Carlo Ancelloti chega ao Santiago Bernabeu com um curriculo profissional que nada deixa a invejar o de José Mourinho. Volta a ser a sua sombra, depois da sua etapa no Chelsea. Com ele traz um novo conceito de jogo, onde a velocidade e a vertigem serão progressivamente substituídas pela pausa e o jogo colectivo. Uma nova etapa para um clube em constante conflito existencial.
Não há treinador italiano que melhor represente a mudança de guarda dos anos dourados da década de noventa.
Nenhum capaz de manter a frescura visual dessa geração nas suas equipas sem demasiados malabarismos tácticos. As equipas de Ancelotti não são nenhum puzzle. Pelo contrário, o seu esquema roça praticamente o básico. Posicionamento horizontal, organização defensiva, trabalho na medular e liberdade para dois ou três homens de ataque. Nada de contra-golpe, nada de velocidade constante. As equipas de Ancelotti movem-se em campo como o dinamo preferido de Arrigo Sacchi fazia em San Siro. Com a tranquilidade de quem sabe que chegará ao seu objectivo.
O técnico italiano popularizou na viragem do século XX o 4-3-1-2. Um modelo que, desde então, tem sido sinal de identidade do Calcio.
Com a Juventus, onde sucedeu à figura imensa de Marcelo Lippi, a jovem promessa dos bancos italianos herdava uma equipa com muito trabalho no meio-campo e pouca criatividade. Ignorando o 3-4-3 da última etapa de Lippi, preferiu reforçar a linha defensiva com o modelo de quatro homens aplicado por Sacchi, o seu grande mentor. Depois colocou Davids, Conte e Tachinardi no apoio a Zidane, Del Piero e Inzaghi, com o francês com liberdade total de movimentos e "Il Pinturrichio" como avançado móvel no ataque. No final do ano mudou-se para Milão onde tomou a decisão mais importante da história recente do futebol italiano. Fiel ao seu 4-3-1-2, Ancelotti manteve Rui Costa como o seu trequartista, atrás da dupla Shevchenko-Inzaghi. Com Ambrosini/Albertini e Gattuso disponíveis para dois lugares, parecia não haver espaço para o promissor Andrea Pirlo. Mas o jovem, que tinha estado emprestado no Brescia, era bom de mais para ser suplente do internacional português e Ancelotti recuou-o para a posição de regista. Uma manobra táctica decisiva que lhe valeu o seu único Scudetto, duas Champions League ganhas e uma final perdida, inesperadamente, em penalties. O seu modelo táctico permaneceu quase inalterado quando se mudou para Londres, depois de quase dois anos calamitosos pós-Mourinho. Aí voltou a fazer uso do seu 4-3-1-2, reconvertendo Malouda como médio interior, ao lado de Lampard e Essien, por detrás de Ballack, Drogba e Kalou na linha de ataque. Com essa equipa conseguiu algo histórico que nem o Special One logrou (vencer liga e taça no mesmo ano) mas na Europa o Chelsea não impressionou e a eliminação aos pés do Inter de Mourinho deixou marca. Despedido por Abramovich, reencontrou-se em Paris com um novo projecto a que voltou a aplicar o seu velho conceito de jogo, desdobrado ocasionalmente num ainda mais clássico 4-4-2, com Ibrahimovic, Lucas e Lavezzi como os três jogadores mais apertados e Pastore, Matuidi e Verrati a fecharam a linha de meio-campo.
A chegada de Ancelloti ao Bernabeu é um sonho antigo de Florentino Perez.
O presidente do Real Madrid esteve perto de o contratar em 2009, mas sob indicação de Jorge Valdano, acabou por ser Manuel Pellegrini o escolhido. Cinco anos depois, encerra-se o ciclo. Ancelotti é um ganhador. Tem um currículo que inclui ligas em três paises diferentes (o mesmo número que tinha Mourinho quando chegou a Madrid) duas Champions League (as mesmas que tem Mourinho) e um perfil muito mais apaziguador e silencioso que o português. Com Ancelotti ninguém espera ver uma guerra aberta com a imprensa e com o balneário. Habituado a líder com presidentes com carácter (Agnelli, Berlusconi, Abramovich) e com celebridades do futebol europeu (Zidane, Del Piero, Shevchenko, Rui Costa, Drogba, Lampard, Terry, Ibrahimovic), a "Carletto", não lhe faltará experiência para lidar com a facção rebelde de Iker Casillas e Sérgio Ramos ou os clãs regionais formados à volta dos jogadores portugueses, alemães e espanhóis mais afins a Mourinho. Não será uma missão fácil num clube reconhecido pelo poder excessivo que os jogadores sempre procuraram conquistar à custa do papel do treinador. Mas não existia, no mercado de técnicos, um perfil mais adequado para a missão do que o seu.
