Os filhos do Mediterrâneo profundamente católico aprenderam ao longo dos tempos a celebrar o dia do santo de quem herdaram o nome da mesma forma que celebram o seu próprio dia de aniversário. Talvez hoje existam muitos Andrés por esse lago fora a receber felicitações. A nossa vai para um santo muito especial, um homem que, em retrospectiva, foi provavelmente o melhor jogador de futebol que passou pelos relvados desse Mundo fora na última década. San Andrea...Pirlo!
Na passada noite nem o frio deixou em casa os mais incautos, desejosos de ver mais um duelo santoral, um verdadeiro confronto entre santos do Norte e do Sul desse país único e inexplicável que é Itália. O San Gennaro local, essa aura de invencibilidade que rodeia a equipa napolitana de Walter Mazzari, defrontava o San Andrea que o norte aprendeu a venerar nos últimos 10 anos. O santo de Pirlo, o arquitecto perfeito.
Hoje todos falam de Xavi e do Barcelona como a sumula perfeita do futebol de toque, da visão e leitura de jogo mas esses são os que se esquecem que o médio catalão - pretendido em 2003 pelo AC Milan de Ancelloti - foi um dos jogadores mais assobiados do Camp Nou até que em 2005 o talento de Ronaldinho iniciou uma mutação histórica na vida do conturbado Barça. Se o final da década confirmou o génio do filho favorito de Terrasa, os dez anos que definiram o arranque do novo milénio pertenceram totalmente a Andrea Pirlo.
O italiano pode não ter sido o jogador mais espectacular da década (esse titulo será eternamente de Ronaldinho) mas foi certamente o mais genialmente regular futebolista que os campos de futebol viram nos últimos dez anos. Aos títulos colectivos faltaram os individuais - mas nisso Pirlo, como Xavi, pertence a outro tipo de jogadores, muito menos preocupados com as capas de jornais - para que o grande público se desse realmente conta da sua importância. Porque Pirlo definiu o futebol de um país de uma forma que poucos jogadores podem reclamar.
Aprendeu dos melhores, criou expectativas como nenhum outro futebolista italiano nos últimos anos e teve de viver uma mutação táctica que o transformou num futebolista único e especial. Do Brescia à Juventus sentiu na pele o que é ser parte do esqueleto futebolístico de um país e agora, no ocaso da sua carreira, demonstra ter finalmente superado todos os fantasmas dos seus antecessores directos.
Assistir aos jogos da Juventus de Conte, como o disputado no San Paolo - aqui os santos estão por todos os lados - é um desses prazeres futebolísticos que o cinzento Calcio sempre guarda na manga. Sabendo que Pirlo está em campo transmite uma tranquilidade única que deita borda fora qualquer preconceito. O técnico bianconero montou o seu projecto à volta do genial centro-campista e logrou em três meses o que a Vechia Signora não conseguia desde os dias de Marcello Lippi: encantar.
Pirlo pensa, sente e ouve o jogo como nenhum outro futebolista. Enquanto alguns dos seus colegas arrancam em solos espantosos, o tempo musical de Pirlo é sempre constante, sempre intenso, sempre tranquilizante. Em Nápoles viu a sua equipa sofrer dois golos na primeira parte e arquitectou - ai essa palavra, sempre constante em cada um dos seus 507 jogos - uma reviravolta que terminou num inesquecível 3-3. Um resultado que serve perfeitamente para os transalpinos sonharem com um regresso aos títulos. Titulos é algo que não faltam no curriculum de Pirlo. Não só ao serviço do AC Milan (duas Champions, dois Scudettos) mas também com a Itália. Apesar do génio individual de Del Piero e Totti, apesar do Ballon D´Or de Cannavaro, a Itália de 2006 define-se num só jogador: Pirlo.
Quando o médio surgiu, a finais dos anos 90, ao serviço do modesto Brescia, todos elogiavam o futuro sucessor de Del Piero como o trequartista que iria continuar a saga de sucesso dos números 10 à italiana. O seu impacto no futebol de formação italiano foi tal - e nessa altura a Itália jovem era tremenda - que levou o Inter a resgatá-lo ao seu primeiro clube. Mas esses eram os dias da esquizofrenia morattiana e Andrea nunca sentiu a comodidade necessária a quem precisa de tempo e espaço para trabalhar. Em 2001 apareceu o AC Milan com um projecto de futuro e o jovem trocou o azul pelo vermelho do equipamento e continuou a sua formação. Dois anos depois, com Ancelloti como mentor, a sua mutação táctica tinha terminado. Jogar ao lado de Rui Costa (e mais tarde Kaká) permitiu-lhe trabalhar mais o sentido posicional do seu jogo e a pouco e pouco abandonou o histórico espaço do trequartista para dictar o tempo do jogo sobre a linha do meio-campo. E a definir-se como o jogador completo.
A destreza de Pirlo com a bola só é equiparável à sua capacidade de jogar sem ela.
Poucos jogadores sabem preencher os espaços defensivos como o filho de Flero, uma dessas pequenas localidades lombardas perdidas entre a bruma e o verde que descansam aos pés dos Alpes. A evolução táctica de Pirlo, da frente para trás, permitiu-lhe ampliar a sua visão de campo, a conectar directamente com a primeira linha defensiva e a saber manobrar, a régua e esquadro, os ritmos de jogo da equipa. Uma equipa que conta habitualmente com Pirlo e subitamente vê-se sem ele sente rapidamente a diferença. No AC Milan actual, de onde o jogador saiu depois de duas épocas onde sofreu, fisicamente, uma série de sete anos irrepetíveis (e desgastantes) não há quem pense o jogo com critério e a bola voa sem parar para dizer olá. A Juventus, espessa e impessoal como poucas equipas sobre o mandato de Del Neri ou Ferrara, é agora um conjunto tão resplandecente como a primavera italiana.
Ao contrário de Xavi, um playmaker clássico com uma vocação profundamente ofensiva, o médio italiano sente-se igualmente cómodo a atacar e defender. Com e sem a bola nos pés. Os seus passes são habitualmente letais mas os seus desarmes, tacklings controlados ao milésimo exacto, são igualmente fascinantes. Filho do Calcio como poucos jogadores, Pirlo agradaria tanto a Gianni Brera como a Arrigo Sacchi, os dois grandes patronos do futebol defensivo e ofensivo que transformam a liga italiana na competição tacticamente mais estimulante do Mundo. A final de Berlim - onde foi coroado como o melhor em campo - foi o exemplo perfeito da sua transmutação. Durante 120 minutos foi o futebolista total, algo que os franceses nunca conseguiram encontrar nem em Vieira, nem em Zidane, excelentes e únicos na sua posição mas incapazes de desdobrar-se em dois. Com Pirlo a Itália de Lippi jogava sempre com 12 no terreno de jogo. E esse é o melhor elogio que se pode fazer a qualquer jogador.
