Quando Johan Cruyff despediu Zubizarreta no aeroporto de Atenas, depois da humilhante derrota contra o AC Milan de Capello, seguramente não imaginava que teria de passar uma década até que o Barcelona encontrasse um guarda-redes capaz de interpretar perfeitamente a sua filosofia de jogo. Os adeptos blaugrana esperam agora não ter de esperar uma década mais até que Victor Valdés tenha sucessor. Porque o seu papel no modelo Barça é fundamental.
Quando Valdés erra, com os pés, a maioria dos adeptos e analistas activa de imediato o modo crítico.
Esquecem-se, talvez, que o catalão é um dos poucos guarda-redes do Mundo que utiliza os pés mais do que as mãos. É isso que se lhe exige, foi para isso que foi treinado desde pequeno. Valdés é o sucessor mediático de Grosics, o polémico e incendiário guarda-redes húngaro da Aranyascap orientada por Gustav Sebes. Quando os ensinamentos da escola danubiana viajaram, primeiro para Amesterdão e depois para Barcelona, a ideia de um guarda-redes capaz de jogar com o resto da equipa vinha na mala. E ficou.
Ao contrário dos guarda-redes sul-americanos, que com os pés desafiam a sua natureza e sonham com algo mais que só o sonho potrero pode aspirar, Valdés utiliza os pés com critério. O mesmo critério que todos os outros colegas de equipa e, tantas vezes, superior ao de muitos rivais. Numa equipa de tracção à frente, que concede poucas ocasiões, o trabalho do guarda-redes é fundamental. Valdés foi herói em Paris, quando Henry teve a Champions League no bolso. Foi também fundamental em aguentar o assédio do Manchester United em Roma, até que a combinação Iniesta, Xavi e Messi começou a funcionar. E durante estes últimos dez anos foi o único guarda-redes que soube compreender a natureza da baliza do Camp Nou. Entre o basco Zubizarreta e ele passaram uma infinidade de guarda-redes, todos de características muito distintas mas com um ponto em comum: nenhum sabia manejar bem a bola com os pés.
Nem Vitor Baía, nem Ruud Hesp, nem Roberto Bonano, nem Francesc Arnau, nem Robert Enke, nem sequer Pepe Reina, forjado na mesma filosofia, entenderam tão bem como Valdés o que lhe era exigido. Ser o primeiro a fazer jogar.
Guardiola defendeu sempre Valdés como peça nuclear do seu modelo de jogo.
Não só porque sabia sair a jogar com os pés, oferecendo o homem extra na defesa que ele sacrificava para enviar ao ataque. O seu 3-3-4 às vezes tornava-se num 4-3-4 porque Valdés subia no terreno e oferecia uma alternativa de passe extra ao jogador com a bola. Os colegas sabiam que podiam confiar nele. Errou. Algumas vezes errou. E por ser o guarda-redes, o último homem à face da terra, a equipa pagou o preço. Mas não abdicou da sua forma de jogar. Não por um erro, nem por mil.
Muitos criticaram o técnico catalão pela sua fidelidade a Pinto - um guarda-redes bem distante da escola blaugrana mas peça fundamental no balneário - ao fazê-lo jogar a final da Copa del Rey que Cristiano Ronaldo decidiu com um golpe de cabeça impossível a favor do Real Madrid. Mas nesse momento a transcendência de Valdés não se notou no golo sofrido mas sim nos problemas que os catalães encontraram ao sair com a bola controlada. Na semana seguinte, Valdés voltou a demonstrar a sua inteligência de jogo, não saindo com a bola controlado mas com um lançamento longo preciso que leu o desmarque de Pedro com a mesma inteligência de jogo que um passe de Xavi teria tido uns metros à frente. O Barcelona marcou e fechou a polémica meia-final da Champions League. Seria a terceira medalha ao peito do guarda-redes, o mais laureado dos guarda-redes espanhóis em provas da UEFA.
Dez anos depois de van Gaal lhe ter dado a primeira oportunidade, Valdés está farto.
Sofreu a pressão dos maus anos de Rijkaard, nunca conquistou definitivamente a admiração do próprio público, o mesmo que duvidava do valor de Xavi e Iniesta antes da chegada de Guardiola, e não gostou sobretudo de ter sido o bode expiatório das derrotas e o nome silenciado nas vitórias. É um homem de desafios extremos, amante do surf e dos desportos radicais, filho de uma geração da Masia que, salvo ele, não triunfou como se esperava. Antes dele já estavam Puyol e Xavi, logo a seguir veio Iniesta, Messi e companhia, mas ele surgiu sozinho. E sozinho vai partir. Deixará saudades e sobretudo um vazio que os directivos ainda não sabem como preencher. Porque, fiel à sua formação, é um guarda-redes único. Na cantera blaugrana há jovens com potencial mas que precisam de muitos anos e minutos para chegar à excelência que este projecto exige. E no mercado não deixa de haver grandes guarda-redes, como Vitor Baía o foi, mas cujo o valor fica para segundo plano quando a exigência de enquadrar-se num esquema já custou tanto a Ibrahimovic ou Villa, no outro extremo do terreno de jogo.
Valdés nunca se consagrou como o grande guarda-redes espanhol porque a sombra de Casillas é imensa e incontestada. Mas o seu percurso profissional é um exemplo perfeito de como uma filosofia de jogo é capaz de gerar jogadores para posições distintas mas com o mesmo ADN. Qualquer que seja o clube que o receba, terá um reforço radicalmente diferente à sua forma de jogar. Qualquer que seja o seu substituto, perderá sempre na comparação com a essa entrega ao projecto Barça. No final, Valdés e o Barcelona estão feitos um para o outro e a separação, como sucedeu com Lennon e McCartney, trará mais problemas a ambos do que soluções.