Em campo a mudança de Mourinho para Ancelotti será ainda mais evidente. Fiel ao seu desenho táctico, a mutação do 4-2-3-1 habitual de Mourinho para o 4-3-1-2 adequa-se principalmente ao over-booking de jogadores medulares e criativos do plantel merengue. A chegada do genial Isco abre a porta a um duelo apaixonante com Mezul Ozil pela posição de criativo principal desta nova formação blanca. Atrás, os três lugares do meio-campo deverão ser distribuídos entre Xabi Alonso, Modric e Khedira, deixando a Cristiano Ronaldo e Benzema as vagas no ataque. O português como elemento mais livre, móvel, capaz de mover-se entre as alas para aparecer em áreas de finalização e Benzema, peça essencial no jogo combinativo habitual nas equipas de Ancelloti. Um desenho táctico que raramente utiliza extremos puros o que pode ser um problema para o jovem Jesé mas nem tanto para Di Maria, que tanto pode incorporar-se como elemento da linha de ataque como eventualmente recuar para a posição de interior direito graças à sua tremenda capacidade de trabalho. Só a possível - mas complexa - chegada de um jogador como Gareth Bale poderia levar Ancelloti a procurar por um mais clássico 4-3-3 com Ronaldo e Bale nas alas, acompanhados de Benzema e Ozil, Isco, Alonso, Khedira, Di Maria e Modric a competirem por três lugares, um problema sério para qualquer gestor humano resolver.
A nova abordagem de Ancelotti, se o italiano se mantiver fiel aos seus princípios tácticos, aportará ao Real Madrid um jogo mais colectivo e elaborado, onde o papel dos laterais (Carvajal e Arbeloa pela direita, Marcelo, Coentrão ou o seu eventual substituto pela esquerda) é fundamental graças ao músculo colocado no meio-campo para tapar qualquer falha de marcação colectiva. Um tridente composto por jogadores como Ozil, Isco, Alonso e Modric pode oferecer uma dinâmica ofensiva apaixonante, particularmente se associada ao apetite goleador de Ronaldo e a um Benzema possivelmente motivado pela presença de Zidane no banco e a ausência de Higuain como competidor directo. Se o Barcelona parte como claro favorito para a próxima época, a escolha de Ancelotti é uma manobra inteligente de Perez para manter o Real Madrid e o seu plantel de sonho perto, muito perto, da máquina ofensiva blaugrana.
Enquanto os veteranos espalham classe e uma mobilidade que alguns pensavam perdida na memória, os mais jovens demonstram que estão preparados para dar o salto. Não existe na história do futebol uma sucessão de gerações com tanta qualidade em todos os processos do jogo. Nas posições nucleares, o aparecimento a cada nova geração de um jogador de nível máximo é o sinal mais evidente que a hegemonia da Espanha, para lá dos títulos que possa ou não ganhar, não tem fim à vista.
É fácil fazer as contas para perceber que a dupla campeã da Europa e actual campeã Mundial é, por direito próprio, a máxima favorita das próximas competições internacionais. Se alguns dos seus protagonistas principais já falam em reformar-se, eventualmente depois do Mundial do Brasil, os adeptos espanhóis sentem-se tranquilo. Basta olhar para baixo, para os mais novos, para os que vêm a seguir. Duplos campeões da Europa de sub-21, campeões da Europa de sub-19 e flamantes candidatos a vencer o próximo Mundial da categoria sub-20, ninguém questiona o presente de Espanha. Nem o seu futuro.
Essa forma de hegemonia eterna não é fruto do acaso. Há duas décadas os clubes despertaram. O impacto dos Jogos Olimpicos de 1992 foi imenso na mentalidade espanhola. Ao crescimento económico seguiu-se um crescimento emocional de um povo marcado por décadas de ditadura e uma transição desenhada para agradar a gregos e troianos. Durante essa etapa, o futebol espanhol era o dos clubes, o da luta Real Madrid e Barcelona, mas também o dos símbolos regionais. A selecção era uma amálgama de identidades sem ideias próprias que procurava imitar o que estivesse na moda, fosse a dureza alemã ou o cinismo argentino. Eram os dias da Fúria, uma equipa com alma mas sem talento, com garra mas sem ideias. A tal que chegava a cada competição com o rótulo de eventual surpresa para acabar, inevitavelmente, por falhar nos momentos decisivos. Nos momentos onde é preciso ter uma ideia de jogo a que ser fiel.
O futebol espanhol aprendeu a lição. Desde a federação começou a trabalhar-se no futebol de base. Os clubes foram incentivados a seguir pelo mesmo caminho. Uns fizeram-no com mais afinco que outros. O Barcelona e o Athletic Bilbao foram excelentes exemplos de aproveitamento da formação enquanto que os clubes de Madrid preferiram outra abordagem. O tempo demonstraria quem tinha razão. Mas não foi só no treino e formação de jovens jogadores que se desenhou o futuro dourado do futebol espanhol. A nível nacional, de forma quase transversal, adaptou-se um modelo de jogo similar, um estilo de posse comum, de cultura pelo respeito do adversário e pelo conhecimento táctico das matrizes do jogo. Mais do que formar jogadores, em Espanha formaram-se jovens adultos, com capacidade mental para superar qualquer adversidade. Uma capacidade que faltou a tantos dos protagonistas da etapa da fúria e que nos momentos de maior pressão fez a diferença. O clique ganhador, a assunção de sentir-se superiores na sua forma de jogar, passos fundamentais para transformar o sucesso da base no triunfo da cúpula pirâmide.