Os italianos têm sido habituados nas últimas décadas à eterna guerra entre os operários e os artistas, as prima-donas e os camponeses dos relvados. Um futebol onde por cada Baggio há um Baresi, por cada Totti um Gattuso. Com Pirlo não há discussão porque ele é a súmula perfeita de todas as grandes qualidades do futebolista transalpino. Profissional até à medula, não precisa de encarnar um ideal nacionalista como é habitual no discurso dogmático do genial Xavi Hernandez. Eficaz ao mesmo tempo que espectacular, determinante ao mesmo tempo que é low profile, Andrea Pirlo pode não ter sido tão espantoso como o inimitável Ronaldinho e não ter tido uma imprensa tão favorável como a que recebeu Xavi neste ocaso de carreira. Mas dificilmente encontrarão um futebolista tão completo, tão imprescindível e tão inimitável durante a década de 2000 que
Por cada estrela planetária há uma centena de jogadores anónimos para a maioria dos adeptos mas que representam muito uma pequena parte dos amantes do beautiful game. Jogadores que fintam as adversidades com o que têm e que dão o que não têm para deixar a sua marca no tempo. Gary Speed, esse incombustível herói de muitas tardes, era um desses mitos anónimos estranho para muitos, tão familiar para mim...
Não quero saber como Speed morreu. Basta-me saber como viveu, como jogou!
Ouço boatos e prefiro guardá-los no caixote, debaixo desses mais de 500 jogos que disputou na Premier League. O primeiro a lográ-lo antes de que o veteraníssimo David James lhe roubasse o recorde. Talvez o único que detinha. Como se a ele isso lhe importasse algo. Speed era a antítese do seu nome. Jogador calmo, pausado, um box-to-box profundamente vertical mas que sabia jogar com critério, que encontrava sempre o passe certo para resolver a tarde. Tinha a garra e força de qualquer galês, esse espírito de guerreiro que transportou ao longo dos seus 20 anos como futebolista profissional. Mas possuía igualmente uma inteligência de jogo que nunca foi muito comum nas ilhas britânicas, essa capacidade de ler e pensar o jogo parando o tempo e medindo o espaço. Sem ser um jogador dotado de uma grande técnica (como foi, por exemplo, Mathew Le Tissier) ou um de uma superlativa visão de jogo, encontrava sempre o tempo certo para aparecer.
Doi-me a ausência de Speed quando relembro as tardes que passamos juntos, separados por tantos kilómetros, unidos pelos raios que saiam da televisão em forma de imagem onde o redescobria de branco, azul e amarelo ao lado desse tridente histórico composto por David Batty, Gary McAllister e Gordon Strachtan. Juntos formaram o miolo do Leeds United de Howard Wilkinson, o mesmo Leeds que devolveu à glória e aos titulos uma cidade murcha desde os dias de Don Revie.
O mediatismo do triunfo foi todo para um superlativo Eric Cantona - que não suportava nem o técnico nem os colegas - mas o trabalho duro desse último ano da First Division, desse despedir de uma era, pertenceu todo a essa linha de quatro onde Batty defendia, McAllister dava o último passe, Strachan emprestava veterania e Speed, um jovem Speed, estava por todos os lados. Esse titulo foi o primeiro e também o último da sua carreira. E no entanto a sua vida, de bola nos pés, estava apenas a começar.
Quando essa equipa histórica do Leeds se desfez (até que chegou O´Leary e a sua promissora juventude) mudei-me com Speed para Goodison Park onde o seu talento foi confirmado e reforçado. Capitão ao segundo ano no histórico conjunto dos Toffees, o galês encarnou à perfeição o espírito combativo de Howard Kendell mas foi com o treinador que começaram as desavenças que, em 1998, o levariam a norte a juntar-se ao projecto quase megalómano do Newcastle de Kenny Dalglish. Depois da ressaca da era Keegan (com dois titulos perdidos perto do fim), o técnico escocês procurou alguém que tivesse a calma necessária para trazer estabilidade a um onze demasiado balançado para a frente. Mas com a saída de Kenny e a chegada de Gullit e o seu "sexy football", o papel de Speed em St Jame´s Park, onde era mais um operário no meio de uma constelação de egos, viu-se relegado para um injusto segundo plano que pautou toda a sua passagem pelo Tyneside.
Como sempre - e como sucedia nos seus dias com a camisola vermelha de Gales ao lado do flamante Ryan Giggs com quem combinou sempre tão bem, e tão sós estiveram - lutou, impôs-se, brilhou sem ser espectacular, foi visto e deixou-se ver com remates colocados de segunda linha, livres directos implacáveis e um pulmão inesgotável.
Quando a sua etapa em Newcastle chegou ao fim, nova viagem e lá fomos para Bolton, talvez a primeira equipa inglesa a entender o jogo continental como algo mais que uma pura excentricidade. Speed foi contratado pela experiência mas, sobretudo, pela calma que transmitia ao jogar e ao lado de Sam Allardyce. O seu impacto junto dos colegas e adeptos foi tal que a direcção o convidou como técnico interino quando o manager abandonou o Reebok Stadium. Um primeiro passo rumo aos bancos que durou pouco. A bola ainda rolava na sua mente com demasiada insistência e Speed preferiu voltar ao tapete verde do que a manter-se comodamente sentado à espera de ver os dias passar. Primeiro em Bolton e depois em Sheffield matou a fome, mas a idade (39 anos) e as dores de costas, fizeram com ele o mesmo que com outros grandes. Disse-lhe adeus mas mantive-o debaixo de olho em Brammall Lane e depois em Cardiff, onde tomou conta do destino de um histórico que desde os anos 50 não participava numa grande prova internacional. O seu trabalho como seleccionador galês foi, todos o sabemos, impecável. Pela primeira vez em mais de duas décadas, Gales baixou do número 50 do ranking FIFA e o sorteio para o Mundial do Brasil parecia levantar sustentadas esperanças de um feito histórico. Bellamy, Bale e Ramsey convidavam a isso mesmo. Speed mais.
Enquanto o mundo de futebol se dedica a homenagear, a aplaudir de pé um desses heróis esquecidos, um desses guerreiros inombráveis, eu lembro-me de Speed com a mesma clarividência com que me fui cruzando com ele. Aquele remate colocado frente ao Norwich. O golo de cabeça que desmontou a defesa do Newcastle. O tiro indefensável que deu longos pesadelos a Peter Schmeichel. Essas correrias sem fim, essas tardes de sol, essas noites de chuva, essa eterna lembrança. Os jogadores de futebol não morrem, apenas eternizam esses longos 90 minutos...