O futebol inglês apaixonou-se pelo modelo de eliminatórias desde a sua génese. A concessão ao formato de liga regular foi uma consequência da abordagem económica ao jogo da qual os britânicos foram pioneiros. Mas o espírito da FA Cup tem sido sempre o resguardo moral do futebol na ilha. É nesses duelos, imprevisíveis e abertos, onde as diferenças de orçamento se diluem e a épica ganha forma. É nesses duelos que o futebol encontrava o caminho das suas próprias origens.
Luton, Bradford, Swansea, Milton Keyne Dons, Olham Athletic, Millwall...
Todos os anos os nomes mudam, a essência permanece a mesma. A FA Cup e a Taça da Liga (ou Capital One Cup como o marketing manda), tornaram-se no motivo de alegria de adeptos em todo o mundo. Não só em Inglaterra. Caíram as seus pés equipas de prestigio, equipas de orçamentos infinitamente superiores, equipas de quem se espera que, pelo menos, marquem presença em Wembley uma vez dada dois anos. Chelsea, Aston Villa, Liverpool, Tottenham, falharam este ano. Dos grandes do futebol inglês, só Arsenal, Manchester United. Chelsea e Manchester City podem percorrer o tapete sagrado do futebol insular. E mesmo assim, ainda faltam jogos suficientes para que o milagre da Taça da Liga se volte a repetir. E o Mundo celebrou. Não porque gosta que os clubes grandes percam, que também é algo inato na vida do adepto, mas sobretudo porque adora ver os clubes pequenos forjarem a sua lenda. Mesmo que percam na ronda seguinte, por um dia são as estrelas. Por um dia são os ídolos. A ordem inverte-se, a moral mantém-se intacta.
O poder dos grandes clubes é menor que as tradições nos países onde estas valem algo. Na Península Ibérica está claro que o peso da tradição é facilmente corrompido e por isso em Espanha a Copa del Rey é disputada a duas mãos e as meias-finais da Taça de Portugal seguiram pelo mesmo caminho. Uma garantia de que os gigantes podem tropeçar uma vez, que têm sempre hipóteses de dar a volta. É uma competição imoral, mais desigual que a própria liga regular e que se transforma, curiosamente, num problema para alguns dos clubes pouco interessados em gastar energias a vencer troféus sem prestigio internacional. Salvam épocas de equipas desesperadas mas não curam as almas dos adeptos. Com o mano a mano entre Guardiola e Mourinho, a Copa del Rey ganhou outra dimensão em Espanha, forçando as duas grandes equipas a lutar pela mais mínima medalha, mas os adeptos são conscientes de que é uma realidade passageira. Em Portugal, é-o ainda mais. Desde 2004 que não se disputa uma final entre FC Porto e SL Benfica e mesmo nesse ano, pela presença dos dragões na final da Champions League, já com o título da liga no bolso, a vitória dos encarnados soube a pouco para quem imaginava um duelo de outro nível.
Em Inglaterra tudo é distinto, tudo é orientado para a lembrança do passado e o respeito pela memória.
Todas as equipas que hoje são surpresa foram grandes em algum momento da sua história. Muitos dos jornais portugueses, sem a mais mínima cultura futebolística, falam do Leeds United como tomba-gigantes do Tottenham Hotspurs. É curioso, visto que os homens do Yorkshire jogam por um clube com mais troféus conquistados que os londrinos, mas que penam há alguns anos no Championship pela penosa gestão financeira de Peter Risdale, um homem que sonhou em transformar o clube num novo Manchester United e que não olhou a meios para obter um fim que nunca chegou. Esse mesmo Leeds, que já perdeu uma final europeia, é só o exemplo mais claro, mas tanto Oldham, como o Luton, Millwall ou Bradford foram equipas de prestigio da parte alta da tabela classificativa. E claro, o Milton Keyne Dons, não é mais que o velho Wimbledon, transferido para a cidade suburbana criada a norte de Londres em plena expansão imobiliária.
Cada um desses clubes tem uma história, uma série de adeptos fieis e sabem o que é bater-se de igual com os chamados grandes do futebol inglês. Já o fizeram noutras reencarnações. Mas o que as provas a eliminar em Inglaterra lhes permite, é redescobrir esse velho e inesquecível prazer de os vencer diante dos seus, de sentir nos lábios o sabor da vitória. Esse prazer é algo quase exclusivo de uma cultura que persiste nas ilhas britânicas e que nem os milhões que agitam o jogo, como em nenhum outro lugar, são incapazes de corromper.
Se há tomba-gigantes em várias ligas - e França e Alemanha são talvez o mais democrático dos exemplos - em nenhum outro lugar há esta comunhão do passado e do presente, do dinheiro e da ambição, de jogadores que durante a semana limpam as suas próprias chuteiras com estrelas mundiais. É um universo paralelo à asfixia monetária que obriga a Premier League a endividar-se cada vez e os clubes que nela participam a hipotecar o futuro por mais meia dúzia de pontos no final da temporada.
Talvez nenhum desses clubes chegue à final da FA Cup, talvez o jogo entre o maravilhoso Swansea, desenhado por um conjunto directivos que teve uma ideia de futebol e não se afastou nem um só milímetro em seis anos, e o Bradford, seja a menos vista da história da Taça da Liga no mercado oriental. Mas são jogos como esse que definem a natureza do futebol britânico e que, através dessa viagem no tempo, nos fazem acreditar que há ainda muito espaço e tempo para o futebol encontrar um meio-termo entre o espírito autodestrutivo dos dias de hoje e o nostálgico passado.
