Karl Rappan, Nereo Rocco, Helenio Herrera. Para os mais puristas são a encarnação do diabo, a santissima trindade das trevas futebolisticas. Para os amantes dos desafios tácticos verdadeiros pioneiros, heróis malditos que a histórica do politicamente correcto quer varrer para debaixo do tapete. Mas a grandeza histórica deste trio de ases não é mais do que a consequência lógica do pensamento de Gipo Vianni, o homem responsável pelo "pecato originalle" do catenaccio a la italiana.
Conta a lenda, e nisto do futebol italiano cada história tem a sua lenda respectiva, que Gipo Viani era um homem infeliz.
Filho do Venetto, encontrava-se entalado no meio dos "terroni" de Salerno, esse porto costeiro a sul da costa Amalfitana, esse pedaço de Eden desprovido de pecado. Mas apesar da perfeição que o rodeava nas montanhas, no mar e nas curvas das mulheres que lhe tanto faziam perder a cabeça, Vianni não dormia. Semana atrás de semana a sua Salernitana não encontrava o caminho para a vitória e começava a afundar-se perigosamente na classificação. Oito anos depois de ter começado a sua carreira como treinador, a sua vida nos bancos parecia ter perdido o sentido. O problema do seu esquema estava numa defesa que ainda se regia pelo velho "Metodo", defendido até ao fim pelo grande Vittorio Pozzo, o técnico que fez da Itália a temida bicampeã Mundial nos dias em que Viani era jogador. O jovem tinha conhecido a Pozzo quando este o convocara em 1930 para jogar com os Azzurri. Um encontro que o marcou profundamente e que lhe permitu, no futuro, seguir a carreira de técnico numa era onde só os internacionais podiam sacar a titulação de treinador. Mas se a defesa das equipas de Pozzo pareciam inquebrantáveis, a sua era um verdadeiro quebra-cabeças. A lenda, e a mitologia italiana, como as suas mulheres, não se entende sem a lenda, conta que enquanto pensava, Viani olhou para o mar e viu um grupo de pescadores preparar-se para mais uma jornada de trabalho. E prestou atenção. Quando os dois pescadores mais jovens lançavam as suas redes, um pescador mais veterano atirava ao mar uma terceira rede. Se os peixes mostrassem habilidade suficiente para escapar aos seus jovens pescadores, seguramente que seriam apanhados pela sua veterana rede pesqueira. Na cabeça de Viani fez-se luz, talvez iluminada pelo sol intenso do golfo Amalfitano. Mas lenda ou não a restante temporada da Salernitana entrou para os livros da história do Calcio.
Viani foi o primeiro treinador italiano a establecer os principios e métodos do pensamento que derivou no Catenaccio.
A colocação de um terceiro central, retirado do ataque, permitiu estruturar uma defesa de três homens, com a cobertura dos dois interiores, que realmente se transformava numa teia de cinco jogadores, preparada para enfrentar-se, de igual para igual, com os cinco dianteiros que a maioria das equipas ainda apresentavam segundo o velho esquema do 2-3-5 de Pozzo.
A esse terceiro elemento defensivo mais tarde o grande Gianni Brera chamou de "libero" e encontrou eco na ideia que, do outro lado dos Alpes, começava a defender Rappan. Mas para Viani o esquema era mais do que uma questão de homens. O terceiro central obrigava também a equipa a reaprender a ocupação dos espaços. O quarteto da frente recuou progressivamente no terreno até formar uma linha de três elementos - dois extremos bem abertos e um jogador livre, o célebre Trequartista - por detrás do dianteiro solitário. Atrás desse quarteto os dois laterais, interiores reconvertidos ao jogo nas alas, os três centrais e um médio de cobertura. O campo encolheu, a equipa agrupou-se em zonas mais compactas e assim encontrou a fórmula perfeita para asfixiar os rivais.
Dentro do universo amador da Serie B, a experiência da Salernitana foi um sucesso e os restantes técnicos italianos começaram a olhar atentamente para a experiência de Viani. Afinal os anos 50 foram aqueles onde os campeões do Scudetto foram-no também com o menor número de golos marcados da história. Mas nenhum parecia tão redundatemente sedutor como o Vianemma, nome com que baptizaram o pré-catenaccio. O sucesso de Vianni foi tal que três anos depois o técnico estava em San Siro a orientar um histórico AC Milan com quem venceu dois titulos consecutivos (1957 e 1958) e a que levou á sua primeira final europeia, perdida por 3-2 no prolongamento contra o Real Madrid. Numa equipa sem amadores mas com génios como a tripla sueca Gre-No-Li (Gren, Nordhal e Liedholm) e o espirito de luta de Czeiler, Radice, Bagnoli, Buffon, Schiaffino e Cesare Maldini, o stopper perfeito para o técnico italiano. No final do duelo europeu, Di Stefano e Kopa, diz a lenda, presentaram a Liedholm a taça, como sinal de respeito, reconhecendo anos mais tarde que essa tarde foi a única vez onde a hegemonia merengue nos palcos europeus esteve verdadeiramente ameaçada.
Vianni sentia-se velho e cansado mas sabia reconhecer que o seu sistema estava longe de ser perfeito. Em 1958 abordou pela primeira vez um jovem e promissor técnico para se juntar ao seu staff técnico. Nereo Rocco recusou o convite mas depois de uma segunda abordagem deixou-se seduzir e em Milão juntou-se a Vianni e a Brera em tertúlias intermináveis pela noite num pequeno restaurante perto do Duomo e da sua Madoninna. Quando um ataque cardiaco obrigou a Vianni a um forçado repouso, Rocco pegou nas rédeas da equipa e transformou o Viannema num sistema ainda mais pulido e eficaz. Em 1963 bateu a memória do seu mentor ao derrotar o Benfica na final de Wembley. No ano seguinte Helenio Herrera, adepto do futebol espectáculo em Barcelona, soube levar ainda mais longe o ideário de Vianni e transferiu a sede do poder futebolistico do AC para o Inter de Milão, duplo campeão italiano e europeu nas seguintes temporadas. A história ficou com os titulos e o nome dos últimos, mas ainda hoje há quem se lembre que foi, segundo a lenda, o Éden italiano que levou a Vianni a cometer o seu pecado original.
Rafa Benitez uma vez soltou uma dessas confissões que raramente escutamos de treinadores e que nos ajudam a entender a diferença do jogo visto de dentro e de fora. Para o espanhol o primeiro nome que colocava no alinhamento de cada jogo importante que tinha pela frente não era nem o do espanhol Torres, do guardião Reina ou do capitão Gerrard. Para ele, e muito poucos, o equilibrio do seu "Pool" dependia de um holandês pouco convencional que sabia impor a sua lei.
Dirk Kuyt faz mais lembrar os grandes dianteiros nórdicos do passado, os Tore Andre Flo, Keneth Anderson, Niels Liedholm, Hans-Peter Nielsen e companhia do que, propriamente, uma estrela do futebol mediático contemporâneo. E no entanto há poucos futebolistas tão supremamente decisivos nos esquemas tácticos das equipas onde jogam como ele. O anti-divo é também o anti-holandês, com todos os preconceitos que isso pode trazer na imagem pública de um jogador que entende como muito poucos o conceito de desporto de equipa.
