São a melhor equipa do ano. Com recursos infimos jogam de uma forma inimitável, fruto do génio absoluto do treinador mais audaz e apaixonante do futebol mundial. O Athletic Bilbao de Marcelo Bielsa é mais do que uma grande equipa num imenso estado de forma. É a prova de que é possível fazer muito com pouco, que há espaço para a garra e o toque, a análise cientifico e o recurso ao coração nos momentos de aperto. Bielsa é um caso único no futebol mundial, alguém de quem é impossível não se apaixonar perdidamente quando falamos de futebol.
Bielsa dá um passo á esquerda, cinco á direita, coloca-se de cócoras, dá meia volta e recomeça a contar.
O seu feitio de colocar ordem em qualquer momento de caos mental faz dele quase uma caricatura de um génio. Mas a realidade do "Loco" de Rosário vai muito mais longe. Se a cidade argentina tem um dos melhores jogadores do Mundo também pode orgulhar-se de ter um treinador sem igual, capaz de fazer muito com tão pouco sem nunca renunciar aos seus principios.
Quem segue o Athletic Bilbao sabe que o nome do argentino era o último que se podia associar a San Mamés, estádio onde se forjou o espirito guerreiro do futebol espanhol, noites de dureza épica, garra histórica e sob o grito "Euskadi" se defendia a bandeira com a vida. O estádio onde Javier Clemente moldou o seu 4-4-2 mais britânico e agressivo de sempre. O estádio que desconfiava do génio de Julen Guerrero e preferia a entrega de Joseba Extebarria. A catedral que se rendeu ao futebol brusco, bronco e eficaz de Caparrós. Enfim, um clube onde a forma de vencer se assemelhava mais a uma batalha ideológica do que a um exprimir todo o sumo futebolistico dos seus melhores jogadores. Mas algo mudou. O nascimento de uma geração irrepetivel na história do clube desde os anos 50 - onde o Bilbao logrou bater o Real Madrid de Di Stefano na luta pelo titulo por duas vezes - trouxe uma novamentalidade e quando o clube foi a votos José Urrutia, o ex-jogador que anunciou Bielsa como seu treinador, venceu o presidente em exercio, Fernando Mácua, responsável pela reestruturação financeira e desportiva da identidade. A vitória de Urrutia foi a porta de aberta de Bielsa e o inicio do melhor ano da história do clube basco desde 1984.
Obcecado pelo futebol e pela vida, Bielsa é único. Para ele a vida só faz sentido com uma bola nos pés.
Na preparação para o duelo em Gelsenkirchen contra o Schalke 04 viu 48 videos do conjunto alemão lembrando o Mundial de 2002 na Coreia do Sul. Então o seleccionador argentino levou consigo mais de 600 videos de todas as seleções presentes no torneio. Os jogadores não corresponderam á intensa preparação do "Loco" e a albiceleste voltou cedo para casa mas a vitória na Copa América primeiro e a sua notável prestação como seleccionador chileno voltou a devolver o nome de Bielsa á ribalta. O chileno é, provavelmente, com Louis van Gaal, o mais genial e menos reconhecido técnico do futebol mundial dos últimos 25 anos.
Em Bilbao, um clube que só contrata jogadores bascos, Marcelo não teve direito aos fundos de José Mourinho, Josep Guardiola, Roberto Mancini ou Alex Ferguson. Mas o seu onze base é provavelmente o mais intenso, apaixonante e espectacular do ano. O curto banco, espelho do pouco leque de opções que um clube que leva o simbolo de Euskadi muito a sério, impediu-o de estar actualmente mais perto da Champions League na tabela classificativa da liga. Mas na Europe League o clube basco tem sido superlativo. Depois de vencer a fase de grupos e de eliminar o Lokomotiv Moscow, o festival de futebol com que Bielsa asfixiou ao veterano Ferguson em 180 dos melhores minutos do futebol europeu despertaram a Europa para algo que Espanha já se tinha habituado a ver semana sim, semana também. Os 2-4 impostos ao Schalke 04 foram outra prova tremenda da capacidade táctica do técnico. Depois de uma primeira parte em que o jogo pertenceu aos alemães, Bielsa reordenou as peças, soltou Muniain e Susaeta, e a equipa que muitos diziam estar fisicamente morta venceu por 2-4, sentenciando praticamente um lugar nas meias-finais onde pode defrontar o Sporting CP antes da viagem a Bucareste.
Bielsa é um treinador corajoso. Chegou uma semana depois do arranque da pré-época depois de ter visto todos os jogos do Bilbao dos últimos cinco anos na sua casa em Rosário. Trazia uma lista de dispensados onde se encontravam intocáveis de Caparrós como Aitor Ocio ou Fernando Amorebieta. Mesmo assim aceitou o segundo depois de o ter convencido na pré-temporada que reunia as condições minimas que Bielsa exige aos defesas: ser os primeiros a saber manejar a bola com classe.
O seu 3-4-3, mais ousado ainda do que habitualmente utiliza Guardiola em casa, reune alguns dos mais promissores jogadores do futebol espanhol, de Iker Muniain a Marcel Susaeta passando por Oscar de Marcos, Iturraspe, Ezkiza, San José, Aurtanexe, Iraizoz ou Iraola a que se juntam os internacionais Fernando Llorente e Javi Martinez. Em oito meses de temporada poucos clubes podem dizer, com a cabeça alta, que já jogaram ao mesmo nivel que os "leones" do Louco.
Amanhã o Bilbao joga no Camp Nou. A habitual hipocrisia do Barcelona e a permissividade da Liga espanhola não permitiram ao clube basco cumprir as 48 horas de descanso estipuladas. É provável que o discipulo, Guardiola, vença sem dificuldade um onze mais débil e, sobretudo, muito mais extenuado, de um dos seus mentores, Bielsa. Mas para uma equipa que já tem bilhete na próxima final da Copa del Rey, que está perto de vencer a sua primeira prova europeia e que não está a mais de 9 pontos da Champions League com um plantel onde 14 jogadores cubrem mais de 85% do tempo de jogo a dois meses do final da temporada é histórico. Mais do que isso, é futebolisticamente único e humanamente apaixonante. Algo que só Marcelo seria capaz de fazer.
Quando era jogador nunca foi um exemplo fora do campo e nunca deixou de ser um génio dentro dele. Negou-se a treinar com a anuência de Cruyff, chegou de helicópetro ás concentrações, disputou a soco o titulo de "bad boy" do futebol brasileiro com Edmundo e passou tantas horas no ginásio como em festas em favelas e hotéis de luxo de Copacabana. Com todo esse historial nas costas era dificil imaginar o que viria a passar mas Romário está decidido a salvar o futebol brasileiro.
Era dificil de acreditar mas Ricardo Teixeira encontrou finalmente a sua nemésis.
O enteado de João Havelange, talvez o pior dos directivos de quem falava Juca Kfouri quando dizia que Deus deu ao Brasil os melhores jogadores e piores dirigentes do Mundo, foi forçado a sair finalmente do seu trono sagrado na CBF. A pressão da investigação jornalista da equipa de Andrew Jennings e do próprio Kfouri, a inimistade com Dilma Roussef foram elementos fundamentais na sua saida. Mas quem deu o tiro de graça foi Romário.