Enquanto a CAN dá os primeiros passos, fica evidente uma triste mas inevitável realidade. África pagou o preço de querer ser igual aos outros, aos que ganham a partir do sistema, aos que valorizam o triunfo sobre o modelo. A péssima qualidade dos jogos iniciais, aliada sobretudo à ausência de algumas das melhores selecções do continente, deixa antever um torneio pobre que não entrará na galeria dos mais memoráveis da competição. Tudo porque o futebol africano esqueceu-se de quem é.
Quando os Camarões surpreenderam o mundo do futebol, no Mundial de Itália 90, ainda não vivíamos num mundo global.
Salvo alguns jornalistas franceses - a France Football criara em 1970 o Ballon D´Or só para o continente - na Europa ninguém sabia ou queria saber do que se passava no "continente negro". Ninguém se importava com a Champions League africana, com a CAN, com o aparecimento de grandes estrelas individuais, treinadores memoráveis e jogos que não ficavam atrás dos mais tensos Boca Juniores vs River Plate ou Barcelona vs Real Madrid. África vivia no seu mundo, ignorada pelos restantes habitantes do planeta, fiel às suas origens.
Não era uma anarquia táctica, como sempre se tentou vender. Os jogadores não tinham a mesma formação que os europeus, é certo, desde cedo focados muito mais no aspecto organizacional, mas os conjuntos estavam tacticamente adaptados à realidade do momento. Em 1986 os marroquinos tinham sido eliminados só por um golo no prolongamento de Lothar Mathaus. Quatro anos antes, a Argélia tinha sido uma das melhores equipas da primeira fase, eliminada pelo pacto germânico entre austríacos e alemães. E na Argentina, em 1978, o perfume do futebol tunisino impressionou todos quanto o viram. Eram potências magrebinas, da escola francesa, com vários jogadores que actuavam na Europa, mas eram também a base de muitos dos clubes mais importantes do continente. Era um dos modelos do futebol africano, perfumado, técnico e organizado, cujo expoente máximo, o Egipto, sempre se portou melhor dentro do que fora de portas.
Os Camarões representavam essa outra África, negra, selvagem, rebelde, anárquica quase ao olho europeu, mas que tinha sido habilmente treinada por europeus durante mais de duas décadas para preparar-se para os grandes momentos. As pessoas lembram-se das celebrações de Roger Milla, repescado com os seus 38 anos depois de ter sido ignorado pelo Mundo quando venceu na década de 70 dois Ballon D´Or, mas não da dureza com que os Camarões derrotaram a Argentina. Ou da segurança táctica do conjunto egípcio. A memória, como em tudo, é bastante selectiva e a imagem que ficou de África, apesar de não distante da real, pecou por incompleta.
A Nigéria herdou o papel dos Camarões e deslumbrou nos anos 90.
Em toda a sua anarquia, em todo o seu atraso, como se vendia na Europa, venceram o seu grupo no Mundial de 1994, e acabaram eliminados por uma Itália entregue a Baggio. Depois ganharam uns Jogos Olímpicos batendo o Brasil e a Argentina, antes de humilhar espanhóis e bulgaros e cair diante dos dinamarqueses, depois de uma noite sem dormir a discutir os prémios de jogo, esse sim um mal bem africano.
No final, os experts, chegaram à miraculosa conclusão de que África não tinha um campeão do Mundo porque não tinha processos tácticos avançados, não tinha segurança defensiva e não sabia competir de igual para igual. O problema foi que os africanos começaram a acreditar nisso. A Lei Bosman transformou os clubes em empresas de exportação. Em lugar de bananas, exportavam jogadores em contentores para a Europa. O ASEC Mimosas tornou-se na filial do clube belga Lokeren - que chegou a ter onze jogadores marfilenses nos seus quadros. E como toda a lei de exportação, produz-se o que o cliente pede. E os europeus, que inicialmente se apaixonaram por Milla, por Finidi, por Abedi Pelé ou por Weah (já nem vamos falar de Eusébio, Keita, Ben-Barak ou Fontaine), passaram a pedir Desaillys, Vieiras, Essiens, Drogbas jogadores fisicamente possantes e omnipresentes, mais preocupados no processo destrutivo do que na arte mágica da criação. África dedicou-se a renegar da sua própria natureza.
O seu futebol mudou, as ligas - melhor organizadas, mas mesmo assim a anos luz dos modelos europeus - passaram a estar sob a mira de olheiros de todo o Mundo e quando os seus artesões chegavam à Europa e eram devolvidos à procedência por serem incapazes de passar 90 minutos a correr e pressionar o defesa rival sem ter uma oportunidade de golo, chegou-se à conclusão que o futebol africano estava em crise. Que só produzia jogadores físicos, muitas vezes com idades adulteradas, e que todos os criativos se tinham perdido. Ironia das ironias.
Europa provocou a destruição progressiva da alma do futebol africano com a sua política de compra e venda. A necessidade de viajar para o continente europeu para sobreviver - já nem falamos em enriquecer - transformou a própria natureza do jogador africano, como diria Etoo, necessitado de "trabalhar como um negro para viver como um branco". Os avançados passaram a ser tanques, os médios perderam o toque vagabundo para ganhar porte de milicianos e os defesas deixaram de arrancar da sua posição para explorar o mundo para aprender onde dar sem que o árbitro estivesse atento. O futebol africano transformou-se em pouco mais uma década no que é hoje, a anos luz de distância do que significou, onde todas as equipas se parecem, onde falta ambição criativa e sobra a especulação táctica. Onde o resultado é só o que conta.