Xavi-Fabregas-Thiago.
Iniesta-Mata-Isco.
Busquets-Martinez-Illarramendi.
A sala de máquinas do futebol espanhol é a melhor do mundo no presente. Mas também já a é no futuro imediato e no futuro mais distante. Não existe, a nível internacional, um tridente de jogadores da mesma geração tão capazes de assumir o controlo de um jogo e de pautar o seu ritmo como sucede com três gerações consecutivas de heróis espanhóis. A titularidade da selecção principal de Del Bosque é intocável. São os jogadores que Guardiola reinventou dentro do modelo desenhado entre Cruyff e Aragonés. Mas quando faltarem, os espanhóis sabem que há dois futebolistas por posição preparados para assumir o seu lugar sem que se note minimamente a diferença. Em qualquer selecção do Mundo actual, Thiago-Illarrramendi-Isco seriam titulares. Fosse o Brasil, Itália, Inglaterra, Holanda, Argentina ou Portugal. E no entanto, são apenas a terceira escolha em Espanha porque o génio de Mata, de Fabregas e de Javi Martinez os antecede, por idade, apenas e só. Não há melhor forma de coroar o sucesso de uma ideia do que sentir que está garantido o seu futuro. No caso da Espanha, a próxima década está entregue a futebolistas desenhados para ganhar, mas ganhar à sua maneira.
A selecção de sub-21 joga ao mesmo jogo que a equipa principal, mas fá-lo melhor. Com mais fome, com mais verticalidade, com mais apetite pelo golo. Eles são o que os principais eram em 2008, quando Aragonés acabou o seu projecto de forma única. Pelo meio, uma série de futebolistas que cresceram com essa fome de afirmarem-se internacionalmente e que se encontram entalados entre duas equipas de sonho. Nove jogadores para três posições que, no fundo, são apenas um curto exemplo da extensão da hegemonia espanhola.
Para cada Sérgio Ramos há um Iñigo Martinez. Para cada Arbeloa há um Carvajal ou Montoya. E um Moreno, um Koke, um Muniain ou Rodrigo. E todos esses trabalhadores talentosos como Nacho, Bartra, Herrera, De Marcos, Camacho, Aguirretxe, Parejo, Michu e os génios precoces de Canales, Jesé, Deulofeu ou Oliver. São tantos os nomes individuais que o problema é eleger. Mas aqui, apesar de tudo, não é a individualidade que faz a diferença. É o facto de todos eles pensarem, agirem e jogarem debaixo de uma ideia comum. O ritmo na equipa principal pode ter baixado, a frieza e o cinismo que foram imagem de marca de Del Bosque quando esteve inicialmente no Real Madrid fez-se sentir na África do Sul e na Polónia e na Ucrânia. Mas a qualidade dos jogadores e o valor desse espírito determinado e ofensivo permite pensar que é praticamente impossível não contar com a Espanha com máximo favorito para os próximos cinco grandes torneios internacionais.
Poucas selecções sub-21 jogaram na história como esta versão da selecção espanhola. Capaz, muito provavelmente, de vencer a maioria dos jogos disputados contra selecção principais do planeta futebol. Uma qualidade tal que permite, por momentos, esquecer que a sua antecessora, também campeã europeia, era quase tão boa. E que as suas rivais são a base habitual de projectos desportivos de larga projecção como acontece com Alemanha, Itália ou Holanda. Enquanto em Portugal se descobre, a duras penas, a consequência de abandonar-se o projecto de formação que esteve por base no sucesso dos anos noventa, Espanha demonstra uma vez mais saber qual é o caminho. O do sucesso. Para o qual tem a chave. Uma chave que parece ser de cópia única.
Xabi Alonso é um notável jogador. Mas foi preciso lesionar-se para que Vicente del Bosque tivesse encontrado a coragem de fazer o mais difícil. Voltar à origem. A exibição memorável da selecção espanhola contra o Uruguai fez o relógio voltar atrás no tempo, aos dias apaixonantes de Luis Aragonés e uma equipa que encantava pela sua capacidade de fazer da posse de bola uma arma de ataque. Pelo seu talento em recuperar a bola tão bem como a movia por um terreno de jogo onde mandava a criatividade e o espírito ofensivo. Um Mundial e um Europeu ganhos sem convencer depois, a Espanha volta a ser ela mesma. E essa é a melhor notícia!
Em 2008 o futebol despertou para o fenómeno tiki-taka.
Ainda não tinha chegado Guardiola e o seu projecto de renascimento da filosofia de rondo, pressão asfixiante e precisão ofensiva. A Europa de clubes ainda vivia sob o signo da Premier League, do seu modelo físico, de transições rápidas, de jogo vertical e apoiado e da sua dificuldade em fazer da posse de bola uma arma para defender e atacar porque a sua resistência física estava preparada para esse modelo. E chegou o Europeu. O modelo que a Espanha tinha ensaiado nos meses anteriores funcionou. Era a mesma ideia defendida por Aragonés desde 2004, o mesmo que entusiasmou na fase de grupos do Mundial de 2006 mas que não aguentou com a matreirice de Zidane, desejoso de uma despedida à altura. Aragonés sobreviveu a uma profunda guerra no balneário da selecção. Colocou todo o seu prestigio, que era muito, para vencer o braço de ferro com o que ele considerava como um sério problema. Raul, Michel Salgado e companhia foram afastados da selecção. Começava uma nova era.