Kuyt define-se não pelos golos que marca nem sequer pelos passes que realiza, ambos com certeira regularidade. O espaço é o verdadeiro medidor da sua real influência, tanto na sua etapa holandesa no Feyenoord como mais tarde tanto em Anfield como de laranja ao peito. Dentro do panorama internacional é dificil encontrar um dianteiro que saibai tão bem entender o espaço como ele. E essa caracteristica tão holandesa parece escapar áqueles que se ficam pelo exterior e por esse aspecto de bom gigante que o afastam do herói romântico cultivado por Cruyff e prolongado mitologicamente por van Basten, Bergkamp, Sneijder ou van Persie.
Sem ter a magnitude histórica de Ruud Gullit - um desportista mais do que um simples futebolista - este é o verdadeiro espelho onde se deve medir a influência de Kuyt sobre os padrões contemporâneos. Quando o futebol do Liverpool começou a empalidecer, nos últimos dias de Benitez ao leme e durante o curto mandato de Hogdson, mais do que a falta de golos de Torres, da irregularidade de Reina e das lesões de Gerrard, os adeptos da Kop lamentavam a perda de influência de Kuyt no manejo do ritmo de jogo colectivo. Posicionado habitualmente nos extremos, Kuyt abre e fecha o campo com a autoridade de um general que decide quando mandar a cavalaria atacar o flanco adversário ou penetrar as linhas centrais da infantaria com uma carga determinante.
Ao apontar o segundo golo no histórico confronto contra o Manchester United o holandês ganhou o direito de voltar ás capas dos jornais e revistas. Mas poucos têm medido a recuperação do clube pelo reencontrar do melhor ritmo de jogo do dianteiro. Kenny Dalglish, treinador mais inteligente do que muitos querem conceder, sabe que tem em Suarez e Carroll uma dupla importante no ataque mas que sem o jogo de Kuyt o trabalho do inglês e do uruguaio vê-se, demasiadas vezes, multiplicado por dois.
Kuyt nunca ganhou um titulo ao serviço dos Reds mas esta temporada já foi parte importante na campanha que levará o Liverpool a defrontar o Cardiff na final da League Cup e agora revelou-se instrumental em garantir a passagem ás derradeiras etapas da prestigiosa FA Cup, dois troféus em que os homens de Dalglish podem, legitimamente, sonhar em vencer. Se a liga há muito que é uma miragem - e mesmo um lugar na Champions League - coleccionar troféus aparentemente secundários pode resultar num estimulo revigorante para a psique de Merseyside, profundamente depressiva depois de mais de duas décadas sem levantar um troféu ligueiro. Kuyt viveu toda essa maré de descontentamento mas, paradoxalmente, sempre pareceu ser uma das mais eficaz soluções para ambicionar a algo mais. Tal como van Marjwick, o seleccionador holandês, entendeu, ter um jogador das suas caracteristicas, tanto fisicas como tácticas, é uma mais valia que nenhuma equipa moderna pode desprezar. O seu sentido de oportunidade já faz parte da lenda de Anfield e apesar dos seus 31 anos não permitirem a mesma frescura quando soube ao tapete verde de vermelho ao peito, a sua influência na estrutura táctica de uma equipa que este ano deambula entre o 4-4-1-1 e o 3-5-2, já se revelou determinante. A lembrança das suas parcerias com Kalou em Roterdam, Torres em Liverpool e van Persie com a selecção holandesa trará sempre á memória a lembrança de jogadores como John Toshack, Teddy Sheringham ou Chris Sutton, elementos fundamentais no sucesso goleador dos seus colegas de ataque que acabaram por não receber o aplauso mediático que tanto mereciam. Tal como o galês do Liverpool com Keegan, também Kuyt soube transformar-se um mago do espaço e da oportunidade e fez-se mais jogador cada vez que deixou o caminho livre para o seu parceiro de ataque brilhar. Anfield, como sucedeu com Toshack, sempre lhe reconhecerá essa generosidade que o transforma, ao mesmo tempo, num dos jogadores tacticamente perfeitos para qualquer treinador. Benitez soube-o, Dalglish sabe-o e van Marjwick, que o conhece bem dos dias de vermelho e branco, talvez saiba-o mais e melhor do que ninguém.
Se em Liverpool o génio de Kuyt encontra-se perfeitamente reconhecido, o próximo Europeu dará ao holandês uma oportunidade de ouro para vencer o primeiro grande troféu numa carreira que, curiosamente, se fez quase sempre sem titulos. O seu lugar no quarteto ofensivo da Laranja Mecânica parece inquestionável mesmo que isso provoque a suplência de algum dos grandes artistas que os holandeses levarão com armas e bagagens para conseguir o que em Joannesburgo ficou por lograr. Enganar o fantasma da história!
Poucas siglas no futebol são tão facilmente reconhecíveis como o mítico trio de letras que fez de Jean Pierre Papin um dos jogadores mais amados do futebol europeu a final dos anos 80. O eterno goleador de Boulogne-sur-Mer não só desafiou a razão ao vencer um Ballon D´Or como transformou-se num ícone para um futebol gaulês rodeado de pontos de interrogação. O seu faro para o golo marcou profundamente a sua carreira mas foi o seu estilo simples e honesto que lhe permitiu distanciar-se dos enfant terribles que França teimava em produzir com insuspeita assiduidade.
Em 1986 a revista Onze realiza uma reportagem sobre um flamante dianteiro que surgia surpreendentemente na lista de Michel Hidalgo para o Mundial do México. O jogador aparecia vestido como um camponês, com boina e casaco à altura do majestoso cajado, e um ar que lhe permitia confundir-se com qualquer outro filho da província do hexágono. Longe do glamour de hoje ou do ar rebelde da maioria dos seus contemporâneos, essa imagem de JPP eternizou-o ao longo da carreira. O mais humilde dos guerreiros gauleses tornou-se também num dos mais bem sucedidos futebolistas da sua geração.
Papin viajou ao México junto a Platini, Giresse, Genghini, Tigana e companhia. E marcou, como só ele sabia, o golo da vitória frente ao Canadá e um dos tentos que confirmaram o terceiro posto da França no torneio. Seria o seu primeiro Mundial. E o último também. Com o ocaso azteca a selecção gaulesa entrou numa espiral destructiva que a afastou de dois Mundiais consecutivos. O futebol internacional perdeu assim um dos seus grandes nomes nas grandes noites. A Papin restou-lhe o seu icónico papel na história dos clubes que melhor representou, os belgas do Brugge e os gauleses do Olympique Marseille. No final desse Mundial o jogador que o futebol francês tinha olhado com suspeita depois de dois anos brilhantes ao serviço do modesto Valenciennes, voltou a casa. O ano na Bélgica, com a camisola do Brugge, tinha convencido tudo e todos. 20 golos em 31 jogos foram suficientes para que Hidalgo o visse como um potencial dianteiro para uma selecção com um fortíssimo meio-campo mas sem alma de golo nos últimos metros. Apesar de ter apontado apenas dois golos no torneio a sua performance foi suficiente para convencer o polémico Bernard Tapie que ele era o homem certo para o seu ambicioso projecto em Marselha. Começou uma história de amor que durou meia década.
Durante esses seis anos a conexão entre JPP e o público marselhês tornou-se na base da sua popularidade.
Os números eram incapazes de mentir e a veia goleadora de Papin, ponta-de-lança da velha escola, raposa de área, consagrou-o como um dos melhores dianteiros do Velho Continente. Em 215 jogos pelos azuis apontou 135 golos, contribuiu para a conquista de um Tetracampeonato entre 1888 e 1992 e ajudou o onze gaulês a chegar à sua primeira final europeia.