O problema de África, ao acreditar nos europeus - algo que os sul-americanos tiveram a inteligência de nunca fazer verdadeiramente - foi a sua total dependência. Enquanto as ligas sul-americanas permitem que muitos jogadores possam fazer carreira sem sair de lá, em África a emigração é o único destino possível. As escolas patrocinadas por clubes como o Ajax limitaram-se a recrutar os diamantes em bruto cedo para moldá-los à sua figura antes do tempo. Os restantes estão entregues a empresários que dizem aos treinadores como preparar a próxima leva de contentores. Depois, quando se liga a televisão, agora que o mundo global permite, a CAN parece pobre, parece despromovida de emoção e, sobretudo, de qualidade. E há quem pense que o que se pensou, lá no coração da década de 90, não passou de um enorme erro. Quando o erro esteve, precisamente, em ignorar os 40 anos de futebol africano que havia por detrás.
O mês de Janeiro é dedicado em exclusiva à relação entre o futebol e o mundo da cultura. Selecionamos as melhores reportagens publicadas na revista online @Futebol Magazine:
- Foi o mito do reggae, o profeta do rastafarismo e um futebolista apaixonado. A história do amor desconhecido de Bob Marley.
- Durante anos alimentou a imaginação dos ingleses, foi o herói perfeito. A saga de Roy of the Rovers.
- Ao som das noites europeias dos anos 70 começou a desenhar-se o ambiente sonora da banda alternativa Saint-Etienne.
- A sua paixão pelo clube da sua terra levou-o a investir fortunas nas arcas do clube. Numa década o Watford de Elton John tornou-se na coqueluche do futebol britânico.
- Foi um herói anónimo para milhares de jogadores virtuais mas na realidade, Maxy Tsigalko nunca cumpriu com o que se esperava dele.
- Deve o futebol ser um jogo visto obrigatoriamente sentado ou há espaço para o futebol de pé? O debate do mês!
Poucas figuras geram tanta admiração genuína no universo do futebol contemporâneo como Pep Guardiola. O filho mais popular da Masia, aquele que melhor entendeu uma mensagem de quase um século, que deambulou pela Europa até descansar em Barcelona, opta agora por voltar às origens. Guardiola é o grande sobrevivente da escola centro-europeia. Com o Bayern Munchen regressa à bacia do Danúbio, onde tudo começou.
Não foi propriamente em Munique, mas seguindo a corrente do Danúbio, que por ali passa perto, que o futebol europeu ganhou vida.
Os ensinamentos de Jimmy Hogan, a doutrina de Hugo Meisl, os debates nas casas de café de Viena, a multi-etnicidade do império austro-húngaro semeou as ideias que foram inicialmente forjadas na Escócia e que driblaram a escola inglesa para tornar-se no modelo continental por excelência. Das margens do Danúbio, essas ideias voaram para leste e mergulharam em Kiev e para oeste onde encontraram o paraíso em Amesterdam. Foi aí que se começou a gerar a paternidade do Barcelona actual, entre os ensinamentos de Michels e as lições aprendidas de Cruyff. Quando ambos chegaram a Barcelona, encontraram-se com Laureano Ruiz e tudo fez sentido uma vez mais.
Josep Guardiola tinha acabado de nascer e com ele uma nova forma de encarar o futebol.
Quando assumiu as rendas da equipa principal do Barcelona até a sua sombra desconfiava. Um primeiro jogo e uma derrota, frente ao Numancia, seriam a prova viva de que há vida para lá dos resultados imediatos. Guardiola meteu a mão no baú e recuperou não só a herança recente do cruyffismo, que a gestão pouco autoritária de Rijkaard tinha perdido, como foi mais atrás na história. Bebeu futebol como poucos, falou com os mentores, viu as imagens do passado e resgatou ideias que plasmou no seu caderno mágico. Com ele o Barcelona foi o Dream Team de Cruyff. Mas também foi o Barça das Cinco Copas, também foi o Ajax do Total Voetball, também foi a Aranyascap húngara, também foi o Brasil de 70, La Máquina do River e a herança do Wunderteam.
A cada toque de bola no meio-campo do Barcelona era a história que voltava à vida. Messi fez de Hidgekuti, de Pelé, de Di Stefano. A Xavi a bola acarinhava-o como fazia com Gerson ou Suarez e Sindelaar, Kubala e Rivelino transmutaram-se num jogador quase albino nascido nas profundezas manchegas chamado Iniesta. Esse trio mágico ajudou o Barcelona a posicionar a coluna vertebral do seu futebol correctamente depois de um período de caminhadas forçadas e curvadas de olhos no chão. Desafiou o Mundo primeiro e a posteridade depois. E venceu.
A chegada de Guardiola a Munique representa o regresso a essas origens, o ciclo que se completa.
Mas é também uma decisão com olhos postos no futuro. No mais imediato e no mais longínquo.
Pep sonha com ser o sucessor de Alex Ferguson em Old Trafford. É absolutamente normal. Não se trata só do clube mais bem organizado do Mundo como a cultura futebolística dos Red Devils não tem igual. Desde Busby que é um local de lenda absoluta e tem os meios financeiros para manter-se na elite. Uma formação que pode nutrir a equipa principal e uma geração que daqui a três anos chegará praticamente ao seu final. É aí que Ferguson quer dizer adeus. Ele adia desde 2002 a sua retirada mas sabe que não aguentará mais do que um triénio da máxima exigência. Falou com Guardiola várias vezes no último ano e prefere o seu perfil, educado, futebolisticamente culto e ambicioso ao de um José Mourinho de quem é, não obstante, amigo pessoal. Guardiola seria o gentleman que Busby sempre foi, mesmo nos momentos mais difíceis.
Mas até 2016 o génio de Guardiola tinha de voltar aos terrenos de jogo. Um ano sem um dos mais importantes pensadores recentes do futebol já é sofrimento suficiente. E claro, se sonhas treinar o Manchester United não ajuda ter no curriculum uma passagem recente por Manchester City ou Chelsea, para dar dois exemplos mais endinheirados, ou Arsenal e Liverpool, clubes cuja filosofia e a de Guardiola são similares.