Aragonés desenhou uma Espanha de raiz.
Um 4-5-1 (ou 4-3-3, como se queira ver), em que a associação no meio-campo de quatro jogadores imensamente talentosos era compensada defensivamente com o trabalho imenso de um só médio recuperador. O compromisso era conseguido porque todos os restantes elementos da equipa sabiam que, sem bola, deveriam realizar uma pressão constante para fechar espaços, morder os rivais e recuperar o esférico. Com a bola podiam descansar, sim, mas sobretudo atacar. Procurar aproveitar as falhas na movimentação do rival, surpreendido pela perda de bola tão rápida, para criar perigo. Jogar com os olhos postos na baliza contrária. Um modelo vertical, mas apoiado na capacidade de circulação horizontal de uma geração de futebolistas maravilhosos. Um modelo que sabia que tinha pontos fracos mas que os transformava em fortaleza quando tinha a bola nos pés. Dessa forma, Aragonés conseguiu juntar numa mesma equipa a Villa, Xavi, Iniesta, Torres, Cazorla ou Fabregas com Senna como elemento mais recuado. As aparições de Xabi Alonso, David Silva e De la Red confirmavam a excelência de uma geração que merecia acabar com uma série de 44 anos sem títulos. Com Aragonés o título chegou porque Espanha foi uma equipa ofensiva, uma equipa autoritária, uma equipa que sabia defender no campo do rival e fazer da posse de bola uma ferramenta para encontrar o atalho mais rápido para o golo. Essa foi a melhor versão da história do futebol espanhol. A selecção que deixou saudades.
Aragonés tinha queimado o seu prestigio na sua luta interna com a influência de Raúl e do grupo de adeptos do Real Madrid.
Na federação, Fernando Hierro, tinha encontrado já o seu substituto antes do torneio sequer ter dado o pontapé de saída. Com a vitória da selecção, houve um momento de embaraço. Finalmente, Del Bosque entrou para comandar uma nau ganhadora. Tinha o duro objectivo de estar à altura do que parecia ser um feito histórico. Mas o trabalho de casa estava feito. Por Aragonés, que tinha deixado um balneário exemplar e uma rotina de jogo reconhecida internacionalmente e admirada. E pelos clubes, que apostando na prata da casa lhe deixaram à disposição uma geração memorável. Particularmente beneficiou-se do génio de Guardiola, que levou a ideia de Aragonés a outro plano, com a ajuda de um tal Messi. O técnico catalão lançou, do nada, as figuras de Busquets e Pedro, futebolistas que Del Bosque rapidamente introduziu no seu modelo. Mas a sua selecção era diferente. O 4-5-1 (ou 4-3-3, sem alas) transformou-se num 4-2-3-1. Alonso, habitual suplente com Aragonés, tornou-se em titular indiscutível ao lado de Busquets, o sucessor de Senna. Essa transformação forçou o treinador a retirar um dos muitos criativos que tinham espalhado magia na Áustria. Xavi e Iniesta eram figuras nucleares, Torres e Villa os goleadores e Pedro um joker precioso.
Inicialmente Del Bosque transformou a Villa em extremo e em Pedro no seu suplente preferencial. Depois abdicou de Torres, colocou Villa no centro e definitivamente entregou a titularidade ao canário. Até que a lesão do asturiano e a má forma do madrilenho lhe permitiu provar a fórmula do falso nove, com Cesc Fabregas ou David Silva no eixo do ataque. Essas mudanças não eram só de cromos.
Geniais, todos, eram jogadores com uma visão de jogo diferente da que tinha Aragonés. Espanha horizontalizou-se. Passou a usar a bola para defender mais do que para atacar. Longos períodos de trocas de bola em posições cómodas permitiam a aproximação da linha defensiva ao ataque, defender mais longe da baliza de Casillas e a incorporação dos laterais ao ataque. Mas também ralentizavam o jogo, davam ao rival a possibilidade de defender ocupando os espaços, procurando a sua oportunidade. Foi assim que a Suíça venceu o primeiro jogo do Mundial que a Espanha ganhou com a pior média de golos marcados da história. Apenas um por jogo na fase a eliminar, sofrendo em todos os jogos por criar perigo real e suportando com sorte e mérito as raras oportunidades dos contrários. As de Ronaldo, Cardozo, Ozil e Robben. Era um modelo mais pragmático, mais italiano, menos ofensivo e estilizado que o de 2008. Mas a vitória escondeu o debate e a renovação de alguns jogadores deu a sensação de um futuro brilhante. Dois anos depois, na Polónia, a equipa abdicou definitivamente do avançado, voltou a oferecer uma versão que até aos próprios espanhóis começava a aborrecer e depois de mais uma série de jogos sem entusiasmar, encontraram-se na final com uma Itália quase infantil a quem deram um impressionante correctivo. A mensagem estava clara. Quando Espanha queria dar uma velocidade mais ao seu jogo, era imbatível. Mas raramente se dava a esse trabalho.