Papin viveu a era mais dourada mas também conflictiva da história do clube. Inicialmente o objectivo de Tapie era aproveitar para a sua equipa a parceria que tão bons resultados parecia dar ao serviço dos Bleus de Michel Platini. Ao lado de Eric Cantona o goleador sentia-se cómodo e com o apoio directo de Chris Wadle e Abedi Pelé, a máquina goleadora marselhesa era verdadeiramente inalcançável. Mas os problemas de Tapie com Cantona - emprestado dois anos consecutivos a Bordeaux e Montpellier - e as suspeitas de doping e jogos comprados (como se provou na polémica OM-VA) ensombraram a magnifica carreira do dianteiro que venceu por cinco anos consecutivos o prémio de Melhor Goleador da Ligue 1. Se em Marselha a sua parceria com Cantona se desfez, ao serviço dos Bleus foi o jogo combinado de ambos que permitiu a Michel Platini lograr um apuramento histórico para o Euro 92 (depois de falhadas as classificações para o Mundial de Itália e o Euro da Alemanha) com oito vitórias em oito jogos e Pappin como máximo marcador da ronda de apuramento. Mas na Suécia, apesar dos seus dois golos (os únicos dos Bleus) a França desiludiu num grupo que parecia feito à sua medida. Depois do empate com Inglaterra e Suécia, a derrota com a surpreendente Dinamarca condenou os gauleses a uma eliminação precoce que só ia anunciar a depressão maior de ser eliminada em casa, pela Bulgária, na corrida ao Mundial dos Estados Unidos. Por essa altura JPP já era um ícone global, o primeiro francês desde Platini a lograr convencer os jornalistas da France Football a atribuírem-lhe o prémio Ballon D´Or.
Resultado de uma época memorável, o triunfo foi polémico porque ficou claro que a divisão de votos entre os jogadores do Estrela Vermelha - Dejan Savicevic e Darko Pancev - facilitou a vitória de um homem que mostrou o seu lado mais cinzento nessa mítica final de Bari. Depois de várias tentativas - incluida a da meia-final do ano prévio com a mão de Vata a eliminar os gauleses - o Marseille de Tapie finalmente logrou o apuramento para a final. Cantona estava castigado pelo clube, Papin foi deixado só na frente de ataque e o jogo entre os excitantes jugoslavos e os habitualmente ofensivos franceses transformou-se na mais aborrecida final da história. Os penaltis decidiram o titulo e a sorte (e o carácter) deu o triunfo aos encarnados.
Foi o canto do cisne para JPP que disputaria mais uma época triunfal em Marselha antes de rumar a Milão onde outro megalómano empreendedor, Berlusconi, já tinha pensado nele para o futuro do seu AC Milan, orfão do génio de Ruud Gullit e preso pelas lesões de Marco van Basten. O presidente pagou 10 milhões, o recorde à época, pelo Ballon D´Or mas o investimento nunca esteve à altura das expectativas.
Em Milão Papin deixou de ser o protagonista a que estava habituado. Começou a viver entre o relvado e o banco com perigosa assiduidade já que o seu técnico, Fabio Capello, entendia que era um jogador que não ajudava o colectivo nos aspectos defensivos da mesma forma que Massaro ou Simone. Papin terminou o ano com 13 golos (a sua pior média em oito anos) tantos como van Basten que passou mais de metade da época (lesão que acabaria com a sua carreira definitivamente). O opúsculo chegou na final de Munique. O "seu" Olympique Marseille seria o rival do AC Milan e para cúmulo da sua desgraça os franceses venceram - com um golo de Boli, de cabeça - e JPP não saiu do banco. Mais tarde o titulo foi retirado aos franceses mais isso não apagou a dor do dianteiro que ficou ainda mais um ano ao serviço dos italianos (cada vez mais como figura secundária com apenas três golos) antes de partir para Munique onde marcou três golos em dois anos ao serviço do Bayern (marcados pelas lesões) e Bordeaux, um clube que marcou o seu regresso a França que se eternizaria nos oito anos seguintes por clubes de segundo nível como Guingamp, Saint-Perroise ou Cap-Ferrat.
Ofuscado pelo sucesso tremendo da geração que o seguiu, a de Zidane e companhia, a JPP custou-lhe dizer adeus aos relvados e mais ainda arrancar na sua nova etapa como treinador. O herói loiro de Marselha conseguiu promover o Strasbourg à Ligue 1 em 2006 mas uma revolta no balneário afastou-o do comando do projecto do clube do Sarre no ano seguinte. Curtas passagens por Lens e Chateroux não deixaram saudade e a história teve de contentar-se com a imagem, de braços no ar, cabelo ao vento, de um homem que apontou 225 golos em 420 jogos, um dos registos mais implacáveis da história de um futebol gaulês que nunca mais conheceu um avançado com tanto apetite pela baliza alheia.
Durante os últimos 40 anos a Bundesliga viveu sob uma eterna realidade. O livro de cheques do Bayern Munchen. O clube a quem muitos chamam, despectivamente, FC Hollywood, tornou-se no pesadelo dos seus rivais. Dentro e fora de campo. Estrela que irrompia em hostes alheia, estrela que os bávaros tentavam capturar para o seu castelo. Marco Reus quebrou uma tendência crónica e, sem sabê-lo, pode até mesmo ter invertido uma longeva realidade. Hoje quem contrata são os outros, quem cultiva a formação são os ogres de vermelho.
No magnifico plantel desenhado por Louis van Gaal e que este ano é orientado por Jupp Heynckhes os números de contratações de estrelas locais empalidecem em comparativa com o leque de jogadores que chega dos escalões inferiores. Salvo a recém-chegada de Michael Neuer, indubitavelmente o melhor guarda-redes europeu do último ano, e o olfacto goleador de um Mario Gomez que chegou há três anos vindo do Stuttgart, o Bayern Munchen parece ter abandonado a sua velha politica de roubar as estrelas emergentes aos rivais para cuidar mais do seu quintal. Talvez a politica de formação que tanto (e tão bem) transformou o olhar que temos da Bundesliga também tenha realmente começado a fazer sentido para Uli Hoeness e Karl-Heinz Rummenigee, os homens fortes do futebol do Bayern.
Aos já veteranos Bastian Schweinsteiger e Philiph Lahm juntam-se actualmente Thomas Muller, Holger Badstuber, David Alaba, Toni Kroos, Diego Contento e Maximillian Riedmuller, todos eles formados nas camadas jovens do clube. Nove jogadores da casa no plantel principal, um êxito que não era logrado desde os anos 80 e que espelha bem a inversão da politica desportiva do clube. Se a isso juntar-mos que as mais recentes contratações foram relativamente low profile (o sueco Nils Petersen, o japonês Takashi Usami, emprestado e Anataly Timostschuk) temos um retrato bem diferente do que era habitual. E no entanto o caso Reus podia ter alterado essa imagem redentora.
Poucas figuras individuais pareceram tão relevantes no panorama desportivo alemão do último ano como Marco Reus.
O jovem médio-ofensivo emergiu como o líder de uma geração irreverente que transformou o decrépito Borussia Monchengladbach, outrora grande do futebol alemão, numa equipa capaz de lutar pelos primeiros postos da tabela. Rosto visível desta Nova Alemanha, junto a Ozil (Real Madrid), Muller (já no Bayern) e Gotze (estrela do Dortmund), o médio era também o valor mais apetecível do mercado, capaz de captar o interesse dos grandes da Europa...e do Bayern Munchen.