Sem Inglaterra como destino, Guardiola tinha poucas opções. Mas ao contrário de outros, nunca foi um homem interessado no aspecto financeiro do jogo e a oferta do PSG, que alguns equacionam, foi rapidamente descartada. A do Milan também mas, por outro motivo. Em Itália Guardiola acabou a carreira de jogador e viveu os seus piores momentos. Foi acusado de doparse, declarou-se inocente e demorou meia década a prová-lo em tribunal. É um país que não traz as melhores recordações. E Berlusconi um homem que, apesar de tudo, não lhe inspira confiança.
E é aí que entra o Bayern Munchen.
Outros treinadores descartariam o Bayern porque não tem o mesmo glamour de outros clubes europeus. E no entanto poucas instituições venceram tanto na história como eles. Poucas instituições são tão bem geridas - desde a formação até ao departamento financeiro - como eles. Poucos clubes podem ambicionar manter-se na elite durante tantos anos sem com isso destruir o orçamento à base de compras milionárias, como eles. O Bayern Munchen é o herdeiro da escola centro-europeia e ao longo dos anos 70 demonstrou-o plenamente. Depois entrou numa espiral que o fez duvidar da sua própria natureza. A imprensa chamou-o Hollywood FC. Durante essa era dominaram a Bundesliga mas perderam prestigio na Europa. E aprenderam a lição. Desde há uma década que são, a par do Barcelona, o clube perfeito em vários níveis.
No Allianz Guardiola terá à sua disposição talvez o terceiro melhor plantel do mundo. Estão lá Neuer, Luis Gustavo, Javi Martinez, Schweinsteiger, Kroos, Ribery, Robenn, Shaquiri, Gomez, Lahm, Boateng, Badstuber, Dante e companhia. Tem uma formação repleta de promessas imensas como Emre Can. Tem um bloco sólido de directivos que conhecem o clube de lés a lés. E jogam na liga mais emocionante e em ascensão do futebol europeu. Não se pode pedir mais.
Com Guardiola ao leme o Bayern Munchen pode perfeitamente lograr o que van Gaal e Heynckhes não conseguiram. Já não se trata só de recuperar a hegemonia interna - em cinco anos três títulos nacionais são uma óptima média - mas também regressar à glória europeia. O plantel tem todas as condições para assimilar a filosofia de toque, posse e ambição do treinador catalão. Não é a cultura do kick-and-rush inglesa, não é um balneário cheio de prima-donas pagos a peso de ouro, é um clube com uma profunda cultura futebolística. A mesma que passeou-se do Danúbio até Barcelona, a mesma que se ensina na Masia com paixão. A mesma que Guardiola entende como mais ninguém!
Uma tarde, uma conversa a 700 kms de distância via chat e um debate futebolístico como há cada vez menos. O final das tertúlias futebolísticas em bares e cafés, substituídos pela histeria da televisão e o anonimato do mundo virtual é algo que se me custou. Encontrar pessoas com quem se possa falar, sem preconceitos, de futebol, é uma bênção.
No excelente Porta19, o Jorge Bertocchini decidiu reproduzir uma dessas conversas num post delicioso que, como o blog, vale a pena seguir.
O futebol, afinal, não é um jogo que se joga com os pés. É um jogo que se joga com a cabeça e com o coração. E nesses debates há sempre espaço para os dois.
É curioso o sucesso que os treinadores portugueses parecem ter quando partem para outras paragens quando em casa, a verdade é que as suas limitações ficam bastante mais à vista. No duelo que decidirá, mais cedo que tarde, o título de campeão, ficou evidente que ambos os treinadores foram incapazes de apresentar um plano que decidisse no tabuleiro de xadrez a contenda de uma época. Sem o génio individual, o Benfica - Porto tornou-se num pálido reflexo do que um grande jogo de futebol pode ser.
No Verão o FC Porto vendeu Hulk para tapar o imenso buraco financeiro da sua SAD.
Não foi um negócio surpreendente. Na última década o clube da Invicta transformou-se numa plataforma de negócios anual. Todos os anos, quase sem excepção, a sua melhor individualidade é vendida a preço de ouro para reduzir o passivo. Como o dinheiro que entra (entre comissões a ser pagos, alienação progressiva de passes e compras de substitutos) quase nunca chega a cumprir o seu objectivo, muitos perguntam-se qual é a real motivação desses negócios. No final, face à evidência, fica claro que o clube tem tanta confiança na sua estrutura que está preparado a abdicar do poder individual para suster o espírito colectivo. Um espírito que parte de um modelo táctico bastante simples, um 4-3-3, que pode oscilar de processos de transições rápidas, como sucedeu na era Jesualdo Ferreira, a um futebol mais rendilhado e de posse, como aplicou André Vilas-Boas. O treinador actual dos dragões, Vitor Pereira, está a meio caminho. Por um lado gostaria de seguir a escola do seu antecessor no cargo mas a perda progressiva de qualidade do plantel e a falta de alternativas têm-no forçado a um estilo de jogo mais pragmático.
Pereira não é um treinador que tenha no seu ADN a palavra risco.