No duelo com o Uruguai, o de abertura da Confederações, Del Bosque não tinha Alonso.
Podia ter substituido o basco por Javi Martinez, autor de uma época memorável na mesma posição em Munique. Não o fez. Decidiu aceitar que a sua versão de quatro anos poderia ser mais fácil de controlar, por previsível, por monótona e por horizontal, por uma equipa habituada a defender, esperar e jogar nas costas do rival. O seleccionador espanhol lançou então Fabregas, mas na posição em que jogava com Aragonés, escorado ao lado esquerdo do ataque, mas não como extremo, em sucessivas trocas de posição com Iniesta, abrindo o carril a Jordi Alba. Para fixar os centrais uruguaios e empurrá-los para a sua área, voltou a optar por um avançado puro, Roberto Soldado, mantendo Pedro como falso extremo direito, um jogador especializado em diagonais e remates impossíveis. Atrás, Xavi mantinha a batuta do jogo, com mais jogadores a moverem-se à sua volta e, portanto, mais linhas de passe possíveis e um maior dinamismo ofensivo. Busquets, como Senna, tinha mais do que capacidade para controlar o aspecto defensivo do jogo, apoiado muito de perto por uma linha defensiva alta.
Com essa aposta, esse 4-5-1 tão ofensivo, Espanha voltou a deslumbrar. O seu jogo ofensivo voltou a ser vertical, rápido, incisivo e com a baliza como alvo preferencial. A posse de bola, imensamente superior à do rival, tinha encontrado um sentido pragmático e não apenas o de uma arma física de descanso, à espera que a marcação defensiva do rival cometesse o habitual erro para o golo da praxe. Era, de certa forma, o voltar às origens. Alguns dos nomes próprios tinham mudado mas a essência era definitivamente a mesma. E muito distante do paradigma habitual de Del Bosque. Um modelo que pode voltar a ser colocado de lado quando Alonso esteja em condições de jogar. Ou, e isso seria uma grande notícia, um modelo recuperado para atacar o segundo título mundial consecutivo, transformando a Espanha na terceira selecção da história capaz de manter o troféu em casa. Uma Espanha com o formato de Del Bosque já seria, inevitavelmente, a máxima candidata ao troféu. Com o desenho original de Aragonés o seu favoritismo é ainda maior. E os adeptos que perdeu durante anos com a sua viragem mais conservadores, voltarão de braços abertos. Porque este foi o formato que permitiu um dia pensar que havia realmente algum paralelismo com a mítica camisola amarela do Brasil sob o céu silencioso do México.
Existem quatro correntes distintas sobre a forma como deve ser desenhada a estrutura de uma selecção nacional. Quatro visões, algumas delas bastantes distanciadas, que contam com as suas virtudes e riscos. São pontos de vista que necessitam também de adaptar-se à realidade local de cada projecto e ás inevitáveis crises geracionais que afectam todas as nações do mundo do futebol. O caso português já viveu em vários desses extremos. Agora continua a subsistir, com Paulo Bento, o mais recente dos modelos, o familiar.
Do grupo fechado de Scolari à liderança dividida no Euro 84. Da equipa forjada com base em dois clubes, em 66, à geração dos melhores que navegavam pelo futebol europeu. A história do futebol português é rica nas variantes de como se desenhou o espírito do chamado Clube Portugal. Já foi coisa de dez jogadores de dois clubes só, para potenciar os laços rotineiros e a influência clubística. Já se jogou ao ritmo de interesses pessoais, procurando colocar os melhores em cada momento. Já se confiou nos melhores jogadores, independentemente do seu estado de forma, simplesmente porque eram muito bons. E agora Portugal revisita o conceito de núcleo fechado, de família, inaugurado por Scolari em 2003.
O caso português não é singular. Todos os países de topo do futebol mundial passaram, com os seus mais e os seus menos, por todos estes modelos ao longo da sua história. Em Espanha vive-se actualmente o apogeu da ideia que em Portugal existiu com a Geração Dourada. Os melhores jogam, sempre, independentemente de como estão ou de se há novos futebolistas no horizonte. Mas em Espanha também já se bailou ao som dos interesses dos clubes, também já se tentou criar uma família fechada, com Clemente na década de noventa e houve uma época em que, pura e simplesmente, jogavam os que estavam em melhor forma.
Para um seleccionador - e até o nome tem truque, porque seleccionar e treinar não é mesmo e até aos anos oitenta muitas selecções tinham dois profissionais para dois postos distintos - é complicado eleger o modelo a seguir.