Apesar de ter várias opções para essa zona do terreno (incluindo Kroos, Muller, Ribery e Robben) o apetite bávaro perante uma pechincha (17 milhões de euros de cláusula) tornou-se evidente ao longo da primeira metade da temporada e muitos imaginavam um regresso às origens, ao período em que cada estrela jovem que despontava, como sucedeu com Michael Ballack, Sebastian Deisler, Steffen Effenberg, Oliver Kahn e tantos outros, acabaria no Allianz Arena. E no entanto, à medida que Hoeness tratava de vender a sua nova politica de formação (e estão Emre Can e Dennis Cheesa a caminho), o livro de cheques encarnado voltava a surgir como fantasma de dias pretéritos.
Mas Reus, inadvertidamente, mudou as regras do jogo. Entre Bayern Munchen e Borussia de Dortmund elegeu a segunda opção. O clube que se decidiu a formar para sair da crise financeira e descobriu em Nuri Sahin, Kevin Grosskreutz e Mario Gotze as armas para um titulo histórico decidiu inverter a tendência do mercado e pagar a cláusula por um jogador que, curiosamente, já fez parte da sua célebre formação e que saiu para Monchengladbach para procurar fortuna (como sucedeu com Ozil com o Schalke 04 ou Kroos e o Bayern). A chegada de Reus ao Welfastsadion tem um significado implícito previsível, nada menos do que a partida de Mario Gotze no próximo Verão por valores que certamente cobrirão este gasto surpreendente. Há muito que o Borussia estava longe das altas contratações (Jerome Boateng e Luis Gustavo, hoje no Bayern, foram exemplos de jogadores que se lhe escaparam) e só a frescura financeira com o dinheiro da Champions League e as vendas de Sahin, e previsivelmente, de Gotze poderiam justificar esta aventura.
No fundo este golpe na mesa significa, definitivamente, que há um novo ideário nesta nova Bundesliga onde nem todos os jogadores se rendem à atracção de Munich. A partida de Khedira, Ozil, Reus, Aogo e a incapacidade de atrair as jovens estrelas do Dortmund reflecte, de certa forma, uma mudança de imagem no papel de papão dos homens de Munich. É certo que homens como Neuer, Gomez e Boateng (via Manchester)o continuam a espelhar esse desejo do clube bávaro de se nutrir dos melhores jogadores alemães mas o processo começa a distanciar-se da omnipotência pretérita. Uma lufada de ar fresco para um campeonato que se converteu por direito próprio na grande sensação dos últimos anos. A forma como projectos sólidos em Dortmund, Gelsenkirchen, Bremen, Leverkusen ou Hoffenheim se vão formando, resistindo às acometidas do eterno campeão, ajudam também a explicar este novo perfume que jogadores como Reus, seguramente destinado a marcar o futebol alemão da próxima década, trouxeram aos campos da Bundesliga.
O futebol é o campo de guerra moderno. Os conflictos armados diminuíram felizmente nos últimos 50 anos de uma forma tremenda mas o orgulho e ódio entre nações, cidades, personalidades rivais não desapareceu debaixo do tapete. O grande fenómeno sociológico do século XX tornou-se nesse novo pasto de guerra, com regras ás vezes quebradas, com exércitos treinados especialmente para o combate e com ideologias próprias. Acima de tudo, o futebol recuperou a mitologia clássica da luta entre elites, entre os melhores. Evocando a memória de Homero, os grandes clássicos tornaram-se em reedições do célebre duelo entre Aquiles e Heitor. Salvo quando, pela calada, Troia decide enviar ao tapete verde em lugar do seu mentor o frio e rasteiro Páris...
Não parece uma noite de Janeiro em Madrid. Estamos num desses dias quentes nas areias de Ilion.
Armaduras brilhantes, recém desenhadas pelos deuses do marketing, as asas de Nike e as tiras de Adidas, arena de batalha flamejante e os deuses com dezenas de câmaras no seu particular pay-per-view olímpico e divino seguem com interesse esta disputa de humanos que tanto os motiva. Alguns vestem as cores dos seus, outros alinham por uma falsa neutralidade divina mas todos, sem excepção, esperam que entre os visitantes helénicos, esses que ajudaram a fundar a Barcelona mediterrânea, surja o seu espantoso Aquiles, calvo e não loiro de cabelos ao vento, tenso e não relaxado como quem sabe ser de outra fibra. Os da casa, os que da muralha lançam gritos de incentivo, os que defendem as suas mulheres e filhos de mais uma humilhação querem o seu Heitor, o seu símbolo, para esgrimir com o helénico um tipo de duelo só ao alcance dos eleitos. Quando este sobe á arena, precedido pelos seus imponentes filhos de uma Tróia amaldiçoada sente-se a esperança no ar, a vontade de expulsar de uma vez por todas o fantasma dos mirmidões azulgranas. O tempo passa, a bola rola e um troiano, Eneias disfarçado talvez de lusitano, rasga as filas helénicas e desfere o seu golpe diante de um Ajax incapaz de fazer algo mais. Tróia grita, Heitor lidera os seus e a vitória parece, finalmente, sua. Os deuses, esses deuses da bola pretéritos conjuraram um novo rumo nesta epopeia. Mas a pouco e pouco o rosto de Heitor vai-se mutando, a sua pose imponente encolhe-se diante do olhar desafiante de Aquiles e do nada desaparece. No seu lugar, para desespero e espanto até dos deuses, surge Páris, o polémico, o assustado, o medroso, o rasteiro Páris. Tróia sabe que está perdida porque nem uma flecha envenenada e descontrolada, até pelos deuses, alcunhada de Pepe pode mudar o destino da história. Aquiles sabe-se, sente-se e é, verdadeiramente, invencível. O Bernabeu troiano é incapaz de lhe encontrar o calcanhar.
Quando Bill Shankly, filho da mitologia céltica mais do que da esmerada escrita homérica, disse que o futebol é mais do que a vida e a morte não podia estar mais certo. A Europa deixou de lutar entre si no campo de batalha e deixou os duelos medievais, feudais, nacionais para os campos desportivos. O futebol apropriou-se dessa gesta e fez dos seus os Lancelots, Césares, Napoleões, Marlboroughs do presente com os seus feitos a serem cantados como se de um verdadeiro herói clássico se tratasse. Mas até Homero, que sabia que o homem era tão cinzento como os deuses, sabia que há personagens fadadas a serem os maus da fita, aqueles a quem o caracter falha no momento decisivo.
O seu Páris troiano tinha tudo para não ser o que se tornou, esse arqueiro implacável e rasteiro incapaz de olhar diante de Menelau e Aquiles nos olhos e defender o seu estandarte. José Mourinho transforma-se jogo após jogo contra os mirmidões catalães no Páris contemporâneo. A forma como empequenece diante do exército rival é só comparável com o medo agónico do príncipe troiano de Homero. No último duelo, esse enésimo clássico a que estamos condenados a voltar, mês atrás de mês, pela evidente superioridade de gregos e troianos sobre os demais, essa realidade voltou a ser, por demais, evidente.