Não só na aposta em jogadores jovens, sem experiência, mas, sobretudo, porque para ele o 4-3-3 é de tal forma sagrado que numa visita ao seu rival directo é capaz de transformar num médio centro num extremo direito apenas para manter o desenho no tapete verde. O FC Porto de José Mourinho conquistou o Mundo, entre outras coisas, porque mudava num estalar de dedos de um 4-3-3 agressivo a um 4-4-2 em forma de diamante de contenção e controlo. Fosse Vitor Pereira capaz de o fazer e o Benfica teria sido destroçado no jogo da Luz. Se com três jogadores a supremacia no meio-campo já era evidente, com quatro, os dragões forçariam o rival a um futebol mais directo. Claro que Defour não é nem James nem Deco, para fazer a ponte entre o ataque e o meio-campo. Como Izmailov, que podia ocupar o papel, tinha duas sessões de treino, seria um risco, mas um risco controlado. Pereira não gosta de riscos.
Quando se encontrou com o empate, agradeceu, colocou Castro e Ba a cimentar a posição defensiva, abdicou do ataque e esperou pelo relógio, sempre bom conselheiro. Podia ter conseguido um balão de oxigénio importante na luta pelo título mas acabou por contentar-se com manter-se em igualdade de circunstâncias (apesar de ter um jogo menos, que tem de vencer), e uma fidelidade absoluta à cartilha.
A venda de Hulk tirou poder de fogo ao FC Porto, poder de decisão, especialmente quando as coisas corriam mal.
Já as saídas de Witsel e Javi Garcia tiveram um impacto muito inferior no modelo de jogo do Benfica. As equipas de Jorge Jesus vivem noutra era, são dos dias da televisão a preto e branco, um período da história táctica em que o meio-campo se começou a definir como elemento nuclear no plano de jogo. Jesus está antes dessa evolução. Para ele o futebol é um desporto frenético, como os primeiros 20 minutos de jogo.
Foi assim no seu ano de campeão, uma equipa de tracção à frente mas que contra rivais directos sofria. E muito. Porque não tinha meio-campo ou, pelo menos, um meio-campo de trabalho e construção. A Europa tem sido a vara de medir do futebol de Jesus e ano após ano tem também exposto as suas fragilidades. Apesar de tentar variar entre o 4-3-3 e o 4-2-4, é na abordagem que o técnico mais perde. Não confia nos seus jogadores mais criativos e prefere os mais rápidos, os mais eficazes e aqueles que fazem do pulmão, antes da cabeça, a sua principal arma.
Sairam Witsel e Javi Garcia, entraram Enzo Perez e Matic, e o modelo não mudou porque a troca por troca, na maioria dos jogos, é entre a defesa e o ataque que joga o Benfica. E jogo de uma forma directa, com dois extremos bem abertos, com dois avançados móveis (habitualmente Lima e Rodrigo), que alargam o campo, permitem a incorporação dos laterais e dos médios, sobretudo a partir de lançamentos rápidos e directos para a grande área. Um dispositivo que funciona perfeitamente com equipas que apostam, quase invariavelmente, num 4-5-1 profundamente defensivo mas que na primeira hora do duelo frente ao FC Porto fica exposto totalmente a uma equipa com mais jogadores no miolo e mais paciência na circulação.
Depois da sequência de erros sucessivos que levam ao 2-2, o meio-campo do FC Porto engoliu previsivelmente o do Benfica.
Faltou-lhe a coragem e capacidade de fazer sangue, a aproximação de linhas na área rival enquanto o jogo encarnado se resumia a lançamentos largos para Cardozo que procurava ganhar a segunda bola no ar para Lima e Gaitan surpreenderem as costas de Fernando. Muito pouco para quem aspira a tanto e no entanto foi suficiente para manter os dragões sobre guarda. Sabiam-se sem falta de alternativas no banco e mantiveram-se fieis ao modelo. Um quarto médio tinha acabado com o jogo definitivamente, asfixiado totalmente o rival. No banco Jesus tinha Aimar e Carlos Martins, jogadores que sabem precisamente fazer isso. Só quando os lançou, e abandonou o seu futebol directo, o jogo se reequilibrou e o Benfica criou perigo realmente a Helton. Ao querer a bola nos pés dos seus jogadores, quis ganhar o jogo. Mas ia tarde. O 4-3-3 do FC Porto não só serve para controlar bem o meio-campo mas também para tapar as investidas rivais e o resultado final tornou-se absolutamente inevitável.
No único jogo de uma Liga Sagres cada vez menos atractiva, ficaram evidentes as limitações tácticas dos seus dois protagonistas no banco. É muito provável que a segunda volta, no Dragão, apresente uma abordagem distinta. Até lá é improvável que se acumulem os tropeções e o risco terá de ser maior. Só aí se verá se o coelho escondido na cartola de Jorge Jesus, mais proclive a preparar jogos de forma improvável, pode perturbar o esquema sólido de um Vitor Pereira que espera contar com o elemento diferencial que transforma o seu modelo numa máquina de vencer, o colombiano James Rodriguez.
Poucos prémios têm o condão de atrair tanta atenção pública como o Ballon D´Or. E tão poucos se têm transformado num circo de variedades nos últimos anos como o Ballon D´Or. O quarto triunfo consecutivo de Lionel Messi não discute o seu génio. Pelé e Maradona não precisaram de 4 Ballons D´Or para ser considerados os melhores de sempre. Messi também não precisa. Ele está há muito nesse olimpo de génios e por muitos troféus individuais que ganhe, eles não o vão fazer melhor jogador. Mas vão torná-lo um eucalipto, a última coisa que o futebol e este prémio precisam.
Quem precisa de um prémio individual num jogo colectivo para consagrar um jogador precisa, sobretudo, de ver mais futebol.
Quando apareceu pela primeira vez na ribalta, em 2006, Lionel Messi já deixava antever que era um jogador especial. Cresceu no melhor sistema de formação do Mundo, foi tratado e mimado como poucas promessas da história do futebol e aprendeu em loco com um jogador que podia ter ido tão longe como ele se tivesse tido a cabeça necessária, Ronaldinho. Quando chegou Guardiola, Messi estava preparado para tomar de assalto o futebol Mundial. E fê-lo com estilo, com classe e com malabarismos que poucos tinham visto.