O "Baixinho" foi o herói de um futebol brasileiro orfão de lideres depois da debacle emocional do Mundial de 90 quando a nostalgia do futebol arte da geração de Telé Santana já era um longo adeus. O país perdoou-lhe tudo. A sua indisciplina crónica, a sua falta de profissionalismo absoluta, os casos com as mulheres, as discussões com os colegas e os rivais, as suas amizades com alguns dos traficantes mais perigosos do Rio de Janeiro e, sobretudo, do seu ódio crónico á imagem sagrada de Pelé. Em troca Romário deu-lhes o melhor futebol que o país viu nas eras entre Zico e Ronaldo. Terminou com a seca de 24 anos sem vencer um Mundial de Futebol, nuclear na campanha dos Estados Unidos em campo e fora dele. Tornou-se no terceiro maior goleador da história do país, apenas atrás do "Rei" e de Friedenreich, por muito que muitos dos golos fossem abertamente questionados por todos. Passou pela Europa onde se doutorou com Cruyff e enimistou com Robson, Ranieri e Aragonés voltou ao Brasil como semi-deus. Depois fez-se politico. As más linguas, e no Brasil a má lingua é um desporto nacional como jogador futvoléi nas suas praias perfeitas, diziam que a sua carreira politica, como a de muitos nomes ligados ao futebol, era apenas uma forma de se proteger face aos problemas fiscais que há anos o enfrentavam a Brasilia. Provavelmente teriam razão mas na capital artificial do gigante sul-americano Romário transformou-se, como Pelé, no rosto mais claro de oposição á CBF. O histórico avançado do Santos não teve o poder politico e mediático para vencer a luta com Teixeira e num último acto de desprezo o ex-presidente da Confederação recusou-se a convidá-lo para a cerimónia de apresentação da fase de apuramento para o Mundial de 2014. Mas com Romário, o homem que viveu com ele um dos episódios mais tristes da história da CBF na ressaca do Mundial dos EUA, não encontrou forma de vencer.
As criticas do "Baixinho" começaram por centrar-se na organização do Mundial.
Romário utilizou o seu lugar em Brasilia e o seu poder nas redes sociais para atacar violentamente a organização do torneio. Um torneio onde todos, incluido o próprio Sepp Blatter (que aprovou em 2000 a rotatividade de continentes também a pedido expresso de Teixeira), começam a termais dúvidas do que certezas. As obras levam um atraso histórico, há ainda sérios problemas de financiação com estádios e infra-estruturas, aeroportos e estradas por construir e um pais com uma tremenda pujança financeira que começa a questionar-se, na pessoa da sua nova presidente, se gastar tanto dinheiro para enriquecer a FIFA - da qual Teixeira continua a ser membro honorário - é realmente um bom investimento.
Das criticas ao torneio - que a imprensa brasileira apoia entusiasticamente- o ex-dianteiro apontou baterias a Teixeira. Criticou a sua gestão de mais de duas décadas, a profunda desorganização do futebol nacional no Brasil, o mitico e polémico contrato com a empresa americana Nike e, sobretudo, o investimento paralelo que pode fazer valer a Teixeira e alguns dos seus principais colaboradores contratos milionários com a própria FIFA. O mano a mano durou meses e inicialmente Teixeira, habituado a ser desafiado por tudo e todos, se mostrou condescendente. Aceitou colaborar com o avançado na sua campanha a fazer dos que padecem de sindrome de Down (como uma das filhas de Romário), declarando um investimento de 32 milhões de reais e uma série de bilhetes gratuitos para as organizações patrocinadas pelo deputado. Mas não chegou. No final o cerco mediático organizado por Romário deu ainda mais destaque ás revelações da Folha de São Paulo sobre os seus negócios paralelos. A má performance do Brasil em campo, as queixas de corrupção secundadas pela procuradoria geral e a perda de apoio na FIFA obrigou Teixeira a ceder o seu posto ao seu braço-direito, José Maria Marin. O novo dirigente não só garantiu que a filha do seu antecessor, directiva na CBF, iria manter-se no cargo onde foi colocada pelo pai, como garantiria uma reforma milionário para o ex-presidente até 2030.
Os que pensavam que a luta de Romário era apenas com Teixeira ficaram surpreendidos quando o homen do PSB-RJ anunciou que continuaria o seu combate até limpar a CBF de todo o rastro de "teixeirismo", declarando publicamente o apoio a Ronaldo Nazário como eventual candidato presidencial para a federação brasileira de futebol, no próximo ano.
Com a reeleição praticamente garantida, Romário emulou Pelé em campo e fora dele. Nos anos 90 o histórico jogador brasileiro desafiou os poderes da CBF com a lei que levou o seu nome e que tinha como objectivo reformular totalmente o mais caótico campeonato do Mundo. O poder do lobby da CBF no Senado destroçou uma lei prometedora. Passados quase 15 anos outro homem de 1000 golos prepara-se para continuar a luta para salvar o seu futebol. Entre festas, jogos de futvolei em Copacabana e sessões do Senado, o "Baixinho" revelou-se ser maior que a sua própria lenda. Os cartolas do futebol brasileiro que se cuidem...
O futebol português continua a trepar postos nos rankings UEFA e FIFA, a ter jogadores e treinadores coroados entre os melhores do Mundo. E, no entanto, quando a bola começa a rolar no tapete verde do rectângulo mais ocidental do velho Continente o futebol peca, demasiadas vezes, pela sua triste ausência. Numa das épocas mais pobres e desesperantes das últimas décadas repete-se um cenário demasiado frequente, demasiado desalentador. Esta Liga, assim parece, ninguém a quer ganhar.
Hoje o Sporting de Braga pode colocar-se como líder isolado da Liga Sagres.
A seis jogos do final da época, 18 pontos e um duelo de 90 minutos contra a Académica separam os bracarenses do topo do pelotão. Provavelmente os arsenalistas falharão. Não porque não mereça, não porque não sejam talvez a equipa que mais méritos recolhe para sagrar-se campeã nacional 2011-12. Simplesmente porque, ao longo deste ano, sempre que uma equipa parece ter na mão ganhar a liga, tropeça.
Essa vertigem á tabela classificativa é aflictiva mas não é nova. Em 2004-05 FC Porto, Sporting e Benfica foram tropeçando entre si até que a sagacidade de Giovani Trapatonni valeu mais que o descalabro emocional de José Peseiro e a natural incompetência de José Couceiro para quebrar com uma fome de dez anos do Benfica. Dois anos depois o cenário voltou a ser similar mas desta vez foi Jesualdo Ferreira a superar a Fernando Santos e Paulo Bento nesse desesperante sprint final. Emoção, seguramente. Qualidade, muito pouca.
O nível exibicional médio das 16 equipas da Liga Sagres, diga o que disser o ranking UEFA que apenas contabiliza o que fazem os quatro europeus habituais nos palcos internacionais, é pobre. Os portugueses exportam os melhores jogadores e técnicos que têm e em troca ficam com jogadores de terceira e quarta linha internacionais, fazem de jogadores de nível médio alto estrelas que nunca o serão e adormecem o mais tenaz dos espectadores com duelos onde os golos, a emoção e o futebol ofensivo primam, habitualmente, pela sua ausência. Os problemas financeiros que destruíram a classe média do futebol nacional e abriram ainda mais o fosso entre os grandes e os pequenos não ajuda seguramente a reequilibrar o cenário. E no entanto nunca como este ano os pequenos roubaram tantos pontos aos chamados grandes onde dá pena incluir um Sporting que, mais uma vez, continua a ser o terceiro clube nacional apenas em adeptos e nada mais. Com uma divida descomunal, um plantel desorganizado, um staff técnico que vai e vem ao sabor do vento e uma directiva incapaz de se fazer respeitar, os leões são o caso mais freudiano que o futebol português já gerou e merecem, como tal, diagnóstico á parte.
Nivelada por baixo como nunca a Liga Sagres pode cair nos braços de qualquer um do trio da frente e seguramente que a sensação de mérito e orgulho seja bem diferente a outras conquistas (no caso de Porto e Benfica) do passado. Os campeões nacionais cometeram o logro de destroçar em poucos meses um conjunto que muitos analistas colocavam na segunda linha do futebol europeu, apenas por detrás de United, Real Madrid e Barcelona. Á parte das péssimas performances europeias, o FC Porto de Vitor Pereira não é só o tigre mais domesticado e inofensivo que já passou pelo Dragão, ás vezes quando joga fora transforma-se mesmo num gatinho recém-nascido, presa fácil até de roedores e outros répteis que povoam a parte baixa da tabela. O empate em Paços de Ferreira impediu os dragões de dar um murro na mesa, algo que o clube do Dragão foi incapaz de fazer durante todo o ano. Nem depois de vencer na Luz, nem depois do enésimo tropeção pré-jogo europeu do Benfica em Olhão e, imagina-se, nem nos jogos que faltam. Apesar de liderar se há equipa nesta disputa que mais carece de espírito de liderança esse é, sem dúvida, este FC Porto.