As provas europeias parecem ser, cada vez menos, coisa de ingleses. À parte do ostracismo votado à Europe League/Taça UEFA na última década, a perda de importância dos clubes ingleses na Champions League começa a ser evidente. De três semi-finalistas em 2008 podemos passar ao extremo de um só concorrente nos oitavos de final. Mais sério do que isso é a perda de competitividade dos insulares face aos seus rivais europeus, um problema que tem a sua génese não na grande competição continental mas nas entranhas da própria Premier League.
O futebol europeu rege-se sempre por fases e o periodo de predominância inglês parece estar, definitivamente, superado.
Se nos anos 80 foi necessário o desastre do Heysel para acabar com um mandato absoluto de dominio britânico entre 1977 e 1985 (sete titulos em nove anos), agora a implosão desportiva dos grandes da Premier League vem desde dentro.
Sob a ameaça da aplicação do Fair Play financeiro que continua a ser uma das grandes bandeiras de Michel Platini, os ingleses têm de decidir que caminho querem seguir. Se por um lado são um oásis nos desafios morais à hegemonia da FIFA - a questão do racismo, da corrupção e introdução de tecnologia são belos exemplos - por outro o nivel de endividamento da maioria dos clubes (da Premier e do Championship) coloca seriamente em risco o futuro de uma liga que se soube reinventar como nenhuma outra depois do Relatório Taylor e que agora vive afogada nas próprias dividas.
E no entanto a presença do Manchester United na final de Londres tapou, de certa forma, uma tendência que se vem verificando desde 2009 e que parece irreversível. A supremacia do dueto espanhol Barcelona-Real Madrid (hegemónicos em tudo, desde o dinheiro ingressado, a atenção televisiva e as propostas futebolisticas) bem como o fortalecimento claro da realidade futebolistica na Alemanha (que as campanhas exitosas de Bayern Munchen e Schalke 04) ajudam a explicar a perda de preponderância desportiva da Premier. Mas o problema é mais profundo.
A taxa de endividamento dos principais clubes ingleses é a mais alta do espectro europeu. A carteira de Abramovich e Al Mansour tem ajudado a maquilhar a desastrosa realidade financeira de Chelsea e Manchester City, porta-estandartes desta liga de novos ricos capazes de destabilizar o mercado como ninguém. Mas começa a revelar-se insuficiente para resolver todos os problemas. No caso do Arsenal, a clara perda de poder económico a que se seguiu a forte aposta na construção do Emirates (que só agora se acabou de pagar), contribuiu para a perda de poder futebolistico que passará por um natural processo de reestruturação antes de voltar à elite. E por fim, em Manchester, o histórico United continua a aparentar uma imagem invejável de saude financeira que esconde a imensa divida do império dos Glazer transportada para as costas do clube. Mais abaixo tanto Tottenham como Liverpool debatem-se com uma eventual mudança de estádio para recuperar poder económico com os rivais directos enquanto que a habitual classe média (Everton, Aston Villa, Newcastle, Blackburn Rovers, Bolton, Sunderland) conta os tostões para chegar ao fim do mês com a balança no verde. O dinheiro começa a escassear, os preços inflacionados de jogadores no mercado Premier - onde os clubes locais continuam a apostar - não parece baixar (viu-se nos casos de Adam, Henderson, Carroll, Jones, Meireles, Arteta) e a evolução técnico-táctica que contribuiu para a mutação da competição entrou numa fase de estagnação evidente.
Não foi alheio ao processo de auto-destruição do Calcio, há uma década atrás, os mesmos sintomas que se vivem na Premier.
Aquela que foi, entre os finais dos anos 80 e grande parte dos 90, a grande liga europeia, entrou num poço de onde ainda não voltou muito por culpa do endividamente dos seus clubes (com a Lazio, Napoli, Sampdoria, Parma e Fiorentina como casos mais evidentes), pela violência e falta de interesse dos adeptos por um espectáculo que ia perdendo qualidade e, como antecedente dessa realidade, a progressiva migração dos melhores jogadores para outras ligas (espanhola e inglesa). A Premier vive hoje esse pesadelo.
Nos últimos cinco anos abandonaram o campeonato alguns dos seus mais brilhantes interpretes, como Fabregas e Cristiano Ronaldo, e apesar de algumas incursões pagas a preço de ouro (caso do City com Silva, Aguero, Balotelli, Dzeko), desde há vários anos que os principais clubes ingleses têm falhado nas tentativas em incorporar os melhores jogadores do continente. Os grandes negócios realizam-se entre eles (Torres, Nasri, Berbatov, Jones, Henderson, Meireles) e a aposta começa a ser - seguindo o exemplo do Arsenal - em jogadores jovens, de preço mais acessível e com margem de progressão (David Luiz, Javier Hernandez, Luis Suarez, Luka Modric...).
Hoje os Neymar, Gotze, Hazard, Pastore, Cavani, Falcao e companhia dão-se ao luxo de rejeitar ofertas de clubes de top da Premier, seja pela melhoria de condições nos seus clubes de origem, seja porque a liga perdeu grande parte do seu real atractivo. Ao contrário de Espanha, onde muitos dos nomes continuam a procurar um lugar ao sol, Inglaterra tornou-se outra vez num destino cinzento, envolto numa capa escura de smog.
Se a partir de 1995 a grande mutação da Premier começou a tornar-se evidente com o contributo de jogadores de fora como Cantona, Zola, Bergkamp, Asprilla, Pires, Overmars, Anelka, Vieira, Ginola e companhia, permitindo ao futebol local abandonar o estandardizado 4-4-2, o jogo directo e a total falta de pressão entre linhas, hoje parece que as equipas inglesas ficaram paradas no tempo. Da hegemonia de técnicos estrangeiros a principios da década passada (Houllier, Ranieri, Benitez, Mourinho, Wenger) passou-se a um cenário onde só o francês e Villas-Boas sobrevivem, o primeiro no enésimo projecto e o segundo numa mutação desportiva longa e complexa. O 4-5-1 e 4-2-3-1 tornaram-se num santo e senha dificil de mudar e, sobretudo, fácil de anular quando as equipas das ilhas viajam ao continente. A versão mais conservadora do Manchester City - clube para muitos candidato ao máximo troféu europeu - foi incapaz de reacionar diante de um 3-4-3 móvel e asfixiante do Napoli. Como antes, diante do Bayern Munchen e até mesmo frente aos napolitanos em casa. O Chelsea de Villas-Boas tem tentado apostar num 4-3-3 que na Europa acabou, em momentos, por ser vulgarizado por uma versão mais fluida e acutilante tanto por Valencia como por Leverkusen. E no caso do Manchester United a realidade bateu à porta de um sir Alex Ferguson, habituado a tratar com pouco interesse uma fase de grupos que antes era apenas um trâmite. Frente ao Basileia e Benfica, em Old Trafford, a péssima exibição do sector defensivo facilitou os dois empates consentidos. Fora de portas a incapacidade de criar jogo num meio-campo lento e previsivel transformaram os duelos em Portugal e na Roménia em verdadeiros suplicios. Salvou-se o Arsenal, talvez por ser um projecto novo e, portanto, mais aberto à mudança, mas que beneficia da mentalidade continental do seu técnico, mas olhando para os cinco jogos disputados é dificil ver nos gunners um candidato sério a chegar às meias-finais.