Messi tem um pouco de quase todos os grandes jogadores da história.
A finta de Garrincha, a mobilidade de Di Stefano, o faro goleador de Pelé, o espirito potrero de Maradona e a mudança de velocidade de Cruyff. Parece feito por encomenda. Ao contrário deste quinteto irrepetível, conseguiu prolongar nos anos a sua carreira fruto ao trabalho de um clube que o soube rodear de um grupo de génios especializados em não aparecer. Di Stefano rivalizou com Puskas e Pelé com Garrincha, mas Messi sabe que dentro da mesma equipa não há rival.
Os demais jogam, à consciência, para ele e não há nenhum drama nisso. Quando tens um dos melhores jogadores da história na tua equipa, aproveita-o. Mas o génio de Messi supera, por muito, a necessidade de vencer, ano após ano o prémio Ballon D´Or.
Porque nem o prémio foi criado para premiar o melhor jogador do Mundo, nem lhe faz bem atribuir, ano após ano (e sempre com considerável diferença pontual) o troféu. Não que não seja merecedor, o seu génio é o seu melhor cartão de visita. Mas porque antes dele todos os grandes, todos os gigantes, e Messi não é o único, partilharam os seus triunfos como uma forma, inclusive, de se fazerem ainda mais grandes.
A história faz-se de heróis individuais e, sobretudo, de disputas icónicas. É assim em todos os desportos e mesmo naqueles em que houve hegemonias claras, sempre se encontrou espaço para a concorrência. Era bom para o negócio, era bom para o ego e era mais de acordo com a realidade. Porque Lionel Messi pode ser o melhor jogador individual do Mundo mas não foi o melhor jogador individual em 2012 e as duas coisas, por muito estranho que pareçam, não são sinónimos.
O palmarés do Ballon D´Or está repleto de exemplos que explicam bem esta realidade.
Zinedine Zidane venceu apenas uma vez e durante quase uma década foi considerado o melhor do Mundo. No seu "mandato", venceram o prémio aqueles que brilharam mais num ano em concreto, de Nedved a Ronaldo, de Figo a Rivaldo. Ninguém discute que hoje é Zizou quem está no top da história e que não foram precisos vencer de forma consecutiva vários prémios para o reclamar. O mesmo podemos dizer de Ronaldinho (venceu apenas uma vez), de Beckenbauer e Cruyff (que dividiram entre si cinco prémios, em seis anos) ou da década de 60, onde nenhum jogador repetiu o triunfo apesar de todos saberem que Eusébio e George Best - entre os nomeáveis - estavam um furo por cima de Masopoust, Albert, Law ou Suarez.
O Ballon D´Or tornou-se popular porque premiava os feitos de um ano. Da mesma forma que os Óscares premeiam uma performance em concreto (Brando venceu dois, em 1954 e 1972, e ninguém quer saber quem ganhou os que estavam pelo meio), os Grammys um trabalho musical, os Ballon D´Or premiavam temporadas. Um génio podia ter um mau ano, o melhor podia ser superado numa época em concreto e os títulos colectivos, a natureza do futebol, contavam e muito porque no fundo, apesar de tudo, é isso que um jogador profissional quer ganhar.
Messi podia perfeitamente vencer estes quatro e mais quatro, que não terão muita discussão. Mas é legitimo pensar que em 2010 não foi o seu ano. Falhou nos momentos decisivos da temporada, onde mais se exige aos maiores. Não é um drama, é uma realidade. O mesmo sucedeu este ano. Em ambos os anos a legião espanhola (Xavi, Iniesta, Casillas) merecia ter tido outro tipo de reconhecimento e o talento individual e brilhante de um ano (como teve Sneijder em 2010 e Ronaldo e Falcao em 2012) superou em 365 dias o seu génio individual mais consensual.
Mas a metamorfose do Ballon D´Or num prémio da FIFA tem destas coisas.
Em 2010 os votos dos jornalistas dariam o prémio a Sneijder mas na votação juntaram-se os capitães, jornalistas e seleccionadores de todo o Mundo, do Vanuatu à Guiné Conacrky, de St. Nevis and Ketis às ilhas Samoa. E isso, forçosamente, transformou o prémio num concurso de popularidade. E não há ninguém mais popular do que o argentino. Nem ninguém mais impopular que Ronaldo. Nem ninguém com mais low profile do que Xavi e Iniesta. E assim sendo, é fácil prever que este cenário se vai repetir até que algo mude a própria carreira do argentino. E o Ballon D´Or vai perder, progressivamente, o glamour e importância que chegou a ter.
No final de tudo, o mais triste destes prémios, não está nos aplausos aos vencedores mas na atitude de muitos adeptos que celebram mais uma derrota do que uma vitória. É um velho mal do ser humano, do adepto que prefere ver o rival perder a ver os seus ganhar. A internet voltou a encher-se de imagens de um estóico Cristiano Ronaldo, que esteve correctíssimo em toda a gala (ao contrário do que passou noutros casos). É caso para pensar que se o prémio já é um concurso de popularidade neste modelo, se fosse aberto ao público podia tornar-se num verdadeiro MTV Awards em versão Star Wars. Já há um Jedi branco e um Darth Vader negro. E em todas as grandes rivalidades - e houve-as mais intensas, provocativas e brutais do que esta - uma vez as pessoas esquecem-se que quando dois chegam a um determinado nível, acabam por se alimentar mutuamente. Quando se vive só, como um eucalipto, a tendência natural é para o empequenicmento. Messi é imenso porque sabe que joga contra outro jogador tremendo da mesma forma que Senna e Prost superaram limites para superar-se um ao outro, que Borg e McEnroe treinavam com mais afinco para se baterem um ao outro e Johnson e Bird sabiam respeitar-se mutuamente quando subiam ao campo. Ás vezes a memória e os arquivos ajudam a perceber as muitas realidades de um só dia.