O homem que espantou a Europa com os seus legionários azuis e que já ensaiou a guerrilha de Viriato de neruazurri com grande sucesso é incapaz de dar a volta á história e fazer de Tróia um bastião vencedor. Porque parte para o campo de batalha com a derrota escrita a sangue nas costas, no olhar, no coração. O calor do Bernabeu é incapaz de lhe devolver o sangue ás veias e como um réptil se comporta, sibilino, rasteiro e condenado a ser cortado em dois. O seu 4-3-3 que se transformou, pateticamente, num 5-3-2 á medida que o tempo discorria, transparece bem a facilidade com que o Real Madrid deixa de ser Heitor e se transforma em Páris quando em lugar dos Ajax, Menelau, Ulisses e companhia se lhes aparece á frente o Aquiles azulgrana, implacável e abençoado pelos divinos, até os mais neutrais.
Para o Real Madrid de Mourinho o Barcelona tornou-se na lembrança divina de que há formas e formas de jogar futebol, todas elas meritórias. Mas que só uma forma definitiva de sair derrotado: prostar-se desde o primeiro suspiro. O golo de Cristiano Ronaldo (no seu melhor jogo de sempre contra os azulgrana) de nada serviu porque o homem que custou 100 milhões de euros foi forçado a jogar de ala defensivo durante mais de uma hora, preso ao chão pelo seu amedrontado general. Alinhar três dianteiros e depois abandoná-los a um massacre implacável é talvez o acto mais rasteiro que pode conceber um treinador. Benzema, Ronaldo e Higuain foram abandonados como náufragos enquanto os restantes marinheiros cerravam filas, como as caravanas, com os imponentes e esbeltos índios a cercarem-nos impiedosamente. Guardiola, igual a si próprio como Aquiles na arena, limitou-se a confiar nos seus. E isso basta-lhe neste duelo porque já nem a excelência (que não a houve) é necessária para suplantar o amedrontado Páris e os seus sequazes.
Futebolisticamente o Real Madrid continua sem se comparar ao Barcelona pura e simplesmente porque nem apresenta batalha. Várias vezes nos últimos nove duelos os merengues limitaram-se a não jogar e a não deixar jogar esperando que a sorte de uma flecha envenenada - como em Valencia - fizesse o resto. Grande contra os pequenos, pequeno contra os verdadeiramente grandes, estes troianos estão condenados ás chamas da história. A pequenês de grandes como Casillas e a barbárie de primatas como Pepe espelha bem o desnorte mental de uma equipa que olha para o seu Heitor á procura de um gigante e encontra um Páris empequenecido pela realidade. Do outro lado Aquiles e os seus já estão saciados. Até ao próximo confronto!
Na imensa distância do lar o futebol joga um papel tão importante na inclusão social como qualquer outro ritual urbano moderno. Tim Parks, jornalista inglês radicado em Itália, sentiu-o desde o primeiro momento e durante 20 anos manteve-se profundamente apaixonado por um clube que não lhe dizia absolutamente nada. Dessa história de amor nasce um livro de viagens, de reflexões e de amor sobre um clube que funciona perfeitamente como o espelho do amor por um jogo inimitável.
Quando Tim Parks chegou a Verona o clube local não era mais do que um de um mar de entidades que lhe eram totalmente desconhecidas. Vinte anos depois tornou-se numa paixão absoluta, num leit motiv perfeito para deambular pela essência do adepto de futebol.
A Season With Verona é um dos livros mais apaixonantes alguma vez escritos sobre o mundo do futebol porque se centra nessa figura ambigua, apaixonada e intensa que é o adepto. Ao contrário de Fever Pitch, longa e romântica história de amor ao clube de infância, nesta obra temos um emigrante que descobre na cidade de acolhida um clube com quem cria um laço que reflecte a sua relação com a sua nova comunidade. A ponto de se tornar no motivo perfeito para o seu livro.
Park decide escrever um diário pessoal e único sobre uma temporada completa do Hellas Verona. Em cada capitulo descreve um (ás vezes dois) jogos que assiste piamente, semana atrás de semana. Viaja do extremo sul do país até à zona mais a norte, dos Alpes ao estreito de Messina e sempre com o pensamento gialloblu no coração. Nas suas peregrinações faz-se acompanhar dos adeptos mais ferrenhos, a celebre Brigatta - uma das mais icónicas claques italianas - mas também dos jogadores e staff directivo, outros jornalistas italianos e até mesmo de velhos companheiros de luta. De autocarro, avião ou comboio sem esquecer as caminhadas a pé à volta do Bentegodi, santuário local do Hellas, respira-se futebol em cada letra tipografada com a retundância de um remate que cheira a golo. O livro começa no inicio de uma época cheia de interrogações e termina com o drama de um play-off que determinará o futuro da equipa. Um projecto desportivo que não deixa de ser icónico tendo em conta que o Verona é um dos muitos pequenos-grandes italianos que povoam a rica Serie A, com um historial polémico às costas e com um titulo, logrado em 1985, no único ano em que o Calcio esteve, verdadeiramente, limpo.
A obra do autor britânico permite explorar não só o universo futebolistico do clube (as tácticas, as incorporações, os veteranos no plantel) mas sobretudo o espelho social de uma cidade conhecida pelo seu pensamento conservador de extrema-direita e que usa o calcio para fazer-se ouvir um pouco por todo o Mundo. O sucesso do Hellas é, para os veranoeses, algo de que orgulhar-se.
Nada escandaliza em A Season With Verona porque tudo é profundamente genuino. Os sucessivos insultos aos clubes do sul, a luta entre claques, as cargas policiais e as suspeitas de jogos comprados, a droga, a prostituição e o submundo de clubes comprados e vendidos longe do coração das bancadas, sempre despertar na Curva.
Os habituais seguidores destas lides recordam-se bem dessa equipa de Elkjaer Larsen de 1985, um fantasma omnipresente nas alcunhas de muitos dos adeptos que vão fazendo parte desta história, mas esta obra é profundamente moderna porque anuncia já, de certa forma, o ocaso da Serie A antes que este fosse verdadeiramente oficial e, sobretudo, o fim de projectos de sucesso onde o papel do adepto se sobrepõe ao do proprietário. Se a obra segue o estado de ânimo de um adepto que reflecte o sentimento comum também é verdade que nos deixa pistas sobre a gestão profissional dos clubes, a relação (ou ausência dela) entre os jogadores e os fãs e sobretudo o papel de uma direcção que transformou ma entidade desportiva num negócio, espelho fiel de 99% dos clubes profissionais dos nossos tempos.
Deambular por Itália ao sabor do grito das Brigatta não só motiva Tim Parks a explorar a sua escrita mais ousada como dá ao leitor um fidelissimo retrato do que é o sentimento futebolistico do povo italiano, de norte a sul, de carro ou a pé, num domingo pela tarde ou num triste sábado à noite. Imaginamos o cimento das bancadas, as letras dos cartazes, as cores garridas nas camisolas, os adeptos a gritar a uma só voz...a essência do adepto sente-se, profundamente, a cada virar de página.
Há clubes dificeis de entender, de explicar. Cada país tem o seu. A grandeza que os rodeia perdoa muitos dos seus erros mas os dramas e surpresas que nos reservam garantem-lhes uma condição sui generis. Em Inglaterra nenhuma instituição se aproxima tanto desse ideário como o Newcastle United. Depois de uma década de atracção de feira, cheia de altos e baixos, os Geordies parecem finalmente a começar a levantar a cabeça. Ecos de um passado não tão distante relembram-nos que a magia de St. James´s Park continua viva debaixo do primeiro orvalho da manhã...