A realide é desarmante, um 45% de vitórias em 20 jogos de equipas inglesas, a mais baixa percentagem dos últimos 10 anos. E um espelho de uma realidade que sim existiu durante os anos 90 onde, por várias vezes, os ingleses caiam aos pés de equipas mais acessiveis como o IFK Goteborg, Legia Warsawm RCD Lends, Dynamo Kiev, Fiorentina, Basel, Rosenborg ou Spartak Moscow. Numa Premier que então ainda se debatia com os problemas estruturais pós-Taylor, essa era a realidade que hoje parece ter regressado apesar da diferença de orçamentos entre os clubes ingleses e os continentais (salvo Barça e Madrid) seja maior do que nunca.
Em 2008 o futebol inglês viveu o apogeu de lograr três semi-finalistas na Champions League. O sucesso do Liverpool três anos antes e a presença do Arsenal na final de 2006 e do próprio Liverpool em 2007 davam a ideia de uma hegemonia clara e facilmente reconhecida. O United, vencedor dessa final totalmente inglesa, voltou em 2009 e 2011 mas numa versão mais pobre, facilmente domada pelo Barcelona de Guardiola. E a performance dos ingleses foi decaindo progressivamente, tanto nos casos de Chelsea e Arsenal como nas presenças, esporádicas, de Liverpool e Tottenham. Este ano, pela primeira vez, há sérias possibilidades do futebol inglês chegar à fase a eliminar com apenas uma equipa em prova. Um cenário que talvez doa menos do que a constatação de uma crua realidade. No panorama actual é muito complicado que um clube inglês possa aspirar a estar em Munique no próximo mês de Maio. As goleadas entre favoritos na Premier atraem os espectadores mas deixam a nu os problemas técnico-tácticos dos principais clubes e a falta de competitividade quando viajam à Europa tem tomado proporções alarmantes. Apesar de manter todos os condimentos de um espectáculo sem igual, à perda de competitividade da Premier League vai, seguramente, unir-se uma perda de prestigio, perda de financiamento e perda de interesse. Já vimos este filme em Itália e sabemos o dificil que é recuperar de um choque tão grande. Os ingleses sempre demonstraram saber reinventar-se mas este desafio parece ser mais sério do que muitos possam imaginar.
Durante a última década formou-se uma corrente de pensamento que consagrava a carreira do genial Zinedine Zidane como a súmula perfeita de uma época clássico no jogo. Chamaram-lhe o "Quinto Grande" por alusão ao lugar vazio atrás do poker Di Stefano-Pelé-Cruyff-Maradona (assim, temporalmente, para evitar discussões) tornando a sua roleta, frieza e camisola suada num icone de uma era. Mas a grandeza de Zinedine - indiscutível - talvez não tenha sido tão evidente que uma boa campanha de marketing não tenha ajudado a mistificar. E quando a bola rola, dorme, beija e toca a chuteira de Don Andrés, é difícil não imaginar que o "Sancho Panza" manchego mereça - como mínimo - o mesmo tratamento que o filho da nova Gália.
Movimento, roleta, movimento, cabeça alta, olhar fixo, gota de suor, movimento, leitura, suavidade, segurança, passe, cheque...mate.
Zinedine Zidane tratava a bola com a mesma devoção com que Paulo de Tarso perseguia cristãos. Com essa agressividade dissimulada no olhar, esse suor de guerreiro desde os primeiros sprints, esse ar de cavaleiro berbere, habituado a migrar pelas grutas do monte Atlas. "Zizou" foi, durante meia década, a diferença. O seu jogo não vivia do arranque e da velocidade como Figo, Ronaldo ou Owen (para citar os Ballon D´Or contemporâneos) nem era tão incisivo como o toque de Rivaldo ou Nedved. Com ele a bola parava em movimento, adormecia com tranquilidade e despertava com destino certo. A classe de cada gesto, os braços erguidos, a cabeça levantada, foram mais do que uma imagem de marca, foram a definição de um estilo iminentemente clássico num jogador indiscutivelmente moderno.
Zidane não defendia, queixavam-se muitos, e no entanto defendia melhor do que ninguém. Mantendo a bola nos pés, fazendo-a rodar pelos seus, Zizou garantia o equilíbrio que o musculo de Makelele ou as corridas de Figo eram incapazes de entender. Talvez por isso foi admirado até à exaustão, talvez por isso a história se esqueça com mais facilidade desse seu ritmo tão próprio em detrimento daquele passe, daquele remate de cabeça, daquele volley em Hampden, daquela cabeçada infame...Zidane definiu-se a si mesmo como esse filho perfeito do Mediterrâneo, sempre com essa brisa de mar no rosto a dar-lhe esse ar desafiante, o mesmo que guiou a França a uma era de prosperidade inédita, o mesmo que transformou o jogo do Real Madrid num prazer inconfessável. O mesmo que, reformado por tudo e por todos, demonstrou que a bola, nos pés de quem a ama, é um servo obediente do seu amo.
A magia do gaulês parecia guardada numa cápsula do tempo, inimitável, pedaço de vídeo para gerações futuras tropeçarem como hoje os mais novos não conseguem entender o mecanismo dos movimentos de Cruyff, as cavalgadas heróicas de Beckenbauer, o toque subtil de Pelé ou até mesmo o estilo de rufia de bairro de Maradona. Muitos guardavam-no seu relicário, como a São Paulo na evangelização dos cristãos, como irrepetível. Não, o futebol não entende de credos e súplicas mas algo começou a despontar quando a luz de Zizou se foi apagando lentamente.
A brisa do mar não lhe toca e isso nota-se numa pele desenhada a pensar na sombra das oliveiras que rodeiam os caminhos de terra à volta dos seus vinhedos. Talvez contemplando a imensidão do planalto manchego, Don Andrés tenha entendido o mesmo que Zidane a olhar para um mar sem fim. A eternidade conquista-se com um suspiro.
A bola seca pelo sol ardente só procurava um amigo com quem conversar mas em Iniesta encontrou um amor. Inconfessável devoção de um estilo, de uma era que não morre por muitos sinos que toquem a rebate. Nos pés do génio espanhol o esférico encontra o aconchego do lar, levanta-se e anda com a firmeza de Lázaro, por cima dos comuns mortais. Iniesta é para a bola de futebol o que a areia é para o mar, inseparável. Em Barcelona, há largos anos, ainda Guardiola era um jogador com inquietudes, Messi um miúdo traquinas e Xavi um aspirante assobiado jogo sim, jogo sim, o actual treinador blaugrana virou-se para o seu sucessor e disse-lhe com a sua habitual tranquilidade: "Tu vais-me retirar a mim, mas este aqui vai retirar-nos aos dois". Não foi assim. A história guardou-os para uma missão em conjunto.