E no entanto, no meio de tudo isto, e com 24 jogos compridos - salvo o duelo de Braga - o campeão é líder. Situação suficiente para embranquecer os cabelos á maioria dos adeptos encarnados, á moda de Jorge Jesus, provavelmente o maior perdedor do ano. Jesus até pode conseguir o seu segundo titulo nacional, sem dúvida, mas depois de o ter á mão de semear, desperdiçar uma vantagem incrível e correr o risco de dormir hoje no terceiro posto é suficiente para que os críticos adeptos do técnico tenham mais argumentos relativos á sua profunda desorganização táctica e incapacidade de gerir os esforços físicos de um plantel onde muitos jogam muito e alguns jogam muito pouco. Com talvez o plantel mais equilibrado dos três em disputa, Jesus tentou equilibrar o meio-campo com a inclusão de Witsel e Bruno César no apoio a Cardozo mas perdeu o efeito surpresa e, sobretudo, a eficácia de outras épocas. Em campo esta é a sua versão mais débil, a mais mentalmente instável e, portanto, a menos apta para sofrer até ao último minuto da liga como os sucessivos empates e derrotas conseguidos este ano têm demonstrado.
Se na Luz ninguém parece estar determinado a ganhar a Liga, pelo menos há uma óptima campanha europeia para justificar a falta de oxigénio e sagacidade mental. Em Braga a Europa este ano não foi empolgante como na época passada mas teve o mérito de permitir a Leonardo Jardim manter a cabeça e os pés bem assentes no chão. O Braga fez um campeonato de trás para a frente, durante algumas jornadas andou atrás do Sporting e depois arrancou num sprint silencioso que seria ineficaz se FC Porto e Benfica fossem tão autoritários como o dinheiro gasto e a qualidade dos dois planteis justificava. Com os tropeções pontuais e as crises mentais dos dois grandes o Braga encontrou preciosos aliados para desafiar a história. Pode acabar campeão ou juiz do campeonato, mas como o Boavista do virar de século, já não pode passar desapercebido. São muitos anos a manter a bitola alta e tarde ou cedo António Salvador pode suspeitar que o percurso similar ao dos axadrezados pode ser emulado. Até porque o nivel dos chamados grandes continua, ano após ano, a baixar assustadoramente.
Em Maio o titulo será atribuido ao melhor dos piores e disso poucos duvidam. A distância do primeiro ao quinto (FC Porto a Maritimo) é igual á do sexto (Vitória) com o 14º (Beira-Mar) e isso explica também o imenso buraco pontual, moral, financeiro e desportivo que ano após ano afunda o nivel qualitativo do futebol português. Com uma diferença pontual tão clara surpreende que situações como a de este fim-de-semana se repitam vezes sem fim esta temporada. FC Porto e Benfica venceram apenas 17 vezes numa liga onde só quatro equipas têm um goal-average positivo. Vitor Pereira e Jorge Jesus transformaram-se mais em dores de cabeça do que bálsamos para os seus adeptos e Leonardo Jardim acredita na lei do silencio para evitar construir o seu próprio cadafalso. No final deste sprint onde haverá ainda demasiados tropeções o freudiano Sporting pode ter a chave para medir a resistência futebolistica e moral dos candidatos que teimam em não querer ganhar este campeonato.
De Messi o mais simples que se pode dizer é que é um jogador consensual. Poucos na história lograram ter tanta gente rendida aos seus pés ao mesmo tempo. O recorde logrado na passada noite é apenas um detalhe na sua longa e espantosa biografia como futebolista. Aos 24 anos Messi bateu todos os recordes de precocidade e a esmagadora maioria dos registos de absoluta maturidade. A forma como o mundo do futebol se rende facilmente aos seus pés explica também o seu impacto social e a dura herança que deixará a um Barcelona habituado a estrelas cadentes.
César tinha o recorde e a César o que é de César.
Mas nem nessa maravilhosa equipa das "Cinc Copes", talvez uma das maiores da história do jogo, César era a estrela da companhia, o icone que todos pretendiam emular. Os seus números (232 golos) eram de um goleador nato, de um Dixie Dean á espanhola, mas nem Dean nem César nem Pichichi simbolizam uma era. Messi sim.
O Barcelona está habituado a ter nas suas filas a jogadores de elite. Dois dos quatro ases de poker da história do jogo (Cruyff e Maradona), os dois mais espantosos jogadores das últimas duas décadas (Ronaldo e Ronaldinho) e um leque de glórias que começam nessa equipa de César com o hungaro Kubala e que terminam no jovem argentino. Pelo meio Suarez, Liniker, Laudrup, Stoichkov, Romário, Guardiola, Figo, Rivaldo, Etoo, Xavi ou Iniesta ajudam a entender o nível de classe técnica e talento a que o Camp Nou se habituou nas últimas cinco décadas. E no entanto nenhum desses jogadores conseguiu alguma vez recolher a unanimidade de Lionel Messi. Esse é, sobretudo, o seu grande triunfo.
Pelé foi talvez o único futebolista da história incontestado. Pelo seu aparecimento precoce e espantoso e pela forma como construiu do nada uma equipa que se tornou símbolo de magia e qualidade durante todos os anos 60 até á sua despedida dos grandes palcos com o mais memorável Mundial de que há memória. Por essa época passaram Garrincha, Eusébio, Rivera, Charlton, Best, Fachetti, um precoce Beckenbauer, um veterano Di Stefano e nunca ninguém se lembrou de questionar a supremacia de Edson Arantes de Nascimento. Cinquenta anos depois sucede um fenómeno similar. Excepto os mais acérrimos defensores de Cristiano Ronaldo, a maioria dos adeptos reconhece que o estado de graça de Messi nos últimos quatro ou três anos tem sido espantoso. Não é a primeira vez que um jogador se mantém no mais alto durante tanto tempo, Di Stefano, Cruyff, Beckenbauer e Platini que o digam. Mas quem se lembra disso? Na era moderna, na era global, o mundo habituado a estrelas cadentes surpreende-se com algo que dura mais do que um nano-segundo. Muitos ainda olham de lado para o génio de Ronaldo, Zidane ou Ronaldinho porque, pelo paradigma contemporâneo, sempre parece uma memória efémera. Messi repete-se a si mesmo semana sim semana também, marca golos com a facilidade de um matador, gera jogo com a perspicácia de um playmaker e quando o Barcelona mais débil da era Guardiola se parece afundar, o argentino sai ao seu resgate. Este ano, mais do que nenhum outro, o Barça deve-se a Messi mais do que Messi se deve á espantosa orquestra montada á sua volta.
De Messi já se disse muito e pouco ficará sempre por dizer.
Os titulos somam-se no final da carreira e se as suas três Champions (a primeira como elemento secundário, é preciso relembrar) empalidecem ainda com as cinco de Di Stefano a verdade é que o recorde de Cruyff, Beckenbauer e van Basten já foi igualado. Os prémios individuais, essencialmente o prestigioso Ballon D´Or, colocaram-no lado a lado com Platini e Cruyff e a partir de agora será fácil que a história pende para o seu lado. E no entanto Messi, esse símbolo de uma cultura futebolística que se transformou de contra-cultura a espelho dominante, tem aquilo que nenhum outro grande clássico do passado teve. Uma Némesis á sua verdadeira altura.
O futebol está habituado a reinados curtos mas de uma só personalidade. Durante esse breve ocaso uma estrela brilha de uma forma incontestável enquanto lá em baixo, no firmamento, outras tentam imitar sem sucesso os mais grandes. Mas os números espantosos de Messi encontram-se todas as semanas com os números não igualmente depreciáveis de Cristiano Ronaldo. O português perde em relação ao argentino sobretudo em três apartados que, no final, vão ser suficientes para criar uma imagem de eterno segundo que muitas vezes é tremendamente injusta.