Ainda não atingiram o brilhante do projecto de Keegan e Dalglish de meados dos anos 90.
Aquela equipa jogava um futebol de ataque impensável para os dias de hoje. Impensável para os dias de então. Protagonizou algumas das noites mais espantosas da história do futebol inglês (os duelos com Liverpool e Manchester United tornaram-se clássicos únicos) e apesar de terem falhado por duas vezes o titulo, esse que tanto lhes escapa, ficaram para a posteridade como algo realmente especial. Equipas como o Newcastle são assim. Deslumbram mais vezes do que ganham, dramatizam mais vezes do que perdem. Em quinze anos os Geordies já souberam a que sabe o inferno, já voltaram a provar uma delicia do céu e agora, aparentemente, dedicam-se a desfrutar do carpe diem. A vida corre-lhes bem.
Depois de alguns anos em que a magia de St. James´s Park se esfumou diante dos seus, com os milionários projectos do clube a transformarem-se num quebra-cabeças desportivo e financeiro, esta época a alegria voltou ao rosto dos veteranos adeptos, daqueles que conhecem a realidade do clube antes do dinheiro da Premier ter chegado e com ele a ilusão de poder sonhar com algo grande.
A vitória por 3-0 diante do Manchester United, no passado 4 de Janeiro, não foi só um exemplo perfeito de que esta equipa está preparada para grandes noites. Foi também uma doce desforra contra o clube que impediu o sonho geordie há tantos anos atrás. E que agora entrou, também, num perigoso túnel escuro. O triunfo seguiu-se a um empate na primeira volta, em Novembro, em Old Trafford. Há largas épocas que o Newcastle não lograva ultrapassar os dois jogos contra os Red Devils sem uma só derrota. Sinais dos tempos. A equipa já perdeu duelos directos contra Manchester City, Chelsea e Liverpool mas em 20 jornadas os Geordies somam apenas cinco derrotas, os seus melhores números em muito tempo. Por isso cavalgam surpreendentemente em séptimo lugar, a apenas quatro pontos da Champions League.
O sucesso desta primeira metade de temporada do Newcastle deve-se, quase em absoluto, ao trabalho de Alan Pardew.
O técnico chegou a meados da época passada, substituindo Charles Hughton, o homem responsável pelo regresso à Premier League. Sem dinheiro para gastar, sem Andy Carroll (vendido ao Liverpool poucos dias depois da sua chegada ao banco) o técnico inglês construiu pacientemente uma equipa de trás para a frente, trabalhando sobretudo a solidez defensiva, grande lacra dos Geordies na última década. Confiou no holandês Tim Krul para a baliza - ele que está a ser um dos nomes próprias desta temporada - e numa linha de quatro com Simpson, Collocini, Ryan e Stephen Taylor (agora lesionado e substituído pela promessa italiana David Santon). O ataque foi entregue ao promissor diante senegalês Demba Ba, um dos goleadores mais eficaz das ligas europeias nesta temporada, apoiado nas alas pelo francês Obertan (depois da experiência falhada em Old Trafford) e pelo irlandês Leon Best.
Mas foi no miolo que realmente Pardew introduziu mudanças significativas que transformaram o Newcastle numa equipa sólida, cómoda com a bola nos pés, fiável nas transições e, sobretudo, com a maturidade para sofrer 90 minutos sem perder a concentração. A chegada de Yohan Cabaye, peça nuclear no titulo do Lille de Rudi Garcia, permitiu esse plus de classe no meio-campo, algo de que o Newcastle carecia há largas temporadas. O francês transformou-se naturalmente no líder do projecto e a sua contribuição, flanqueada pelo imenso trabalho defensivo de Jonás Gutierrez e Cheick Tioté, revelou-se determinante.
Com mais de meia época cumprida o Newcastle sabe que o mais difícil está por chegar. O excelente arranque de época elevou as expectativas ao máximo mas o desmantelamento do chamado Big Four (Man Utd, Chelsea, Liverpool e Arsenal) este ano é mais claro do que nunca com as campanhas de Manchester City e Tottenham Hotspurs a fecharem a qualquer outro projecto a entrada nos postos europeus. Dentro dessa realidade os Geordies conhecem as suas limitações e sabem que a Europa é uma ambição complicada por muito que a tabela classificativa diga o contrário. O papel de Demba Ba tem-se revelado fundamental mas a sua partida para África, onde disputará durante um mês a CAN, não augura boas noticias. A falta de liquidez financeira impede Pardew de procurar no mercado alternativas e o curtíssimo plantel permanecerá assim até Junho. Ba foi responsável por 13 dos 29 golos da equipa e na linha ofensiva só Shola Ameobi com um e Leon Best com três já marcaram esta época.
No entanto nem tudo são más noticias. Pardew confia que Sylvan Marveaux, mentor do Rennes na passada época e parceiro preferencial de Cabaye, esteja apto para voltar ao onze. Será uma adição superlativa que permitirá, sobretudo, um plus de qualidade que fará falta nos momentos mais tensos da época. Esperando ultrapassar os dois primeiros meses do ano por dificuldades, a equipa acredita que mais do que o sucesso imediato, se começam a construir as bases para um futuro mais sorridente. Os Geordies que rumam religiosamente a St. James´s Park sentem de novo a confiança no ar. E continuarão a marchar...
Há algo nos pés dos jogadores canários que se assemelha à calma das ondas quando se aproximam das ilhas que África perdeu há tantos milhões de eras atrás. A areia fina escorre pelos pés e dá forma à chuteira, a bola desliza suavemente a cada golpe e o momento de génio, mesmo antes da decisão, permite guardar na posteridade um riso no olhar. Nessa escola perdida e imemorial, a de Silva e Valeron, vive agora o talento de Jonathan Viera, um filho da areia com os olhos perdidos no tempo.
Aos 22 anos para muitos surpreende que um génio consumado como Viera ainda durma tranquilamente na sua casa de familia em Las Palmas.
Afinal será verdade esse mal-dito bem castelhano que faz referência ao que de fora é melhor, ao de casa desconfiar? Poucos motivos mais há para entender que nenhum dos 20 clubes da Liga BBVA tenha decidido a arriscar-se aos pés de um jogador chamado a marcar uma era nessa evolução histórica do futebolista canário. Desde há várias décadas que das ilhas atlânticas saem jogadores distintos, de fino corte, capazes de romper com o expectável. Assim era Juan Carlos Valeron quando na Coruña, esse outro rosto do Atlântico, se emergiu em figura superlativa do futebol técnico made in Spain. Assim é, agora, esse génio indomável David Silva, a quem Mourinho não quis, a quem Guardiola não confiou e que em Manchester começa a causar um impacto tão lendário no City como Cantona logrou com o United há vinte anos atrás.
Viera pertence a essa escola, não precisamos de mais de 15 minutos para sabê-lo com certeza (aos 10 já o desconfiávamos), e isso significa que no seu jogo vem o bom e o mau, as noites perdidas em festas nas ruas quente de Las Palmas e os golos e passes impensáveis que destila cada vez que sobe ao relvado. A sua história não é tão diferente dos demais.