Se Xavi é o cérebro futebolístico de uma era, o pensador perfeito, e se Messi a estrela mediática que qualquer projecto necessita (que o diga Gerson de Pelé, Hidgekuti de Puskas, Netzer de Beckenbauer, Schuster de Rummenige, Rui Costa de Figo...) o futebol em Barcelona é responsabilidade de Iniesta.
O espanhol joga, faz jogar e existe, com a sua presença, como um espectro indiscutível sobre a cabeça dos rivais. Os treinadores perdem horas a falar na marcação ao homem a Messi mas o mérito do argentino foi saber-se rodear dos melhores. E o melhor encontrou-o em Iniesta. O herói silencioso, o pistoleiro do velho Oeste de poucas palavras. Cada sprint de Messi encontra a tabela no segundo perfeito com Don Andrés. Cada drible do herói de qualquer Cervantes moderno, cada vez que levanta a bola por cima da teoria de relatividade de qualquer Einstein pretérito, acontece futebol. Iniesta está para além do gostar ou não gostar em que os mitos como Messi e Ronaldo vivem. Iniesta é a pura essência do jogo moderno, o médio que defende com a bola, que ataca com a bola, que dorme com a bola, que regressa aos balneários com a bola e que dorme com a bola. Em campo o seu deambular anárquico ordena, as suas diagonais desorganizam e o seu olhar condena. É o homem das noites mágicas, o herói das causas perdidas, do sofrimento incontrolável. É tudo aquilo que o futebol quer ser mas não ousa pedir. Por cada Iniesta há mil Busquets, há 100 Messis e 10 Xavis.
Zidane jogou sempre com o peso do seu mundo às costas. O peso da herança berbere, o peso de uma França fragmentada que se uniu no seu corte de monge para desafiar as probabilidades. Às vezes avançava com as costas curvadas, sentindo essa necessidade de liderar o rebanho como quem se sabe incapaz de fintar todos os lobos. Don Andrés não se curva, não sente qualquer peso a não ser o da aragem quente que rasga Fuentalbilla. Ganhou tudo o que havia para ganhar - e antes que muitos nomes ilustres - e no entanto continua a olhar para a bola com a mesma inocência com que driblava todos os pedregulhos que se deparavam pelo caminho. Filho dessa Espanha insólita, perdida no tempo e no espaço, a Iniesta nem Cervantes seria capaz de resumir em dez tomos. A ele define-o a bola que podemos ver, cada vez que se despede do seu mágico pé, a despedir-se com um piscar de olhos...
Agora que se conhecem oficialmente as 16 equipas que em Junho disputarão um titulo que só espanhóis, alemães e holandeses parecem poder verdadeiramente aspirar, voltamos atrás no tempo para tomar o pulso àquela que foi talvez a mais interessante revelação da fase prévia. Não chegou sequer aos play-offs mas durante ano e meio mudou definitivamente a percepção e os estereótipos que a tinham condenado ao desconhecimento geral. A Arménia foi, provavelmente, a selecção que mais merecia ter carimbado o passaporte para o Europeu. Agora o futuro dirá se o crescimento do futebol arménio é real e sustentável.
No historial da antiga União Soviética o futebol arménio nunca teve direito a grande destaque.
Entre Moscovo e Kiev moldavam-se as relações de poder e o único clube do Cáucaso que chegou a bater, com alguma regularidade, o pé aos grandes, encontra-se na vizinha Georgia. No entanto a classe dos arménios sempre foi reconhecida como única dentro do espectro soviético. Com a independência, esse toque de classe ganhou ainda mais sentido. Ao contrário dos físicos vizinhos do norte, a bola na Arménia rola por tapetes débeis mas pés delicados, capazes de trazer um ritmo próprio a cada respiração do jogo. Sem a disciplina táctica de ucranianos ou russos, o futebol nas imediações do mitológico monte Ararat sempre foi mais uma questão de sentimentos do que puro racionalismo. Talvez essa displicência com o aspecto organizativo do jogo tenha causado problemas no passado mas a progressiva migração de alguns dos maiores talentos locais nos últimos 20 anos começa a transformar essa realidade. A Arménia de hoje é, sem dúvida, uma selecção muito mais compacta e responsável do que qualquer formação do seu passado.
Esse trabalho deve muito à experiência que o escocês Ian Porterfield trouxe a Yerevan quando em 2006 foi nomeado seleccionador do combinado nacional. Era o quinto estrangeiro escolhido pela federação local em quatro anos e muitos imaginavam que o seu destino seria em tudo igual ao dos seus antecessores. O antigo técnico do Chelsea tornou-se um trota-mundos e quando chegou ao Cáucaso causou imediato impacto pela sua natureza mas, sobretudo, pela sua abordagem. Entendeu que o grande erro dos técnicos anteriores foi a imposição de um estilo e modelo que não se adequava com o espírito dos jogadores locais. Porterfield rodeou-se de autóctones e decidiu imprimir um cunho verdadeiramente arménio à sua equipa. A mudança começou a notar-se de imediato mas, um ano depois da sua chegada, o seleccionador faleceu, vitima de um cancro implacável. Deixou as sementes que o seu sucessor, o adjunto Vardan Minasyan, soube recolher. O artífice desta magnifica selecção não convenceu de imediato a federação que voltou a optar por um estrangeiro - o dinamarquês Jan Poulsen - antes de entender que o anterior número dois estava finalmente preparado para a missão mais difícil da sua vida.
Minasyan é um metódico onde a maioria desfruta do jogo em plena anarquia.
antigo internacional, soube rodear-se de jogadores a disputar o débil campeonato local a quem juntou apenas aqueles expatriados que demonstravam verdadeiro interesse em actuar pelo combinado nacional. Transformou um leque de atletas num grupo e decidiu entregar os galões do seu projecto ao promissor Henrikh Mkhitaryan, a maior promessa da história do futebol local em muitos anos. À volta do médio centro montou uma equipa organizada mas capaz de tratar a bola com a reverência habitual dos locais. Elegeu a Yedigaryan, Mkrtchyan e Manucharyan como acompanhantes de luxo da sua jovem estrela e deu-lhes liberdade para jogar. Um meio campo profundamente criativo mas rodeado de um colectivo profundamente organizado que, no entanto, foi incapaz de superar a muralha defensiva montada por Giovanni Trapattoni no jogo inaugural da qualificação. Essa derrota injusta - depois de um jogo totalmente dominado pelos locais - acabou por motivar ainda mais os underdogs que partiram para uma série de quatro jogos sem perder (vitórias sobre a mundialista Eslováquia e a selecção de Andorra e empates na Macedónia e com a Rússia). O duelo com os russos teve contornos de épica pura, importantes para quem ainda se lembra do opressivo regime de Moscovo e da forma como o grande clube local, o Ararat Yerevan foi tratado durante a época soviética. A derrota em San Petersburg doeu menos do que muitos esperavam, talvez porque os arménios até começaram o jogo a vencer ou, talvez, porque durante grande parte dos 90 minutos foram melhores com a bola nos pés que os imensos vizinhos.