Se convocar sempre os jogadores que estão em melhor forma - algo que muitos defendem - corre-se o risco de não ter nunca um núcleo estável porque a forma é, como já se sabe, volátil. No entanto, ter sempre os jogadores na melhor condição física e psicológica pode garantir que a equipa que sobe ao campo está motivada e preparada para todos os desafios. Montar um combinado nacional à volta dos maiores talentos individuais, também gera um problema. Podem ser os melhores, os que mais aportam e melhor entendem o jogo mas, muitas vezes, não estão nas melhores condições e surge o fantasma de jogar por estatuto. O modelo aproxima-se mais ao de um clube, com um núcleo fechado de estrelas e suplentes de luxo, ignorando muitas vezes a principal vantagem de uma selecção: poder ir mais além nas escolhas. Também há os que preferem montar um esquema baseado no sucesso individual de um ou dois clubes, trazer o máximo número de jogadores desses emblemas e complementar a convocatória com talentos individuais. Ganha-se em estabilidade e rotinas, algo que falta no curto espaço de tempo de preparação para os jogos internacionais, mas perde-se em novidade e inovação. Por fim há o modelo mais recente, o de criar um grupo fechado, com jogadores bons e medianos, conscientes todos do seu lugar, onde a competitividade existe mas parte de bases estabelecidas. Onde o treinador é técnico, pai e sargento. Onde os interesses de um grupo se sobrepõem aos individuais mas onde a porta está quase sempre fechada ao resto do mundo. Esse é o modelo português da última década.
Nos anos 60 a selecção das Quinas era formada por jogadores do Benfica e do Sporting, com a ocasional incorporação de futebolistas do Belenenses, FC Porto e Setúbal. De aí passou-se ao período pós-25 de Abril, onde cada clube queria controlar a selecção e para agradar a gregos e troianos convocavam-se individualidades e não se pensava no grupo. Com os meninos de ouro forjou-se um grupo de vinte jogadores que, passasse o que passasse, tinham lugar garantido. Foi esse o cenário que entrou em colapso em 2002, no Mundial do Japão e da Coreia do Sul, quando parte do balneário estalou com o favoritismo atribuído por Oliveira a Baía sobre Ricardo, ao lesionado Figo e a um questionadíssimo Pauleta. Quando chegou Scolari, esse era o monstro que tinha de domar, para triunfar no Europeu.
O brasileiro fez a sua limpeza. Manteve ao seu lado o núcleo duro da selecção dos anos noventa (Figo, Fernando Couto, Rui Costa, Paulo Sousa) mas afastou os mais polémicos Baía, Jorge Costa e o suspenso João Vieira Pinto das suas equações. Com os mais indomáveis Sérgio Conceição e Abel Xavier teve os seus problemas. Para compensar, começou a chamar regularmente jogadores de low profile que fizessem o core da sua família. Chegaram os mais novos (Jorge Andrade, Ricardo Carvalho, Paulo Ferreira, Miguel, Ricardo Quaresma e Cristiano Ronaldo) e os que traziam experiência, como Costinha, Nuno Valente, Maniche. A esses juntou obreiros prontos a obedecer a qualquer ordem mas sem projeção internacional como foram Luis Loureiro e companhia. E chegou Deco, o jogador que quebrou não só o tabu dos naturalizados mas também a ideia de que os jogadores da Geração de Ouro actuavam por decreto. Rui Costa foi a sua vitima colateral.
Scolari criou um núcleo fechado mas aproveitou-se, como Otto Gloria, do trabalho de dois clubes, a juventude das promessas do Sporting e a solidez dos jogadores do FC Porto de Mourinho. Foi essa a sua base durante o seu mandato. Mas sem renovação, sem espaço para a novidade, o grupo estagnou, envelheceu e quando o brasileiro disse adeus, deixou uma equipa sem líder, decadente e com um hábito de trabalho mais similar ao de um exército do que a uma selecção nacional. Queiroz tentou lutar contra esse mundo, abriu a convocatória a outros jogadores, mais jovens, mais promissores, capazes de trazer algo novo, mas nunca conseguiu controlar um balneário saudosista do modelo Scolari, particularmente porque interessava ao homem que representava a maioria dos seus jogadores-chave, Jorge Mendes.
Para isso chegou Paulo Bento. Um treinador razoável, que noutro cenário nunca seria seleccionador e que foi um dos jogadores que sofreu com a nova ordem de Scolari. Mas a quem o papel de sargento assentava bem. Bento herdou uma pool de jogadores muito pior do que a que tinha o brasileiro. Desde o Mundial da Alemanha que a aposta na formação tinha desaparecido, que não havia jogadores para substituir quem tinha partido. Um buraco etário imenso que continua à espera que a geração que actualmente tem entre 17 e 22 anos possa substituir.
Consciente da situação, o seleccionador optou por voltar aos principios mais básicos do scolarismo.
Independentemente da qualidade individual, formou um grupo fechado de vinte jogadores. Boa ou má forma, houvesse ou não melhores jogadores fora do núcleo, esses eram os seus espartanos. Deu o protagonismo mediático à sua estrela individual e rodeou o onze base de suplentes sacados da carteira de Mendes. Muitos deles sem nível para uma selecção, ainda assim decadente, mas que cumpriam os serviços mínimos que se lhes eram exigidos. Isso explica que os Micael, Oliveira, Amorim, Sereno, Zé Castro, Almeida, Eduardo e companhia sejam convocados com regularidade. Os problemas começaram a surgir quando até as opções para o onze se foram reduzindo. Sem jogadores de nível para posições chave como os centrais, médio defensivo, criador de jogo e ataque, o modelo tornou-se obsoleto. Mas nem assim Bento mudou o seu rumo. Manteve-se fiel a um esquema táctico para o qual não tem jogadores e preferiu chamar mais legionários para as posições deficitárias, brutalizando a equipa e tornando-a mais amorfa. Boa para torneios curtos mas um problema sério durante uma temporada onde se exige mais do corpo aos jogadores de topo para estarem frescos nos jogos importantes.