Ronaldo, ao contrário de Messi, vai no seu terceiro clube em sete anos. O recorde de César é possível para quem cresceu e fez-se génio na melhor versão histórica de um clube, onde uma orquestra de génios (primeiro Ronaldinho, Deco e Etoo, depois Xavi, Iniesta, Henry, Alves, Pedro, Fabregas e Villa) permitiu o seu aperfeiçoamento. Ronaldo poderia, se tivesse tido a perspicácia mental, repetir esse feito de Red Devil. Mas a ambição pode mais que a razão e em Madrid o seu nome será sempre comparado com Di Stefano e isso são palavras maiores para qualquer um. E no entanto o português hoje pode fazer o seu 100 golo em Liga com o Real Madrid, em apenas duas épocas e meia. Uma média de um golo por jogo é o seu registo actual no clube e isso sem ter atrás de si estrelas tão brilhantes e (sobretudo) regulares como as do seu rival. Se a Cristiano lhe perde essa comparativa entre cantera vs dinheiro e sentido de pertença vs arrivismo, é sobretudo o caracter do português que lhe faz perder a luta mediática onde se decide a história. Messi vive também dos seus silencios, geridos habilmente pelo clube, e longe de ser um simbolo mediático como foi Pelé o Di Stefano, um profeta como Cruyff, um rebelde como Maradona é, sobretudo, um triunfo do anonimato. Naturalmente que os seus rendimentos publicitários falam de alguém preparado a sacar até ao último euro do seu mediatismo mas a incapacidade de brilhar fora de campo com a palavra como o faz dentro com o pé transforma-o num ser que não ameaça ninguém e que, por efeito oposto, se torna facilmente atractivo. A sua unanimidade ganha-se, sobretudo, com a capacidade que tem o argentino de não gerar anticorpos. Quando cospe em rivais, dispara a bola contra adeptos, protesta sobre a independência arbitral ou é assobiado na sua pátria o enfoque é ligeiro e rapidamente substituído por vídeos das suas eternas e perfeitas diabruras. A máquina propagandística que o Barcelona tão bem sabe levar e que capturou a atenção de mais de meio mundo transformou-se no melhor exercido de relações públicas que um atleta pode querer. O perfil de Ronaldo é mais conflictuoso porque simboliza o novo-riquismo do jogo que os mais românticos desprezam. Para esses, os logros de uma máquina física, como muitos o apelidam, nunca poderão ter o mesmo valor que os de um jogador feito na rua contra todas as adversidades do corpo humano.
A história do desporto fez-se sempre de grandes duelos. César é um nome que evoca um passado brilhante mas cujo o registo goleador pertence a outra era, outra simbologia. Messi, por outro lado, ambiciona ir mais além, talvez os 1000 golos de Pelé e sobretudo causar nos adeptos as mesmas sensações que Maradona, Di Stefano ou Cruyff lograram. Mas para ser o herói deste filme tanto o jogador como o clube que o transformou sabem que qualquer história precisa de um vilão. Ali e Frazier apenas combateram um par de vezes. Borg e McEnroe não disputaram tantas finais como a memória nos faz lembrar e mesmo Prost e Senna foram rivais apenas por um triénio em que dispuseram de armas similares. No desporto-rei esse duelo nunca existiu realmente porque nunca dois jogadores estiveram simultaneamente ao máximo das suas capacidades. O resultado final parece importar pouco porque o Mundo já decidiu quem ganhou á partida mas a contenda vai prolongar-se e continuar a entusiasmar os mais apaixonados adeptos. O génio superlativo de Lionel Messi existe por si só mas ganha ainda mais valor quando se relembra, semana atrás semana, contra quem se mede.
O futebol espanhol vive a sua era mais dourada e a rapidez com que se descobrem novas pérolas no país vizinho há muito que se transformou num case-study profissional. Mas é em Lisboa que vive e deslumbra talvez o avançado espanhol com maior projecção futura. Rodrigo rompe as regras e desafia os cânones, une os dois lados do “charco” e, sobretudo, eleva o futebol à condição de arte imaculada.
Nelson Rodrigues, um dos mais certeiros filósofos futebolisticos brasileiros, explicava a facilidade que os seus conterrâneos tinham em controlar a bola com o fascinio brasileiro pela dança. Essa paixão pela herança negra da capoeira, pelo ritmo trepidante do samba metamorfoseou-se num futebolista incapaz de estar quieto, hábil de pés, rápido nos gestos e sublime no movimento. Essa escola centenário produz com espantosa regularidade novos talentos mas o traço distinctivo continua a ser o mesmo.
O que faz de Rodrigo um caso especial é que à sua herança genética brasileira, demasiado evidente na forma como encara o rival e pisa a bola, está também a sua formação europeia, a sua cultura colectiva à espanhola que aprendeu em Vigo e Madrid e que o transformam num jogador colectivo com rasgos individuais espantosos. Uma mistura sempre dificil de conseguir, especialmente nesta era de re-fordização do futebolista, e que o transforma ainda mais num caso raro. O papel de Rodrigo no terreno de jogo não se prende a nenhum dispositivo táctico. A sua facilidade de dar e receber permite-lhe mover-se com total liberdade pelo tapete verde sem sentir-se preso a nenhum esquema. Rápido, intuitivo e com um sentido posicional tremendo, a forma como encara a baliza é só uma consequência da sua maturidade como futebolista e não apenas a causa do seu sucesso. Os seus golos, tantas vezes espantosos pela sua audácia, transpiram o mesmo controlo interior com que trata cada lance, cada passe, cada corrida nunca dada por perdida. Nele vemos reflectido o espelho perdido da glória passada e a imagem do protótipo romântico do futuro.
O crescimento futebolistico de Rodrigo está associado ao do jovem Thiago Alcantara. Ambos aprenderam a caminhar e a dar os primeiros pontapés na bola juntos e durante anos foram parceiros inseparáveis nos niveis de formação do Celta de Vigo. Quando chegou a hora de decidir, Thiago preferiu migrar a La Masia. Rodrigo optou pela Fabrica de Valdebebas.
Desde então percebeu-se que a sua relação era a metáfora perfeita da forma como as canteras dos dois maiores clubes espanhóis são espelho da importância que estes dão à sua formação. Thiago foi mimado e educado para entrar na primeira equipa desde que começou a dar nas vistas na equipa juvenil. Rodrigo brilhou talvez mais ainda nas suas etapas de formação em Madrid. Mas nunca teve minutos nos séniores e foi despachado com surpreendente facilidade. O Benfica aproveitou o brinde (o mesmo sucedeu com Javi Garcia) e conseguiu o passe do dianteiro por uma infima parte do seu valor actual. Mas a adaptação não foi fácil e depois de um empréstimo pouco fructifero ao Bolton Wanderers muitos pareciam tentados a vender o jovem talento. Jorge Jesus acabou por inclui-lo no plantel e depois de um brilhante Mundial sub-20, o hispano-brasileiro deu-lhe razão. Apesar da explosão de Nolito, da classe de Gaitan e da preponderância de Aimar, o conjunto encarnado não tem um jogador nas suas filas com a mesma qualidade individual e potencial de crescimento como Rodrigo.
O seu papel na boa temporada do clube da Luz é inequivoco e a sua facilidade de associação com a linha avançada do meio-campo encarnado espelha bem a sua cuidada e esmerada formação na escola espanhola que tão bons jovens jogadores tem apresentado ao Mundo.
Parece evidente que o nivel de Rodrigo significa que dificilmente o Benfica o conseguirá segurar para o próximo ano. Em Espanha o seu nome começa a ser reclamado pela imprensa para La Roja e vários clubes de primeiro nivel europeu sonham com os seus serviços. A passagem por Portugal pode revelar-se curta, mas fundamental na sua afirmação profissional. O que parece evidente é que o futuro de Rodrigo, como o do seu amigo Thiago, não parece ter limites.
Em 1996 a Premier League começava a despontar, a afastar-se da penumbra dos días de luto da First Division. Talvez nem os mais optimistas pensavam então no caracter singular e icónico que a prova teria uma década depois. Esse foi o último ano em que os ingleses não lograram colocar nenhuma equipa nos Quartos de Final da Champions League. O milagre de Ivanovic pode ter evitado que, 16 anos depois, o cenário se volte a repetir. Mas das sete equipas que começaram a temporada europeia só resta uma. E esta realidade não é nova. O modelo da competição e a saúde financeira e desportiva dos clubes da Velha Albion volta a estar no centro das atenções. A debacle anunciada transformou-se em realidade, os velhos fantasmas voltam a pairar pela Mancha...