Terminada a primeira ronda de jogos, surpreendentemente, a Arménia ombreava com irlandeses e eslovacos pelo segundo lugar de qualificação - o tal do play-off - e apesar de muitos perspectivarem uma queda livre, a qualidade de jogo dos caucasianos veio ao de cima na histórica goleada em Zilina contra a Eslováquia. Uma vitória por 4-0 implacável e que deixou a nu a diferença entre uma selecção que marcou presença nos oitavos de final do último Mundial e uma equipa que começava a funcionar como tal. O sucesso de Minasyan era evidente mas o sonho com o segundo lugar começava a fazer cada vez mais sentido. Em teoria o jogo na Irlanda avizinhava-se como determinante mas antes era necessário domar a Macedónia, equipa complicada e do mesmo nível que os arménios. Outros 4 golos marcaram claramente as diferenças e deixaram os irlandeses num compromisso. Vencer era obrigatório e as habituais tácticas defensivas da velha raposa tinham de dar lugar a algo mais de ousadia. Os arménios sabiam que não eram favoritos e rapidamente entenderam que o futebol europeu tem truques a própria razão desconhece. Muito superiores em jogo aos locais, os arménios sofreram na pele talvez a sensação de injustiça que custou aos irlandeses a viagem à África do Sul. Uma expulsão duvidosa do guarda-redes Roman Berezovsky, determinante em toda a campanha, por mão fora da área, determinou o jogo. Um infeliz auto-golo, pouco depois, rematou as poucas possibilidades dos visitantes que ainda reduziram pela estrela do costume depois de Dunne ter ampliado a vantagem. Os irlandeses marcaram menos (mas também sofreram menos) golos que os arménios mas seguiram em frente. O sonho evaporou-se.
À medida que o futebol de clubes se tenta reorganizar no Cáucaso, as selecções continuam a ser o grande emblema dos países. A Arménia sofreu na pele os anos da opressão soviética mas desde o empate a zero contra Portugal no apuramento para o Mundial de França (os pontos que custaram a passagem aos lusos) que tem vindo a melhorar progressivamente. Pela primeira vez discutiu de tu a tu com nações com outros recursos e historial a qualificação e depois de ser colocados num grupo com Itália, Dinamarca, Republica Checa e Bulgária para os duelos de apuramento ao próximo Mundial muitos imaginam que o trabalho de Minasyan pode acabar por ter um final feliz. A estrutura começa a solidificar-se, a classe individual está à vista de todos e o perfume do futebol arménio pode ser inebriante. Talvez os arménios merecessem mais que os irlandeses esse bilhete (como sucedeu há dois anos com insulares e gauleses) mas o futuro pode reservar-lhes surpresas inesperadas que façam com que momentos como este sejam vistos como apenas mais um passo rumo ao sonho.
A vitória tem destas coisas. Um triunfo categórico nos números, complicado na forma, carimbou a passagem de Portugal para o seu quinto Campeonato da Europa consecutivo, um logro ao alcance apenas da verdadeira elite do futebol europeu. Mas nesse clima de euforia tão habitual a quem não está habituado a ganhar começam a distinguir-se os traços de arrogância que costumam ser maus companheiros de viagem. Portugal estará em Junho na Europa de Leste, mas não deixará de ser um convidado secundário numa festa com outros protagonistas.
O estádio da Luz não encheu mas foi suficiente. Para os bósnios pelo menos.
A equipa dos Balcãs não quis jogar os primeiros 90 minutos, recorrendo a tácticas tão legitimas como pré-histórica. Na hora e meia que passou no tapete verde impecavelmente cuidado do estádio onde Portugal já se habituou a resolver noites difíceis, não conseguiu. Os nervos, a combustão interna de Safet Susic e a primeira meia-hora das estrelas portuguesa fizeram o resto. A equipa da Bósnia esteve mais dentro da eliminatória pelos erros arbitrais do que por méritos próprios. Dzeko nunca fez juz à sua merecida fama internacional e nem Misimovic nem Pjanic souberam ter a tranquilidade mental para explorar as constantes debilidades defensivas de um Portugal que, mesmo com tudo a favor, acabou por sofrer demasiado.
Ficou evidente que a selecção lusa continua a ser mais uma manta de retalhos individuais que uma verdadeira equipa. Decidiu o génio individual de Cristiano Ronaldo e Nani na primeira parte e culminou a noite um golpe magistral de Miguel Veloso, naquele que foi talvez o seu mais completo jogo pela equipa das quinas. Desiludiu profundamente o trabalho do quarteto defensivo com Fábio Coentrão apagadíssimo (e infantil como poucos no lance da grande penalidade) e um Rui Patricio que, com a bola nos pés, continua a ser um terror para os próprios colegas. Mas como os bósnios tinham a bola exíguos minutos nos pés, o público não notou e fez a festa com que a maioria não contava. Depois da sofrida vitória por 1-0, frente aos mesmos bósnios, em 2009, ou os triunfos diante de Hungria e Estónia em 1999 e 2001, a Luz voltou a ser o talismã para uma noite de gala. Uma noite de enganos.
Paulo Bento continua a ser um técnico com debilidades tão evidentes que só mesmo a imagem do arregaçar nas mangas explica bem o que vai por aquela cabeça. Homem mais de acção do que planificação, o seleccionador apresenta-se como um novo Scolari, figura militarizada que aposta mais no esforço, na raça e no querer do que, propriamente, nos conceitos de preparação técnico-tácticos. O 4-3-3 que aplicou na selecção lusa continua a ser um tapete de espaços mortos onde os conceitos se confundem com os indivíduos. Quando algum jogador falta e um ou outro está em baixo de forma, a inépcia de Bento é mais do que evidente. Viu-se na Dinamarca onde Portugal podia ter sido humilhado com profunda naturalidade. Um seleccionador que marca toda a linha do seu trabalho em homens e não em conceitos corre o risco de se transformar numa presa fácil da sua própria fortuna. Ontem, pela primeira vez em largos anos, Portugal brilhou. Mas realmente brilhou no individual - como uma constelação onde as estrelas Nani, Cristiano, Meireles e até Moutinho fizeram das suas - enquanto que voltou a não convencer no colectivo.
Aqueles que habitualmente se deixam levar pelo frio na espinha que os hinos nacionais costumam provocar encontrarão mil e um motivos para sufragar Bento que tem a seu favor um registo de resultados mais do que aceitável. O mesmo sucedeu com Queiroz antes da viagem à África do Sul, onde se percebeu que uma brilhante fase de qualificação contava pouco quando os jogos a doer eram com rivais de outro calibre.