PS: Superlativo o prémio a Vicente del Bosque, um excelente treinador, com um curriculum espantosa e uma figura das que fazem muita falta ao circo mediático que rodeia o jogo. A nomeação de Guardiola, no entanto, acaba por espelhar a mesma realidade que atrás explico. Num ano em que Prandelli, Klopp, Di Mateo ou Simeone superaram-se de uma maneira brutal, o politicamente correcto para os votantes do mundo é escolher o profeta da nova era. Guardiola pode até ser, como Messi, o melhor treinador em actividade (ainda que suspensa), mas em 2012 não foi de longe o seu ano.
Um clube corre o risco de perder o seu melhor jogador sem receber um só cêntimo em troca no mês de Julho. Recebe uma oferta de 6 milhões de euros para antecipar a saída em meio ano. O jogador não é opção do técnico e recebe mais dinheiro do que qualquer outro jogador fora do leque de futebolistas das duas gigantes multinacionais do pais. E no entanto, não o vende. É isso e muito mais o que lhe passa a Fernando Llorente.
Llorente queria sair em Junho. O clube não o deixou.
Tinha uma cláusula de rescisão de 40 milhões. E um ano mais de contrato. O clube ofereceu a renovação fazendo dele o jogador mais bem pago da liga. De todos os que não são do Barcelona ou Real Madrid, claro. Mais bem pago do que Falcao, mais bem pago do que Soldado, do que Isco, Joaquin ou Adrian. E Llorente disse que não. O clube tentou fazer o mesmo com Javi Martinez e este também lhes disse que não. Apareceu o Bayern Munchen com 40 milhões de euros na mão para pagar a cláusula de rescisão e mesmo assim, com o maior encaixe de sempre da história do futebol espanhol (salvo dos grandes), o Bilbao foi queixar-se à UEFA de que as coisas não tinham sido bem feitas. Llorente sabia o que o esperava.
Quando Bielsa soube que o avançado riojano não queria renovar, decidiu mandá-lo ao banco de suplentes.
Ele que tinha sido fundamental na época espantosa dos bascos, com duas finais perdidas em Bucareste e Madrid, mas com performances memoráveis, agora era suplente descartado. O clube voltou a contratar Aduriz - isto de só jogar com bascos obriga a vender e voltar a comprar bastante gente - e Llorente passou a primeira volta mais tempo no banco do que em campo. Em Agosto apresentou ao clube uma oferta de Juventus. Eram 10 milhões de euros em dinheiro vivo pagos imediatamente. O clube disse que não. A honra valia mais do que o dinheiro.
Se a postura do Bilbao, reforçado pelo dinheiro para pelo Bayern, podia fazer sentido em Agosto, agora não o faz.
O clube tentou voltar a convencer Llorente a renovar. Mas este recusou-se sempre. Está no seu direito. Os seus argumentos são mais do que lógicos. Conhece as limitações de um clube especial e quer provar outras realidades, ouvir o hino da Champions League, manter-se nas opções de Vicente del Bosque para o Mundial do Brasil. Mas o autoritarismo absoluto do Bilbao transformou-se numa gestão negativa para o próprio clube.
Llorente sairá, queira o clube ou não.
Pode sair a zero ou pode sair por seis milhões. Dinheiro que podia ser utilizado, entre outras coisas, para pagar o empréstimo para a reconstrução do novo estádio. Para perdoar as quotas aos muitos sócios no desemprego, um mal que afecta o Pais Basco como o resto de Espanha onde há 5 milhões de desempregados. Melhorar a ficha salarial de outros jogadores. Baixar o preço das bebidas no novo estádio. O que quiserem.
Ao rejeitar esses seis milhões agora, o clube quer mostrar que está por cima do bem e do mal, do dinheiro e das comodidades que ele traz. Continuarão a não utilizar Llorente, salvo em momentos pontuais (já só estão na liga, eliminados precocemente de Taça e Europe League), nos vinte e dois jogos que faltam disputar até Junho. A Juventus continuará sem um avançado de referência. E no final os adeptos serão confrontados com uma realidade curiosa. Uma directiva que saca peito de uma negociação que perdeu no primeiro dia, fazendo valer a sua lei autista. E um buraco nas contas que ficou por tapar por pura teimosia. É também assim o futebol quando gerido apenas no coração e não na cabeça. O Bilbao pode dar-se a este tipo de luxos. É um clube que não gasta muito no mercado porque tem um critério exclusivo de profissionais. É um clube que sempre teve as contas mais perto do verde, está no coração da zona mais rica de Espanha depois de Barcelona e Madrid. E está associado ao movimento independentista basco, o que lhe dota de muito prestigio na sociedade local.
Llorente tornou-se vitima dessa tripla realidade. Perdeu um ano da sua carreira desportiva por uma birra desportiva. O Athletic Bilbao perdeu entre 10 a 6 milhões de euros. No final de contas, o clube consegue o que quer. Provoca mais dano ao jogador mal amado, à antiga estrela de San Mamés do que a si mesmo. Uma birra infantil que custa dinheiro e momentos de prazer a um profissional que, enquanto lá esteve, deu tudo pela camisola. Quando dizem que aos jogadores lhes falta gratidão com os clubes muitas vezes é verdade. Mas nem sempre é um mal que percorre a auto-estrada do futebol na mesma direcção. Há clubes com muito passado mas com muito pouca memória!