O Blackburn Rovers de Dalglish, Sutton, Shearer e dos milhões de Jack Warner logrou o milagre em 1995.
A vitória na Premier League deveu-se mais ao hara-kiri desportivo do Manchester United, orfão do genial Eric Cantona a pagar as penas do seu mitico golpe de kung-fu, do que propriamente ao talento dos Rovers. O triunfo foi também o ocaso de uma era. Foi a última vez que um clube fora do binómio Manchester-Londres venceu um titulo. Foi também, de certa forma, o último suspiro da First Division onde equipas como Everton, Aston Villa, Nottingham Forrest e Derby County podiam bater o pé aos grandes. Na temporada seguinte os homens de Ewood Park lograram o ridiculo na Champions League, um quarto posto na fase de grupos com 4 pontos em seis jogos, num grupo onde estavam Spartak Moscow, Legia Warsow e Rosenborg. Foi o ocaso da velha Inglaterra, o final de um ciclo negativo que a partir do ano seguinte se iria começar a converter numa tendência positiva com as meias-finais logradas pelo Manchester United, equipa que venceria duas vezes a prova nos dez anos seguintes. Os Red Devils, mais do que qualquer equipa, simbolizaram a supremacia moral e real da Premier League sobre a decadente Serie A e uma La Liga demasiado pendente do duelo Barça-Madrid para crescer no escalão médio, onde a maioria dos clubes só conseguiam sobreviver com ajudas públicas. Dezasseis anos depois dessa data que muitos já tinham esquecido, o futebol inglês volta a ficar demasiado longe do máximo palco europeu. Das sete equipas que arrancaram a temporada europeia (Arsenal, Tottenham, Chelsea, Manchester United, Birmingham, Stoke e Manchester City), só os Blues lograram apurar-se para os Quartos de Final da sua respectiva competição (depois de despedir o treinador e obrar um verdadeiro milagre em Stanford Bridge). E o pior de tudo foi a imagem deixada com eliminações precoces primeiro (United, City, Tottenham) e com sérios correctivos no resultado e no jogo (Arsenal-Milan, United-Bilbao, City-Sporting). O mais curioso é que ninguém parece demasiado surpreendido.
Depois da final inglesa entre Manchester United e Chelsea, a tendência de supremacia da Premier começou a inverter-se na Champions League. Nesse ano tinham estado três equipas nas meias-finais. Em 2007 tinham sido três, e em 2006, 2005 e 2004 uma. Na temporada seguinte o Manchester United repetiu o lugar na final e voltaram a encontrar-se três equipas inglesas na fase prévia à final mas o triunfo do Barcelona anunciava uma nova era. Em 2010, pela primeira vez em sete temporadas, nenhum clube inglês esteve nas meias-finais da prova. Em 2011 foram apenas os Red Devils a chegar tão longe. Já ninguém falava de supremacia britânica.
Não eram só os grandes jogadores (Cristiano Ronaldo, Thierry Henry, Arjen Robben) que partiam. Não era só o descontrolo financeiro absoluto da maioria dos clubes, a falta de treinadores ingleses de nível, a clara baixa de qualidade nos niveis de excelência da formação local ou a sobrelotada presença de jogadores estrangeiros de segundo e terceiro nivel, bem diferente do que se viveu nos anos 90. Era algo mais do que isso, uma sensação que se podia palpar.
A eliminação dos dois gigantes ingleses na fase de grupos surpreendeu, mas confirmou essa tendência gritante. O Manchester City, apesar de todos os milhões invertidos, deixou claramente evidente a sua falta de estofo europeu ao cair diante de Bayern Munchen e Napoles. O United repetiu a péssima performance de 2006 e ficou de fora num grupo acessível mas que acabou por ser desprezado por Alex Ferguson até que já não havia volta a dar. O facto dos dois clube serem, ao mesmo, tempo os que dominam claramente a competição nacional explica o desfaze real que começa a existir entre a Premier de há meia dúzia de anos e a Premier League actual.
Na Europe League – competição onde nenhuma das equipas apostou forte e que nenhum clube inglês vence há mais de uma década – a imagem foi ainda mais penosa. O Manchester United sofreu demasiado contra o Ajax e foi futebolisticamente ridicularizado pelo jogo do Athletic Bilbao. Isto utilizando um 11 com a maioria dos seus jogadores titulares. O City eliminou o FC Porto, sofrendo no Dragão e rematando a eliminatória apenas nos dez minutos finais da segunda mão, mas foi incapaz de dobrar a raça e determinação do Sporting. Também neste duplo confronto Mancini usou cartas que valem milhões. O nivel máximo da Premier League é agora questionado por equipas que não lutam pelo titulo em Espanha, Portugal e Holanda e projectos desportivos constantemente questionados como o do AC Milan. Enquanto Espanha continua a demonstrar a sua força com as campanhas de Barcelona e Real Madrid na Champions e o trio Valencia-Atletico Madrid-Athletic Bilbao na Europe League, o fosso entre os conjuntos ingleses e os continentais começa a aumentar.
Apesar do sucesso económico da Premier League, a maioria dos clubes parece incapaz de competir com o poderio financeiro dos grandes clubes espanhóis. Cada vez menos os principais conjuntos da Premier conseguem atrair jogadores de top que joguem no continente (os casos de Hazard, Gotze, Sneijder, Forlan, Falcao, Neuer, Ribery são evidentes) e acabam por ver os orçamentos de transferências inflacionados pelas movimentações entre jogadores da própria liga ou compras realizadas directamente a ligas menores como a portuguesa, holandesa ou francesa. A qualidade dos planteis dos grandes clubes tem vindo a decrescer, os sucessivos empréstimos obtidos junto das entidades bancárias com juros cada vez maiores cercam as contas da maioria das instituições e os elevados preços das entradas começam a aumentar o fosso entre clubes e adeptos a números pré-Relatório Taylor. Uma encruzilhada que não deixa de ser acompanhada pela decadência de uma geração que foi vista por muitos como a “galinha dos ovos de ouro” do futebol inglês e a incapacidade de surgirem nomes com força suficiente para substituí-los. Ferdinand, Gerrard, Carragher, Terry, Lampard, Cole continuam a ser as figuras de referências locais já bem passados a casa dos 30.
Neste contexto parece evidente que a qualidade média do jogo da Premier League se transforma progressivamente numa tendência negativa a médio prazo. O imenso vazio entre os milhões de Manchester e os restantes clubes vai aumentando, a liga parte-se cada vez mais em três lotes (um segundo com Chelsea, Arsenal, Tottenham, Liverpool e um terceiro onde se incluem todos os outros) e nos palcos europeus essa crescente debilidade faz-se notar. Se é provável que nos próximos anos alguma equipa inglesa consiga colocar-se de novo numa final europeia, também é cada vez mais evidente que o seu papel hegemónico, como sucedeu com a Itália dos anos 90 e a Espanha do virar de século desapareceu por completo.
Se há uma nação com uma relação quase freudiana com o golo é a francesa. Num país que sempre olhou com desconfiança para o “jogo dos ingleses”, a devoção pela bola muitas vezes deixa para um infinito segundo plano a importância do golo. But foi sempre uma palavra capaz de gerar a desconfiança de muitos e provocar a glória de poucos. A caminho de uma nova década os dianteiros gauleses continuam a ser a infantaria do exército, longe do estatuto dos marechais a cavalo.
O “Hexágono” é, sem dúvida, um país de contrastes. Lille e Montepelier são dois paises debaixo da mesma bandeira. Just Fontaine e Guivarch, dois avançados que passaram por um Mundial com sensações opostas. No final a memória colectiva ficou com o nome do dianteiro de origem magrebina na cabeça. Mas o campeão do Mundo foi Guivarch. Sem marcar um só “but”.