Portugal continua a ser uma equipa da parte média do futebol europeu, não demasiado longe de uma Bósnia que cometeu dois erros crassos na preparação deste play-off e que, por isso, mereceu a eliminação.
A batalha de Zenica era escusada e acabou, paradoxalmente, por beneficiar Portugal. Em lugar de aproveitar, como se viu nos últimos 20 minutos, a fragilidade mental dos lusos a equipa da casa preferiu a provocação e o anti-jogo e acreditou que um golo em Portugal seria suficiente para quebrar uma malapata de seis anos. Não foi. Portugal soube responder com categoria com dois golos de bola parada, um gesto técnico irrepreensível e três tentos de ponta-de-lança que transformaram uma qualificação numa orgia nacionalista. E no entanto o rival pareceu incomodar menos os jogadores de vermelho do que a péssima (outra vez) arbitragem de Wolfgang Stark que parece não se dar bem com jogadores lusos. Os golos, a celebração, escondem a realidade, como sempre.
A decadência lusa é um fenómeno evidente e facilmente reconhecível desde 2006.
O último biénio da era Scolari pautou-se por uma mensagem em tudo similar à que preconiza hoje Bento, o habitual discurso do guerrilha de bairro sem ideias que se apoia, sobretudo, no génio de quem o rodeia. Seleccionador que gostava de deixar vitimas pelo caminho como Bento(e mostrar-se orgulhoso disso), seleccionador que gosta de criar o "grupo" antes que premiar os melhores, (como Bento) e, sobretudo, seleccionador sem um conceito de jogo na cabeça. Depois de suar desnecessariamente num grupo acessível, Portugal fez fraca figura no Europeu de 2008 e deixou claro que a elite europeia, por onde tinha andado desde 2000, era uma utopia. Mas não deveria ser um drama, até porque é fácil constatar que a selecção francesa, carrasco preferencial dos lusos, vive na mesma situação sensivelmente desde então. Mas para os portugueses, sempre fáceis de ferir no seu orgulho, parece um insulto reconhecer a realidade. Não o é, até porque ser parte da elite, partir como favorito, sempre foi mais um handicaap para países pequenos do que propriamente uma bênção.
A falta de realismo de Paulo Bento é atroz e a sua reencarnação no espírito de José Torres deixa maus augúrios para um futuro. Sonhar com os pés no chão é algo que Portugal nunca soube e quando o máximo responsável pela selecção se arroga ao direito de que lhe deixem sonhar está a passar a mensagem sufragada pelos jogadores - de que Portugal pode repetir noites históricas no próximo mês de Junho. E, no entanto, pode tanto como qualquer outra das 16 equipas presentes e, sobretudo, pode muito menos do que aqueles que realmente vão ser o centro das atenções. Apesar de Cristiano Ronaldo, os lusos vão ser convidados secundários na festa de espanhóis, alemães, holandeses e italianos, seguramente os verdadeiros protagonistas. Portugal apresentará os seus problemas estruturais crónicos (falta de um guarda-redes e ponta-de-lança de nível máximo, falta de profundidade de um plantel que tem de recorrer a figuras secundárias de clubes de ranking baixo do campeonato espanhol em posições chave) e dependendo da fortuna do sorteio, pode dar-se por contente por ter participado. Afinal uma equipa sem um único criativo, uma equipa onde cabem jogadores tão medianos como Micael, Postiga, Almeida, Pereira, Patricio, Bruno Alves, Martins, Quaresma ou Rolando que pode fazer numa prova internacional que não possam fazer suecos, dinamarqueses, croatas, gregos ou russos, todos eles seguramente sem uma estrela mediática do nível de Ronaldo, mas com valores individuais seguros e um colectivo (e mais do que isso, uma estrutura táctica e mental) muito mais forte que a lusa?
Em 2008 a fortuna permitiu que o decadente projecto de Scolari se encontrasse com o grupo mais fácil do certame. A reedição do modelo de duplos cabeças de série pode reservar o mesmo destino, com Ucrânia e Polónia, Rússia e Inglaterra, Irlanda e República Checa como companheiros de viagem ideais. Mas tudo o que é bom acaba e será fácil entender que num hipotético Espanha-Alemanha-Portugal-França/Dinamarca, os lusos sejam os últimos de grupo. É essa a realidade que os 6-2 da noite de ontem já começaram a esconder em jornais, blogues e nas conversas de café. Onde ninguém vai perder tempo a entender o desajuste defensivo de Portugal no final da primeira parte, a falta de nervos de Patricio, a inépcia do jogo ofensivo dos laterais ou, sobretudo, a falta de opções de nivel quando o génio individual de Ronaldo-Nani não funciona. Em Portugal continua a pensar-se pouco futebol e por isso, para muitos, Junho pode ser um mês de frustrações quando devia ser um mês de celebração e festa. Hoje Portugal está num top 16 europeu, mas de pertencer ao top 4 passou a ser parte do último lote de quatro, por muito que o ranking da UEFA tenha sido mais amigo do que habitual. Querer criar uma sensação de vitória futura com base num só jogo é apenas poeira para os olhos de quem procura agarrar-se a algo no meio do lodo. Mas como os deuses gregos já provaram uma vez, o realismo no mundo da bola vem sempre ao de cima, por muito que doa.
Há poucos países que apelam tanto à veia nacionalista quando a bola começa a rolar sobre o terreno de jogo. Duas selecções que desde há 15 anos que vêm lançando a ideia de que estão perto de dar o salto para outro patamar mas que acabam sempre por escorregar no momento mais inoportuno. Há três anos e meio Croácia e Turquia disputavam um lugar nas meias-finais do Europeu de 2008. Agora um deles ficará de fora. E o outro fará da gesta mais uma demonstração de espírito nacional. Como em nenhum outro sitio.
O inferno turco é uma realidade que nenhuma equipa pode ignorar.
Para clubes e selecções viajar até ao ponto do união de dois continentes é um verdadeiro martírio. Não só pela qualidade futebolística - tremenda em alguns casos - mas sobretudo pelo ambiente que se recria, do vetusta Ali Semin ao espectacular Ataturk. Jogar na Turquia é jogar contra 72 milhões de pessoas. Uma nação que vive com um pé num laicismo contido e com outro num fanatismo religioso que utiliza o futebol como mais uma de muitas ferramentas para reforçar o cariz de união nacional. Como os alemães sabem, jogar com a Turquia é também jogar com a população turca espalhada por esse mundo fora - e na Croácia há bastantes - e com essa ideia de estado-nação que começa a fazer cada vez menos sentido no contexto dessas organizações plurinacionais que tanto estão na moda. A Turquia é provavelmente uma das potências futebolísticas com melhor futuro pela frente. E no entanto este mesmo discurso, por muito verdadeiro que o seja, já o temos ouvido desde há muito. Exceptuando 2002 - e a memorável campanha no Mundial - e o último campeonato da Europa - derrotados também nas meias-finais num dos jogos mais apaixonantes da prova - o futebol turco nunca registou grandes resultados. E dá sempre a sensação de ser capaz de algo mais. Algo que fica por dar.