Depois de uma infância como estrela consumada do futebol juvenil da ilha de Las Palmas, aos 16 anos Jonathan Viera ingressou definitivamente nos quadros da UDLP, passando a fazer parte da equipa B onde começou a despontar às poucas semanas de aterrar. Sem grande velocidade nas pernas, é a visão de jogo e o poderoso remate que surpreende a mais concentrada defesa que lhe permitiram destacar sobre os demais. Em dois anos tinha cumprido com a sua formação e foi ascendido, inevitavelmente, à equipa principal. As ilhas viviam a euforia do regresso à Liga, com o Tenerefe, mas o clube de Santa Cruz não tinha um jogador com ele o destino dos azulones tornou-se inevitável. O de Viera começava a desenhar-se.
A partir de 2010-11 a sua presença na primeira equipa dos canários tornou-se regular e fundamental.
O clube islenho aguentou a competitividade da Liga Adelante, quando todos o condenavam à despromoção, e os golos (6) e assistências (7) de Viera revelaram-se decisivos nos momentos mais apertados da temporada. A forma elegante como caminhava pelo terreno de jogo, cabeça erguida, olhos na bola, davam-lhe esse traço distintivo que só os jogadores superlativos conseguem transmitir. Mas os relatórios dos olheiros que viajavam semana sim, semana não à ilha traziam também referências sobre a sua vida nocturna, as suas poucas ânsias de deixar a casa dos pais, essa tradição familiar tão omnipresente no historial espanhol. E o ano passava e as chamadas à direcção continuavam omissas, guardadas numa caixa de pandora de futuro. Viera ficou mais um Verão mas com a sua estreia pela selecção nacional sub-21, em vésperas do seu novo titulo europeu, deram-lhe um protagonismo extra que só o parece ter motivado ainda mais.
2011-12 arrancou e ainda só vai a meio mas os números do médio já igualam todo o seu registo da temporada passada. Viera é mais certeiro diante das redes, mais arriscado no último passe, mais rápido na condução de jogo e os relatórios da noite começam a perder força, talvez depois de o seu idolo David Silva, essa inspiração diária, ter passado pelo mesmo na sua etapa em Valencia, nesse seu fascinio pela festa que fez com que tanto Mourinho como Guardiola dissessem não e os milhões do City um gritante sim.
A esmagadora maioria dos analistas da liga espanhola sabem que este é o último ano de Viera em casa. Tanto o Villareal como o Valencia já fizeram saber do seu interesse no jogador. Do estrangeiro, talvez inspirados pelo sucesso esmagador do futebol espanhol, começam a chegar ofertas truculentas. Viera joga com a fome de quem sabe que o relógio anda a passe acelerado. Talvez por isso jogue cada vez noutra dimensão, nessa esfera de tempo onde só os eleitos têm direito a estar.
O Ballon D´Or é um abrumador banho ao ego. Qualquer prémio individual num desporto colectivo acaba por sê-lo, seja por factos objectivos (golos, assistências, defesas) seja pela opinião alheia. Em Barcelona, talvez a equipa mais coral da história, sobrevive apenas um ego. O que sobe ao estrado para recolher a nome individual o prémio que Guardiola insiste no balneário que é de todos. Como Platini antes dele, Lionel Messi é o rosto do valor colectivo e o espelho de uma era.
Muitas criticas receberam os directivos da publicação France Football quando Michel Platini foi fotografado com o seu terceiro Ballon D´Or consecutivo. Apesar de ser indesmentível que o francês era, por direito próprio, o jogador da sua época, muitos apontavam o dedo ao favoritismo nacionalista da publicação (afinal ele era o orgulho francês) e a falta de critério num prémio que não se decidia sobre se votavam no melhor ou no que fosse o protagonista principal do melhor ano. Platini tinha vencido nessa época (1985) a sua única Taça dos Campeões Europeus, onde apontou o golo decisivo nessa tarde para nunca esquecer em Bruxelas, por outros e muito mais sérios motivos. No ano anterior tinha sido a vitória superlativa no Europeu a justificar a atribuição do galardão. E em 1983, quando abriu a sua série, ficou no ar a ideia de que, simplesmente, era uma compensação por ter perdido o prémio no ano anterior para Paolo Rossi depois de realizar um notável Mundial em Espanha. Foi a última vez.
Depois de Platini surgiram jogadores que a história certamente colocará no seu devido lugar e alguns deles (Marco van Basten, Ronaldo, Ronaldinho, Zinedine Zidane) possam até ser considerados como superiores ao gaulês. Mas exceptuando o bailarino holandês (não de forma consecutiva), nenhum deles venceu por três vezes o galardão que qualquer futebolista ególatra gostaria de receber.
O Ballon D´Or é o que sempre foi, um prémio ao individuo num desporto onde este, para ser alguém, tem de saber estar ao serviço do colectivo. Valorizam-se os troféus ganhos pelos jogadores quando estes realmente são ganhos pelas equipas. Salientam-se as estatisticas individuais quando passa desapercebido que atrás de cada golo há um passe, atrás de cada assistência há uma recuperação e por cada finta genial há, de certa forma, o trabalho de outros 10 que possibilitam o tempo e espaço necessário para brilhar. Há jogadores que nunca ganharam ou ganharão um troféu destas características porque não entram nesse leque de egos no qual o futebol tanto gosta de se apoiar. E há outros que nunca ganharão prémios suficientes para aplacar o seu imenso ego. Messi é um deles.
O argentino sabe que na história do FC Barcelona nunca nenhum jogador teve tanto poder.
Pode passar desapercebido mas o papel de Messi no balneário do Camp Nou é superlativo. Foi à volta dele que Guardiola decidiu montar o seu projecto depois de obter da Pulga a concordância com um novo estilo de vida longe dos perigos da noite, da droga e do álcool onde começava a mergulhar. A partir dessa reunião Messi renasceu como jogador e Guardiola conseguiu o que necessitava. Dos velhos lideres do balneário, os homens da casa, como Xavi, Iniesta ou Valdés conseguiu o consentimento absoluto para as liberdades individuais de um jogador que, desde o primeiro momento, aprendeu a valorar o conjunto. Nesse aspecto a grandeza de Messi é inquestionável e aproxima-o muito mais aos grandes.
Platini soube sempre, mesmo debaixo do seu ego, que o seu triunfo era o de Tigana, Giresse, Girard, Rocheteau, Boniek, Scirea e companhia. Ele era o rosto, as mãos que recolhiam um troféu que existia por todos. Messi sabe-o e demonstra-o.
Guardiola podia ter optado por uma luta de egos porque seguramente a Andrés Iniesta, Xavi Hernandez, Gerard Pique, Victor Valdés, David Villa e até mesmo Samuel Etoo e Zlatan Ibrahimovic, poderiam reclamar muito mais protagonismo do que alguma vez tiveram. Os dianteiros foram afastados por isso mesmo, os restantes foram, de certa forma, forçados a aceitar como reconhecimento os triunfos colectivos, mesmo que os seus currículos superem os do próprio Messi com esses títulos de campeões da Europa e do Mundo com a Espanha que Messi nunca logrou emular nem de longe nem de perto. Por pertencerem a essa casta coral, é mais fácil para Xavi - dono de um ego descomunal que utiliza, como Guardiola, não para recolher prémios mas para se tornar numa espécie de guru da filosofia blaugrana - e Iniesta suportarem o sucesso de um colega e amigo do que para Messi ver-se superado individualmente por um colega que fez tantos ou mais méritos para ser considerado isso de melhor. Secretamente Guardiola, que viveu os dias complicados do Dream Team com Laudrup, Koeman, Stoichkov e Romário em eterna disputa, desejaria que Messi vencesse sempre, Xavi e Iniesta se contentassem com as nomeações e os pódios e todos felizes e contentes. Parte da sua labor está em manter esse equilibrio da mesma forma que van Basten foi eleito símbolo do AC Milan de Sacchi, que Cruyff representou o Ajax e a Holanda de Michels, que Beckenbauer (e não Muller) foi a cara do Bayern e da RFA ou que Platini representou o perfume do futebol champagne gaulês. Para um grande projecto, um só rosto, nenhuma luta (visivel) de egos e um bilhete para posteridade.