De Fontaine a Guivarch a história do futebol gaulês parece caminhar paralela, mais do que em companhia, com o complexo universo do golo. Em França sempre foi complexo encontrar jogadores que tenham especial relação com a baliza contrária e na esmagadora maioria das vezes quanto mais proliferos eram mais desprezo coleccionavam do público critico. De certa forma o adepto francês sempre se rendeu mais facilmente ao trabalho de um médio, fosse de criação (Platini, Cantona, Zidane, Giresse...) como de destrução (Fernandez, Tigana, Deschamps, Vieira), do que ao do goleador. Batteaux, o mentor do Reims dos anos 50, queixava-se de que os adeptos criticavam em demasia o espirito livre de Kopa e a passividade goleadora de Fontaine. E tinha razão, mas a tendência vinha de antes e prosseguiria nas décadas seguintes. Durante os anos 70 nunca esse afastamento se tornou tão evidente. À medida que o futebol gaulês entrava numa profunda depressão de resultados (12 anos sem marcar presença num Mundial ou Europeu), o público foi-se abraçando a fenómenos mais nacionais como o ciclismo e o ténis. A desconfiança das elites intelectuais, tanto de direita com de esquerda, sempre levantou multiplas suspeitas por um jogo demasiado saxónico. Ate ao periodo entre-guerras o jogo ainda era desconhecido por uma grande parte da população e esse fascinio pelo “But” demorou a entrar na psique gaulesa.
Just Fontaine tinha sido o expoente máximo da paixão pelo golo mas a sua origem emigrante (magrebino como Ben Barek) permitia-lhe afastar-se desta relação complexa com o golo. Durante largas décadas, e à medida que o futebol francês ia progressando rapidamente (como o Saint-Etienne e a selecção da década de 80 evidenciava) continuava a faltar ao país uma estirpe de goleadores puros e determinantes. A liga gaulesa, nunca goleadora, nunca prolifera em Botas de Ouro, sobrevivia com golos emprestados de fora, sobretudo o esquadrão argentino (Onnis e Bianchi) que nos anos 70 e 80 invadiu o país. A mágica selecção de Platini bateu o recorde de golos marcados num Europeu, mas foi o “petit Napoleon”, desde a posição de trequartista, quem marcou a esmagadora maioria. Nem Didier Six nem Dominique Rocheteau entusiasmavam o mais céptico.
A chegada de Jean-Pierre Papin, dois anos depois, pareceu anunciar uma nova tendência. Mas a popularidade de JPP sempre foi mais uma questão de atitude dentro e fora do campo do que uma questão de golos. O seu Ballon D´Or em 1991 uma questão de ego nacional mais do que um reencontro com a paixão pelo golo. E os anos 90 não foram diferentes dos 80. Cantona, Ginola, Djorkaeef e Zidane nunca foram goleadores natos e Loko, Pedros e Guivarch apresentavam soluções tão pouco convincentes que muitos se perguntam como não se lembrou Jacquet de antecipar em dez anos a evolução táctica de Prandelli e optar por um 4-6-0 em lugar do 4-3-2-1. Depois da recusa de Cantona em voltar a vestir a camisola dos Bleus, os gauleses quebraram o velho axioma que dizia que não se pode ganhar um Mundial sem um guarda-redes e um goleador de primeiro nível.
Se Barthez não era propriamente um guarda-redes de nivel, que dizer de Stephen Guivarch. O avançado do Auxerre não só não marcou em nenhum dos jogos como deixou a pálida, mas certeira imagem do que realmente é o ponta-de-lança made in France. Uma imagem que não mudou muito até hoje. Nem Anelka, nem Trezeguet, nem Benzema se revelaram pontas-de-lança goleadores, antes jogadores móveis, colectivos e dificeis de posicionar. Henry, provavelmente o mais subvalorizado jogador francês, com Wenger tornou-se no protótipo do futebolista total, dez anos antes de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, e foge também destas contas. E depois o fantasma passou a pairar sobre cada nova promessa, fosse o possante Gomis, o promissor Gignac e agora a dupla Gameiro-Giroud. Nenhum deles apresenta nomes tão entusiasmantes que permitam pensar que Fontaine tem, realmente, um sucessor. Nenhum deles dá a sensação de ser o jogador com força moral e emocional suficiente para mudar esta estranha relação do francês, seja adepto seja jogador, com o fantasma do golo.
A caminho da Ucrânia o trabalho de Laurent Blanc tem-se concentrado, sobretudo, em explorar novas vertentes de jogo, de organização defensiva e controlo da bola. O golo, como sempre, ficou relegado para um segundo (perigoso) plano. Em 2006 os gauleses marcaram nove golos, seis a partir da fase de grupos. Dois anos depois, no Europeu de 2008 marcaram um. Em 2010, na África do Sul, também. A escassez é evidente e já não há médios capazes de esconder a fraca prestação dos dianteiros. Benzema será o dianteiro titular mas ele, como se viu em Madrid, gosta de deambular e associar-se e a companhia (Nasri, Ribery, Menez) não é propriamente especialista na arte do golo. Giroud e Gameiro podem ter a sua oportunidade. Serão mais necessários do que nunca. Nem que seja para dar outra vida à soporifero explicação do but!
No arranque do século XX Glasgow era o centro nevrálgico do universo futebolistico. Hoje, uma das cidades mais decadentes do futebol internacional. A ameaça de desaparecimento paira sobre o Glasgow Rangers, mas os sinais de depressão económica e desportiva vêm de há muito. O futuro é cada vez mais cinzento e parece cada vez mais evidente que os esforços dos grandes da cidade em forçar a sua entrada na Premier League selaram, de certa forma, o seu negro destino.
Os ingleses organizaram o futebol e os escoceses dedicaram-se a ensiná-lo.
A importância de Glasgow no virar de século era tal que no mesmo espaço urbano coexistiam os três maiores estádios do Mundo (Hampden, Ibrox e Celtic Park) e três dos maiores clubes da Europa de então (Queens Park, Rangers e Celtic). Durante as décadas seguintes o futebol escocês manteve-se como um dos bastiões fundamentais do jogo e a vitória do Celtic na final de 1967 da Taça dos Campeões marcou também a migração do sucesso desportivo da zona mediterrânica para as fronteiras a norte. A hegemonia asfixiante dos dois clubes da cidade sobre a liga escocesa consolidou o seu papel no panorama internacional, mas, por outro lado, atrasou o seu crescimento desportivo e económico numa liga que perdia, ano após ano, importância e competitividade. Quando o dinheiro começou a jorrar na Premier League a divisão entre as duas ligas tornou-se de tal forma evidente que nunca mais um clube escocês se mostrou capaz de competir com qualquer clube a sul da muralha de Adriano.
Entrar na Premier League transformou-se numa profunda obsessão para os gestores de Rangers e Celtic. Ambos os clubes viviam crises financeiras durante os anos 90 e enquanto o Celtic foi comprado por Fergus McCann que apostou sobretudo na reforma do Celtic Park e no saneamento de contas, o Glasgow Rangers de David Murray apostou sobretudo no reforço do plantel começando pela contratação do primeiro treinador estrangeiro, o holandês Dick Advocaat. Os resultados apareceram, as dividas também. Mas competir na débil SPL impedia as equipas de preparar-se a sério para os duelos europeus e habitualmente as performances dos clubes da cidade na Europa eram, como minimo, confrangedoras. A final de Sevilla de 2003 para o Celtic e a final de Manchester em 2008 para o Rangers foram oásis desportivos no meio de uma tremenda mediania. Entre 2005 e 2008 as equipas escocesas conseguiram superar a barreira dos Oitavos de Final da Champions League. Depois, como diria Luis XV, o diluvio...
Rangers e Celtic alternam-se no dominio da prova nacional mas na Europa transformaram-se em pequenos anões. Eliminados sucessivamente nas fases de pré-eliminatórias da Champions League, há três temporadas que não há um clube escocês na fase de grupos do torneio. O país caiu em três anos cinco lugares no ranking da UEFA e se os grandes de Glasgow falham, os restantes clubes nacionais (Abardeen, Dundee, Hearts, Hibernian. Motherwell) são ainda mais decepcionantes.