Só nos últimos encontros Bento foi forçado a confrontar-se com a realidade. O seu grupo tinha falhas importantes e escassez de meios. Depois do Euro 2012 começou a aparecer - finalmente - outro perfil de futebolistas. São jogadores que terão de aceitar as regras da família mas que sabem que não têm muita concorrência para o lugar. O descarte de Quaresma, Tiago, Manuel Fernandes, Rolando e Ricardo Carvalho abriu ainda mais as feridas na defesa e no meio-campo. Sereno, Zé Castro, Ricardo Costa, Ruben Micael, Carlos Martins e Varela não são, claramente, a solução. Mas são os homens de confiança. E por isso aparecem em cada lista. O aparecimento progressivo de futebolistas como Vieirinha, Luis Neto, Pizzi ou André Martins é um sinal positivo para o futuro imediato. Pode não ser suficiente para chegar ao Brasil com um plantel coerente e afastado desse espirito autoritário que tão bem caracteriza Bento, um homem que tacticamente é mais um problema que uma solução, mas indica que o futuro tem opções que não podem ser filtradas por não pertencerem a determinado grupo ou agente. Atrás deles vêm os André Almeida, André Gomes, André Santos, Tiago Ilori, Wilson Eduardo, Bruma, Castro, Ricardo, João Mário das selecções jovens mas também outros eternos descartados como Bruno Gama, Paulo Machado, Eliseu, Duda, Antunes ou Vaz Tê, jogadores que podem oferecer mais do que os que vão regularmente à selecção sem pertencer a esse mundo fechado.
Com pouco mais de 50 jogadores de nível aceitável por onde escolher - consequência de uma péssima gestão federativa e dos clubes com o qual Scolari pactuou e da qual Paulo Bento não tem culpa imediata - é normal que as opções para os jogos decisivos de qualificação para o Mundial sejam reduzidas. Partindo do principio que, salvo lesão, os nomes fortes estarão presentes, quer tenham condições físicas e psicológicas para os duelos ou não, as vagas diminuem. É fácil perceber que nem há um modelo de clube suficientemente forte para sustentar a selecção, nem uma geração de ouro que permita esquecer a ideia de que não é necessário ter demasiadas opções para resolver os problemas. Bento tem como alternativa forjar uma selecção no Outono com os que estejam realmente bem ou manter-se fiel ao seu espírito de grupo. O ideal seria criar um compromisso entre ambas mas isso exige diplomacia, liderança e saber adaptar o sistema táctico aos recursos disponíveis, algo de que o seleccionador nacional ainda não demonstrou capacidade para ser capaz de realizar.
Um possível Portugal 23 para o Outono baseado apenas na qualidade individual, na aportação colectiva e no espírito colectivo (sem ter em conta, naturalmente, lesões e um estado de forma deficiente).
Guarda-Redes - Rui Patricio, Beto
Defesas Laterais - João Pereira, Silvio, Fábio Coentrão
Defesas Centrias - Pepe, Luis Neto, Bruno Alves, Tiago Ilori
Médio Defensivo - Custódio, Miguel Veloso, André Almeida
Médios Interiores - João Moutinho, André Martins, Paulo Machado, Bruno Gama
Extremos - Cristiano Ronaldo, Nani, Vierinha, Bruma
Avançados - Hélder Postiga, Pizzi, Edér
Alternativas (Raul Meireles, André Santos, Danny, Ricardo, Ruben Amorim, André Gomes, Antunes, Mika, Duda, Eliseu, Josué)
A inclinação brasileira do Barcelona ressuscitou graças ao desejo e influência de um presidente que foi, durante anos, o homem-forte da Nike na Europa. Rossell cumpriu o sonho de trazer Neymar para a Europa e agora cabe ao craque brasileiro demonstrar que pode queimar as etapas que nenhum dos seus predecessores foi capaz, brilhar no seu ano de adaptação numa equipa desenhada para um dos seus rivais pelo trono mediático mundial.
A paixão vem de longe. De Evaristo.
