantes continentais americanos, africanos e asiáticos continuar a imperar. No final impôs-se a justiça do campeão, premiou-se o esforço de uma Argentina escassa em talento e do trabalho táctico de um génio como van Gaal no pódio. As lembranças dos primeiros días foram engolidas no tempo, de tal forma que parecem a um Mundial diferente do que acabou. No entanto, um palco mágico como o Brasil seguramente tornará as coisas difíceis para os russos em 2018. Será difícil organizar um torneio com tanto simbolismo num país gigante mas desfasado do Mundo onde não há esse perfume de um futebol que já não existe a cada passadeira numa avenida rodeada de memorias e ilusões. Porque afinal, mais do que um torneio entre países, o Mundial é precisamente isso, um pretexto, de quatro em quatro anos, para celebrar a essência deste beautiful game.
PS: A polémica levantada pela eleiç4ao de Messi como jogador do torneio espelha bem a diferença do que é o Mundial de futebol, em campo, e o torneio organizado pela FIFA, nos bastidores. A competição deixou claro que a FIFA cometeu erros graves – equipas de arbitragem, política de venda de bilhetes, horários de jogos para beneficiar as televisões europeias, o circo à volta da suspensão de Suarez – à medida que o futebol em campo ia sobrevivendo. Messi não precisa de um premio destes para se reafirmar pelo que é, um dos melhores jogadores de sempre. Mas este não foi o seu Mundial. Não foi um Mundial decepcionante, como em 2010, mas também não foi o torneio que fez seus. Face à ausencia de uma super-figura (desde Ronaldo que não há ninguém com esse simbolismo) o premio fazia muito mais sentido em James Rodriguez, Arjen Robben, Thomas Muller, Philip Lahm ou Javier Mascherano, cada qual representante perfeito de momentos e estilos próprios. Que o argentino não esteja no onze tipo do torneio de quase nenhum jornalista, técnico ou comentador que tenho lido nos últimos dias não surpreendem em absoluto. Como diz, por uma vez bem, Diego Maradona, o mediatismo da entrega do premio a Messi – prémios que nunca foram entregues desta forma circense – eclipsa cada vez mais a meritocracia que rodeia a essência do jogo. Provavelmente tanto ele como Cristiano Ronaldo, esse sim protagonista de um Mundial penoso, estejam no top 3 do próximo Ballon D´Or. O futebol, se é que alguma vez esteve, não tem nada a ver com estes prémios. Mas é preciso vender jornais e encher redes sociais. É o futuro (triste) do jogo.