Desde 2000 que tanto o Celtic como o Rangers apostaram todas as cartas numa viagem a sul. Os clubes contactaram os principais dirigentes da Premier e durante algum tempo estudou-se realmente a possibilidade de que os clubes se unissem à elite do futebol inglês. Mas a proposta, se bem que financeiramente apetecivel para o duo de Glasgow, nunca convenceu os clubes ingleses e foi sendo adiada até que acabou por descartar-se definitivamente. Celtic e Rangers tinham gasto o que tinham e o que não tinham pensando na galinha dos ovos de ouro (e em muitos casos para impressionar os próprios clubes a sul) e viram-se com um sério problema nas mãos. No caso do Rangers os problemas crónicos dos anos 90, nunca resolvidos, foram agravados ao extremo e a situação transformou-se num drama.
O clube foi vendido, as dividas ficaram por pagar, uma nova venda tornou-se inevitável e pela primeira vez na história um clube escocês acolheu-se à lei concursal, o segundo caso nas ilhas britânicas depois do Portsmouth. A liga retirou 10 pontos aos Blues, então a disputar o titulo com um Celtic que se tornou em campeão antecipado, e a UEFA ameaçou negar a licença desportiva para competir na Europa na próxima época. A situação, já dramática o suficiente, piorou quando o staff técnico e o plantel recusou aceitar um corte salarial necessários para o clube pagar a divida fiscal acumulada nos anos anteriores. A genuina ameaça da falência e consequente final da entidade desportiva transformou-se quase num cenário inevitável.
Para salvar o pescoço o Rangers precisa de um milagre financeiro e de um profundo renascimento desportivo. Competir numa liga tão inconsequente como a escocesa é um drama para qualquer clube que ambiciona ser algo mais nos palcos europeus. A qualidade média do futebol escocês, no passado um dos faróis do futebol ocidental, hoje não difere muito de ligas anónimas como as dos países nórdicos ou do leste europeu. No entanto o dinheiro que o Glasgow Rangers maneja na gestão desportiva assemelha-se mais ao universo da Premier, realidades incomportáveis mesmo para o maior mago financeiro que Ibrox possa encontrar. O final do Glasgow Rangers seria o golpe de misericórdia para o futebol escocês e um sério aviso ao futebol continental que nos últimos anos foi seguindo, em muitos casos, o caminho do duo de Glasgow. Para os mais nostálgicos seria mais do que isso, a prova viva de que o futebol, na sua imensa magia, também pode morrer.
Cinco golos num jogo de futebol profissional é algo tão raro que qualquer que se atreva a lograr o feito tem, forçosamente, de ser aplaudido de pé. Quando o gesto se torna recorrente, aplaudir já não chega. Lionel Messi já está nessa lista de grandeza onde coabitam dezenas de magos deste jogo que é mais do que um desporto. Por momentos de absoluta simplicidade como os que destroçaram o Bayer Leverkusen. Por situações de extrema complexidade que ajudaram a construir a sua lenda. Messi tem méritos para sentir-se grande, mas para enquadrá-lo no último degrau olimpico é necessário contextualizar o seu jogo com o de aqueles que, quase unanimemente, por lá andam.
Qualquer lista é subjectiva e peca por injusta, seja o tema que for. Mas a consensualidade faz a história e se Alexandre, Júlio César e Napoleão têm mais prestigio que Alcibiades, Pompeu e Frederico é porque há mais gente – com ou sem justa causa – que os considera superior no seu mister. O futebol não escapa - como podia - a estes jogos de café e desde há trinta anos que há um poker de ases que parece ser inquestionável para uma grande maioria nem sempre silenciosa. Nos últimos anos a trajectória ascendente de Leo Messi fez recuperar esse debate que, de tempos a tempos, um jogador consegue despertar da letargia. O do quinto grande.
O curioso, nestas listas, é que o quarteto mais habitual e omnipresente não representa, apenas, o futebol como jogo. Para entrar no Olimpo não basta ter sido imensamente dotado, tremendamente decisivo, imperialmente triunfador. O talento, por si só, é pouco para establecer uma linha difusa entre o grande e o imenso. Falta algo mais, algo profundamente anacrónico e que só se entende quando se consegue dar um passo para trás e analisar o contexto de aparecimento e consolidação do jogador no tempo cronológico e no espaço geográfico, politico e socio-cultural. Uma lista de 100 jogadores tremendos é dificil de ser feita porque outras centenas ficarão de fora e a diferença entre uns e outros não é, manifestamente, significativa. Mas muito poucos foram os que souberam levar o jogo para fora do relvado e transformá-lo noutra dimensão. Foi, sobretudo, essa realidade, que definiu esse poker consensual e é essa realidade que impede a Lionel Messi de ambicionar juntar-se a essa elite. Messi tem a grandeza dos maiores, de isso há poucas dúvidas. Mas não tem essa bagagem moral que lhe permite escancarar as portas da eternidade como antes dele não tiveram Ronaldinho, Zidane, Ronaldo, Rivaldo, Bergkamp, Cantona, Baggio, van Basten ou Gullit, para citar apenas os maestros das duas últimas décadas.
Di Stefano, Pelé, Cruyff e Maradona.
O que os define? O que os une? O que faz de cada um destes quatro génios seres especiais, referenciais incontornáveis, nomes indisputados. Sobretudo a contextualização da sua genialidade no tempo e a forma como marcaram o mundo que os rodeava. Nesta era de twitter e facebook, de ipads e low-cost, Messi encanta, mas não aporta nada de novo. Nem definiu a sua profissão como Pelé. Nem é um lider espiritual como Cruyff. Nem um maverick solitário como Maradona. E muito menos o jogador completo que foi Di Stefano. Tal como Garrincha, Charlton, Beckenbauer, Ronaldinho, van Basten, Ronaldo, Zidane, Platini, Kopa, Best, Sindelaar, Muller, Zico, Mathews, Hidgekuti, Mazolla, Rivera, Eusébio ou Puskas, ele é, sobretudo, um talento descomunal, um génio superlativo e um artista do impossível. Mas o que Messi faz hoje nem é inédito nem inovador e para entrar na história pela porta grande é preciso saber definir um antes e um depois.
Di Stefano foi o primeiro futebolista assumidamente total. Com o River Plate, Milionarios e, sobretudo, com o Real Madrid, ele transformou o papel da estrela em campo na de general. Ao contrário de Puskas – talvez mais dotado tecnicamente que ele – o argentino estava ao mesmo tempo em todo o lado. A equipa de mil estrelas respondia apenas ao som da sua voz. Di Stefano jogava onde queria e como queria, perdia-se como médio mais defensivo, surgia como criativo, rematava como falso nove e zarandeava as defesas nos sprints pelas laterais. Impossível de marcar, dificil de lidar, Di Stefano ajudou também a criar um mito, o do Real Madrid, e beneficiou, sobretudo, da televisão para distingui-lo com a sua pronunciada calvice, dos génios que o precederam e que o Mundo mal conseguiu vislumbrar.
Pelé, dentro de toda a sua genialidade, definiu o futebolista profissional contemporâneo e ajudou a definir a mitologia nacional brasileira. Ao contrário da maioria dos futebolistas, Pelé foi primeiro um idolo nacional e só depois um herói local. Quando em 1958 aterrou na Suécia ainda não era a máxima estrela do Santos mas os seus golos, principalmente na fase a eliminar, fizeram dele o principe do Brasil. Ultrapassou os seus problemas de adaptação e afastou-se dos fantasmas que destroçaram (e destroçariam) a maioria dos génios do Brasil adoptando uma vida imaculada onde a preparação fisica, mental e a gestão da imagem de marca se tornaram tão importantes como a própria bola. A marca Pelé ajudou a prolongar o mito muito depois das chuteiras terem deixado se calçar os pés do astro e o seu comportamento exemplar estableceu o padrão do futebolista de futuro.
Cruyff, Johan, foi o profeta que todo o desporto precisa. O holandês está para o futebol como Lennon está para a música contemporânea e há sempre um antes e um depois da sua mensagem de futebol absoluto, lucrativo e intelectual ter rasgado os relvados de Amesterdam. Que o holandês tenha sido o único dos quatro a brilhar como treinador (e só Pelé não o tentou) explica bem a forma como abordou o jogo. Numa era onde o profissionalismo começava a ser a nota dominante e o futebol total se vislumbrava, Cruyff soube conciliar ambos, transformou o génio numa forma de vida bem remunerada, mexeu com a consciência social de dois países, desafiou o monopólio das marcas desportivas e reensinou o mundo a olhar para o campo de jogo e a ver triângulos e diagonais onde antes apenas estava erva.