Nos anos cinquenta, o brasileiro foi um dos homens mais influentes na curta passagem de Helenio Herrera pelo Barcelona. Antes de transformar-se no guru do catenaccio, o argentino notabilizou-se em Espanha como um amante do ataque romântico, como provou no Atlético de Madrid e no Barcelona. No Camp Nou contou com os golos de Evaristo para acabar com a hegemonia nacional do Real Madrid. O avançado foi o responsável pela primeira eliminação europeia dos merengues e entrou para a história do clube blaugrana. Durante trinta anos foi a grande estrela brasileira da vida do Barça que tentou com Roberto Dinamite, sem sucesso, repetir a fórmula. Foi Romário, da mão de Cruyff, que reactivou a conexão canarinha no Camp Nou. O primeiro de muitos que se seguiram. Ronaldo Nazário, no seu ano mais brilhante, e Rivaldo culminaram essa paixão. Seguiram-se erros de casting como os avançados Giovanni e Sonny Anderson e os médios Fabio Rochemback, Thiago Motta e Geovanni. Mas com Ronaldinho todos se esqueceram desses pequenos precalços. O brasileiro tinha chegado das mãos de Rossell, quando Laporta queria Beckham. O inglês foi para Madrid, o brasileiro chegou de Paris e ajudou a reescrever a história do clube. Rossell, dirigente da Nike Europa durante largos anos, foi o homem forte dessa operação. Com o génio brasileiro vieram também Beletti e Sylvinho, nomes menores mas reflexo dessa conexão canarinha potenciada por Rossell. Quando a festa acabou, a ressaca brasileira gerou pavor nos adeptos. Henrique e Keirisson, últimos suspiros dessa tentativa de procurar a próxima estrela, foram erros calamitosos. Pelo sim pelo não, Laporta nunca mais voltou a pescar no Brasil. Quando regressou ao poder, Rossell, agora como presidente, alimentava o sonho. De trazer Neymar. Para ele - e para os brasileiros - o extremo até agora do Santos é o sucessor espiritual dessa saga Romário, Ronaldo e Ronaldinho. Tê-lo em Barcelona era quase obrigatório e depois de dois anos em que Guardiola mediu o impacto da sua chegada num balneário dominado por Messi e enquanto os multiplos patrocinadores do jogadores exploravam a sua imagem, ficou no ar a ideia de que era questão de tempo até Neymar aterrar em Can Barça. Até que finalmente, diante de 45 mil adeptos extasiados, chegou o novo profeta canarinho para ter Barcelona aos seus pés.
O grande desafio de Neymar está, precisamente, no passado da história do Barça e dos grandes clubes europeus.
Não é por casualidade que clubes de ligas como a portuguesa, holandesa, francesa ou até italiana servem de porta de entrada para as maiores promessas da América Latina. No cone sul joga-se a um ritmo, a uma velocidade totalmente radical. O espaço tem um valor distinto. As marcações são feitas a outro ritmo e, sobretudo, a outra distância. O jogador tem tempo de receber a bola, cumprimentar a sua própria sombra antes de cruzar-se com a do rival. Nesses segundos mágicos há espaço para o drible, o toque súbtil, o levantar a cabeça. O respirar.
Esse tempo tão habitual nas ligas sul-americanas não existe na Europa, sobretudo no futebol espanhol. Cristiano Ronaldo sentiu essa diferença ao mudar-se da Premier - onde a defesa é mais dura mas menos pressionante - para Madrid. Agora imaginem o choque de o fazer directamente do Brasileirão para o clube mais exigente do mundo. Neymar no Santos brilhou muito mas ganhou pouco. O palmarés do clube santino e do jogador é bastante reduzido para tanto ruído mediático. Esse é também um sinal importante. Numa liga mais fácil e menos exigente, os milagres de Neymar não foram suficientes para manter o Santos constantemente no topo. Um alerta para quem acredita num milagre imediato.
Romário e Ronaldo brilharam durante dois anos no PSV antes de chegar a Barcelona. Ronaldinho passou pela mesma etapa no Paris Saint-Germain e só ao segundo ano começou a fazer valer a sua classe. Kaká chegou novo ao AC Milan e teve tempo de crescer sem pressão, mas precisou de cinco anos para afirmar-se internacionalmente. Outros jogadores promissores, de Denilson a Adriano, ficaram pelo caminho.
Neymar terá menos segundos no seu novo relógio e menos espaço para jogar, para criar. Ele é menos um goleador e mais um assistente. Vai-se posicionar preferencialmente sobre o extremo esquerdo, devolvendo Iniesta ao miolo para colaborar com Xavi na criação. Forçando que Cesc e Villa se tornem supérfluos, que Pedro compita com Alexis e que Messi tenha uma sombra. O brasileiro está habituado a receber e decidir. Agora terá de receber e dar. Com Iniesta pode encontrar um sócio fundamental, particularmente com o apoio de Alba. Mas a sua tendência para a diagonal acabará por levar que choque com Messi no espaço. Mesmo imaginando dois génios da técnica a entenderem-se em centímetros e micro-segundos, é inevitável que o choque fisico que existiu entre Messi e Ibrahimovic se repita, agora com o argentino no meio.
Com Neymar o corpo técnico do Barça ganha um reforço ao 4-3-3, ganha um novo goleador para aparecer quando Messi não está. Mas também ganha uma incógnita. Poderá fisicamente manter a exigência de jogar na Europa. Terá rapidez mental e física suficiente para reaprender os seus conceitos de tempo e espaço? Será capaz de colocar o seu ego de lado - como assim tem sido nas declarações realizadas - quando chegar a hora da decisão, e procurar o passe antes do remate? Terá a habilidade suficiente para ser mais um da engrenagem blaugrana e não a ânsia, tão sul-americana, de ser o vértice do modelo? Muitas perguntas que só poderão ser respondidas nos próximos 365. Se triunfar, será o primeiro brasileiro a consegui-lo no seu primeiro ano europeu, algo que nem Sócrates, Falcão, Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká lograram. Caso contrário, terá seguramente a exigente imprensa atrás da sua sombra e o Brasil pendente do estado moral da sua estrela em ano de Mundial.