Este troféu - talvez o mais merecido dos três que já ganhou - confirma Messi e este Barça nesse planeta especial onde jogadores que pensam exclusivamente no ego individual nunca conseguirão estar. O génio individual de Ronaldinho, Cristiano Ronaldo, George Weah, Rivaldo ou Hristo Stoichkov é premiado ocasionalmente pela sua inevitável grandeza (da mesma forma que há prémios que só se explicam pelo "momento" em questão como os de Owen, Nedved, Cannavaro, Kaká ou Sammer) mas torna-se dificil repetir-se porque não assenta nesse espírito colectivo que é o que permite establecer esse porta-estandarte. Zidane, Figo e Ronaldo vencerem Ballon D´Ors ao serviço do Real Madrid mas nunca por estar a jogar de branco mas sim porque quem eram no panorama internacional. Este Barcelona optou por outro caminho, o de concentrar todos os focos num dos seus génios mais expressivos e guardar para o segredo do balneário as verdades sobre o real valor de cada um. Como a história já demonstrou, esse foi sempre o caminho dos grandes projectos, das grandes gestas. O triunfo do ego único para a sobrevivência do colectivo.
O ultimo suspiro real do poder futebolistico regional espanhol viveu-se na dobragem do cabo da década de 90. Antes do apogeu do projecto que Augusto César Lendoiro preparava na Coruña, o último grito de guerra dos pequenos chegou da Mancha mais profunda, com esse cheiro a pasto queimado pelo sol, a terra pisada com amor, a queijo mecanizado pela vontade indómita...
O sonho terminou em 1992. Mas enquanto durou foi verdadeiramente épico.
Andrés Iniesta, o pequeno Andrés Iniesta, cresceu na modesta Fuentealbilla a admirar profundamente aquela equipa de branco e negro de que hoje é dono. As voltas do destino. Um pequeno filho da terra elevou à glória o destino de uma nação que durante alguns anos viveu apaixonada pela qualidade do futebol que fazia do Carlos Belmonte um destino obrigatório para qualquer peregrino à procura da novidade.
Durante três temporadas o "Queso Mecânico", essa alcunha tão manchega como holandesa, foi o projecto de moda do futebol espanhol. Durou até onde podia durar, até à inevitável saida do seu técnico, ao desmembramento de um plantel sem estrelas mas com um elemento de união irrepetível e, sobretudo, até ao fim do apogeu do futebol regional de um país que em poucos anos deixaria de ouvir a bola rolar em Logroño, Burgos, Compostela, Alicante, Extremadura, Soria ou Albacete. O preço do sucesso da Liga de las Estrellas foi o fim do futebol regional. As equipas com dinheiro, as que podiam entrar a jogo, começaram a despontar nos grandes núcleos urbanos e a incapacidade dessas capitais de provincia de atrairem jogadores e patrocinadores pautou o principio do fim. Hoje, vinte anos depois, o Villareal é de certa forma o espelho rebelde desse mundo mas ninguém esquece que metade das equipas da liga espanhola joga à volta do circulo urbano das quatro cidades principais do país (4 em Madrid, 2 em Barcelona, 2 em Valencia e 2 em Sevilla).
A épica do Queso Mecânico arrancou nas divisões inferiores com a chegada de Benito Floro.
O jovem técnico (tinha apenas 29 anos quando pegou na equipa) era um verdadeiro estudioso do jogo, especialista em desbloquear jogos desde o banco, perito em armar golos de lances de bola parada e, sobretudo, com uma concepção atractiva do futebol que encantou a modesta afficion do Alba. Depois de subir em 1992 à Primeira Divisão espanhola, o Albacete surpreendeu tudo e todos ao realizar uma primeira época memorável que os deixou a só a um ponto de marcar presença nas provas europeias.
O Carlos Belmonte viveu noites épicas como a goleada histórica frente ao Athletic Bilbao (4-0 com três golos em cinco minutos antes da primeira parte) e o triunfo frente a um Atlético de Madrid de Paulo Futre que ainda ambicionava ainda disputar o titulo a Barcelona. Floro acreditava piamente na importância do trabalho de laboratório e o resultado era evidente. Um terço dos tentos apontados pelo clube durante a temporada resultaram como consequência de lances estudados onde predominava a figura decisiva de Zalazar.
O capitão uruguaio, antiga estrela do Cádiz (outro projecto heróico regional dos anos 80), era a alma, coração e cerebro de uma equipa sem nomes sonantes mas com várias promessas às quais Benito Floro soube sacar o máximo rendimento. O papel de Zalazar como médio mais ofensivo dava um plus de força e dinamismo à movimentação colectiva e permitia um jogo com dois avançados em constante movimentação (António, o Toro Aquino ou a jovem promessa Ismael Urzuaiz) e um posicionamento defensivo impecável do tridente de médios que actuava atrás do capitão, habitualmente composto por Soler, Menendez e Juarez.
O sucesso da campanha inaugural do Albacete na primeira viu-se interrompido pela surpreendente noticia que marcou o Verão de 1993. O Real Madrid, destroçado pelo Barcelona de Johan Cruyff e pelo Atlético de Gil y Gil, procurava alguém capaz de dar a volta a uma situação complexa que implicava uma profunda regeneração do plantel onde ainda predominava essencialmente a velha guarda da Quinta del Buitre. Floro foi o homem escolhido, na ascensão mais meteórica que o futebol espanhol conheceu, e apesar de ter perdido o titulo na última jornada em Tenerife (e por consequência não ter renovado), venceu a última Copa del Rey até à época passada e bateu o pé àquela que então era considerada, de forma unânime, como a melhor equipa do Mundo. Por outro lado o Albacete manteve-se fiel a si mesmo. Sem o seu timoneiro (com Victor Esparrago no seu lugar) o clube manteve-se cinco épocas mais na elite e em 1993/94 logrou mesmo chegar até às meias-finais da Copa del Rey, perdidas contra o Valencia.
O ocaso do Queso Mecânico significou uma profunda mutação do jogo no país vizinho. Se é verdade que durante os anos seguintes continuariam a existir equipas modestas capazes de entusiasmar uma afficion neutral (Deportivo, Celta de Vigo, Deportivo Alavés, Villareal, Getafe), nunca produziu o efeito surpresa de um projecto construido com meia dúzia de pesetas e um visionário capaz de ver um oásis onde outros apenas imaginavam um deserto. O regresso do Albacete à ribalta (por culpa da sua presença nos Oitavos da Copa del Rey, pela primeira vez em 18 anos) dificilmente prenuncia um regresso às origens mas serve para relembrar ao futebol espanhol que há vida (ou havia) para lá do habitual e enebriante duopólio Barça-Madrid, hoje mais sentido do que nunca.