Maradona foi o seu oposto, o último potrero, o último dos romanticos. O único jogador capaz de ganhar as duas provas mais dificeis da sua época (o Mundial e a Serie A) só, com um bando de jogadores medianos e bem treinados atrás de si. Maradona desafia a táctica, o conceito colectivo de Cruyff e o profissionalismo de Pelé e sai a vencer em cada equação. Depois de ele nunca nenhum jogador foi grande sem estar envolvido num projecto de outras grandes individualidades, nem Ronaldo, nem Zidane, nem Ronaldinho, nem Messi.
Nada disso retira mérito ao génio de Messi que é, com Cristiano Ronaldo, o simbolo mediático desta nova década. Os seus números individuais e o projecto colectivo onde cresceu e se tornou parte nuclear são, por si só, história. A união do ideal potrero com a formação tecnocrática europeia é talvez única. Mas se já vi outros jogadores serpenterem, se já vi outros enganarem seis defesas, se já vi desafiarem números e estatisticas, como vejo regularmente a Messi, a verdade é que não vi ainda o astro argentino a romper com a ordem natural das coisas, a rasgar preconceitos e establecer tendências como lograram o poker de asas que muitos aprenderam a recitar de memória. 24 anos é idade mais do que suficiente para surpreender, mas para ser algo mais do que genialmente perfeito a Messi é necessário, mais do que ganhar um Mundial (Di Stefano e Cruyff também não o ganharam), romper com as verdades mais absolutas. Parece pouco, mas há uma lista de cem, como ele, que não chegaram lá...
Está claro que no futebol os títulos não são tudo. Para os adeptos do APOEL o triunfo sobre o Olympique Lyon vale muito mais que os cinquenta troféus acumulados nos últimos setenta anos. Num país que sonha acordado com a enosis com a mãe pátria, o sentimento de orgulho nacional encontrou na bola de futebol o pretexto mais lógico e genuino. Para muitos cipriotas a noite de 7 de Março entra directamente na galeria dos momentos mais significativos da história do país. O futebol faz esquecer um país dividido, desencontrado e que procura afirmar-se como algo mais que um destino turistico de sonho.
Pode-se explicar a magnitude do feito logrado pelo APOEL por números ou por sensações.
Mas em nenhum dos casos teremos uma ideia aproximada do que significa estar, agora mesmo, em Nicósia. O futebol transformou-se no Século XX numa das mais eficazes formas de reinvindação dos povos. O sucesso nos terrenos de jogo várias vezes espelha a própria evolução de um país ou cidade no plano económico, politico e social. No caso cipriota é preciso ir mais além. Na Europa pós-Guerra Fria só ficaram sequelas de meio século de tensões politicas num país europeu. Precisamente, o Chipre.
O país continua dividido de forma não-oficial (só a Turquia reconhece a República separatista do norte), os muros continuam a relembrar dias pretéritos e apesar dos valores de qualidade de vida serem dos mais elevados da Europa – e definitivamente da zona mediterrânica – esse fantasma de desunião teima em não largar a memória dos cipriotas. Se a esse karma politico juntamos o eterno desejo de uma imensa maioria em unir-se, de forma definitiva, à Grécia (algo planteado por inúmeras vezes nos últimos duzentos anos), torna-se fácil entender que para os cipriotas não há muitos motivos para sacar à janela a bandeira do país e celebrar um feito capaz de capitalizar a nação. No Chipre vive-se relativamente bem, a integração europeia entre 2004 e 2008 foi rápida e sustentada e depois há o imenso nada, o tremendo vazio de momentos capazes de quebrar a rotina de um centro cada vez mais atractivo para o turismo e para a gestão de recursos naturais nas águas quentes e apaixonantes de onde brotou Afrodite. Quando a bola disparada por Gomis encontrou as mãos de Chiotis, tudo fez sentido.
Nunca na história da competição rainha da UEFA uma equipa representante de um pais fora dos 20 primeiros do coeficiente UEFA chegou aos Oitavos de Final. Muito menos aos Quartos. Nos últimos oito anos é preciso recuar a 2003-04 – um ano atipico na história da prova – para encontrar um clube de um país fora do top 15 da UEFA nos Oitavos. Naquela altura o Sparta de Praga caiu de pé, mas mesmo esse feito não deixa de ser bem distinto ao que vivemos hoje. Afinal a República Checa sempre foi uma referência absoluta na evolução do futebol europeu. O Chipre, um imenso desconhecido.
Dentro da ilha mediterrânica poucos podem contestar a hegemonia do APOEL.
Clube fundado por gregos desejosos de unir a ilha aos destinos da sua pátria de origem, sempre foi utilizado como mecanismo de propaganda nacional para os entusiastas da enosis greco-cipriota. Há uma longa tradição de jogadores gregos no clube. Que Chiotis, o histórico guarda-redes helénico, tenha sido o herói do apuramento só reforça ainda mais o momento legendário de um clube reencontrado. O sucesso recente do APOEL espelha igualmente o crescimento de um país que só em 1960 se libertou do jugo imperial britânico, mas que quatorze anos depois se viu dividido entre a ambição turca e grega.
A indefininação nacional significou também uma crónica incapacidade de afirmar-se no terreno desportivo. A partir de 2000 o rápido crescimento económico e social do país, prévia à sua entrada na UE, começou a mudar a dinamica social. Os clubes cipriotas pagavam bem e a tempo e muitos jogadores de perfil médio de várias ligas decidiram emigrar. Kennedy e Ricardo Fernandes foram os primeiros portugueses e hoje o clube conta com quatro jogadores lusos que em Portugal nunca tiveram oportunidades e que ao comando de Ivan Jovanovic se tornaram em peças fundamentais do apuramento. A maioria dos jogadores do clube são internacionais cipriotas mas há nove nacionalidades representadas no balneário. Tudo cartas fora do baralho nas grandes ligas que, em conjunto, se metamorfosearam numa legião de invenciveis.
O APOEL, que já tinha surpreendido na sua primeira aparição em 2010 na prova, teve de passar por três Pré-Eliminatórias para chegar à fase de grupos. Eliminou albaneses (Skenderbeu), eslovacos (Slovan) e polacos (Wisla), tudo clubes de nações com perfil similar. A improbabilidade de marcar presença no top 8 do Velho Continente era tal que nem sequer surgia nas casas de apostas no inicio da competição. A sorte esteve do lado dos heróis de Nicósia. Ao contrário de outros pequenos clubes europeus como o Viktoria Pilzen, BATE Borisov ou Dinamo Zagreb, o grupo onde foi enquadrado era bastante equilibrado. Um Shaktar decadente face ao ano prévio, um FC Porto desencontrado e um Zenith irregular permitiram somar pontos importantes que garantiram um apuramento inesperado e precoce. O sorteio dos Oitavos também abria as portas ao sonho. Afinal este Olympique Lyon está longe de ser a “besta negra” dos gigantes europeus. Mas a diferença brutal de orçamentos, massa salarial, expectativas e plantel era tal que nem os homens de laranja da PAN.SY.FI, a claque oficial do clube fundada em 1979, se atreviam a sonhar com tamanha audácia. Mas o futebol, como a poesia, permite sempre fintar o brutal realismo do dia a dia.
Mesmo com todos estes atenuantes, imaginar uma equipa de um país que nunca esteve sequer perto de apurar-se para um evento internacional é um logro tremendo. A vitória do APOEL é também uma vitória para Platini e a sua Champions League mais plural. Uma vitória para o futebol europeu que não pode cair no jugo de uma asfixiante Euroliga. E uma vitória para o futebol do Chipre, uma nação que se tem reencontrado a pouco e pouco com a sua essência. Se nas ruas de Nicósia e nas praias de Larnaca a bola sempre fez parte da herança cultural do país, o som do hino europeu no GSP Stadium é também uma forma de agarrar pelos braços um país que navega a contracorrente e procura não perder de vista as margens de uma Europa onde se integra com a mesma certeza com que se deixa levar pelos ventos quentes do sul que roçam os ciprestes do monte Olimpus.