O grito dos 72 milhões transforma os jogos em Istambul num verdadeiro inferno, numa parada militar imponente e assustadora, mas fora de portas os turcos continuam a ser uma selecção mentalmente frágil. É certo que cair no mesmo grupo que a Alemanha - hoje, a par da Espanha, a mais forte selecção do Mundo - é um sério handicaap, mas os tropeções dos otomanos deixaram quase até ao último dia a sensação de esperança para uma Bélgica reencontrada. E é essa ferida que o exército croata, essa milicia modriciana, vai tentar explorar.
Se os turcos roçam a histeria nacionalista, os croatas levam essa realidade a outros extremos.
País com 20 anos de vida, sofreram na pele a dureza de libertar-se da Jugoslávia e desde então agarraram-se como poucos países nos Balcâs a uma fervorosa paixão por eles mesmos, por uma nação historicamente real mas politicamente ainda muito tenra. O idealismo da extrema direita de Tudjman foi transportado ao futebol - o vermelho e branco axadrezado eram, sobretudo, as cores da bandeira do partido nacionalista que liderou a secessão - e à forma dos croatas entender o jogo e as performances da sua selecção. Tal como os turcos, a Croácia falhou a viagem à África do Sul por muito pouco e em 2008 foi diante dos otomanos que caíram, sem pena nem glória. Depois de uma fase de grupos de altíssimo nível, em que lograram arrebatar a liderança do grupo à finalista Alemanha, algo falhou na cabeça dos Modric e companhia nesse primeiro jogo a eliminar. E os velhos fantasmas voltaram para nunca mais abandonar o céu azul de Zagreb.
A Croácia surpreendeu os mais desatentos no Europeu de 1996 - esquecendo muitos que a maioria das estrelas da geração jugoslava de 1987 vinham do país do Adriático - e fez ainda melhor dois anos depois no Mundial de França, arrebatando um terceiro lugar que valeu para os croatas talvez mais do que o Mundial ganho pelos franceses. Significou, sobretudo, o sucesso de um projecto de nação diante do mundo. Os sucessivos fracassos até 2008 deixaram a sensação que aquele era um fenómeno pontual de uma geração inimitável mas quando Krankjcar juntou as jovens estrelas que deram forma à equipa que viajou à Suiça, um sentimento de esperança renasceu no coração de um país que faz de cada jogo uma batalha sem tréguas. Falhar 2012 para os croatas é um golpe mais duro do que se possa supor.
A nação croata continua a sonhar com a sua integração europeia - tal como os turcos - e o sucesso desportivo é o atalho mais próximo para lográ-lo segundo a opinião generalizada. A presença do Dynamo Zagreb na fase de grupos da Champions League despertou o futebol croata de clubes de uma longa letargia e agora muitos esperam transportar esse momentum para o sucesso da equipa nacional. Durante quatro jornadas os croatas estiveram perto de assegurar o apuramento directo mas nas horas finais claudicaram diante da Grécia de Fernando Santos. 180 minutos serão muito longos mas também são a última esperança para não cair no esquecimento.
Pensando que selecções com muito menos qualidade individual como a Irlanda vs Estónia ou a República Checa vs Montenegro irão lograr dois lugares num torneio onde certamente quer croatas quer turcos irão fazer muita falta deveria obrigar a UEFA a rever de uma vez por todas os seus critérios de selecção para play-offs como este. Já se sabe que a partir de 2016 o Europeu será muito mais acessível a qualquer nação mas é curioso pensar que a Irlanda tenha uma posição como cabeça de serie - mais pelo drama criado à volta da polémica mão de Henry há dois anos - e uma selecção com registos notáveis como os turcos sejam relegados para um sofrimento talvez desnecessário. Nenhuma das oito selecções merece passar por este suplicio, mas talvez as duas equipas que mais mereciam estar na Ucrânia e Polónia tenham de se matar, qual gladiadores, num combate à morte. A bem da (respectiva) nação!
São a mais jovem selecção do Mundo e nesse arrojo típico dos recém-chegados desafiaram os prognósticos, emudeceram os críticos e desafiaram a história. Tiveram a Inglaterra a seus pés, destroçaram o projecto de futuro da Suiça e agora estão preparados para defrontar a selecção mais bipolar da história recente do futebol europeu. Quais são os limites dos rookies do ano?
Passou pelo Benfica sem pena nem glória e em Vallecas muitos continuam a desconfiar do seu jeito molengão.
Mas em Podgorica, Andrija Delibasic é o equivalente mais próximo que podemos encontrar a um mito vivo.
O golo do dianteiro do Rayo Vallecano não garantiu só o empate frente à toda poderosa Inglaterra. À distância de um anúncio radiofónico, confirmou o conto de fadas que há um ano se estava a escrever em letras maiúsculas no último filho do Mundo, na derradeira bandeira independente a desfraldar pelos Balcâs, no quinto país da ex-Jugoslávia a entrar em disputa por um lugar ao sol.
Durante anos o Montenegro viveu à sombra do seu vizinho maior, a Sérvia, e foi nessa condição que os montenegrinos marcaram presença - apesar de ninguém ter notado - no Europeu de 2000. Mas jogar com bandeira e luz própria é outra sensação. Só em 2007 a FIFA e a UEFA aceitaram a inscrição dos montenegrinos como selecção oficial e permitiram a participação na fase de qualificação para o Mundial da África do Sul. Montar uma equipa de um país novo era um desafio ao alcance de poucos e só a apaixonada labor de Zoran Filipovic, filho da terra, permitiu montar um plantel competitivo mas cheio de baixas. A maioria dos jogadores montenegrinos preferiu continuar a actuar com a Sérvia e entre os veteranos Basa, Pavicevic, Novakovic e o próprio Delibasic e as novas promessas locais Vukcevic, Vucivic , Savic e Jovetic, formou-se um onze sui generis que daria muito de que falar. Há dois anos pagaram o preço da inexperiência apesar de surpreendentes resultados a abrir. Em 2010 arrancaram para uma campanha a roçar o inacreditável. E estão a dois jogos do paraíso.
Desde o desmembramento do Jugoslávia que três nações do país inventado por Tito marcaram presença numa grande competição internacional. Das três só a Croácia está na disputa deste play-off mas aos homens do Adriático acompanham-nos os novos filhos dos Balcâs, os guerreiros da Bósnia e os falcões do Montenegro.
Na altura do sorteio os montenegrinos eram a equipa pior quotada do grupo G, por detrás de bulgaros, suiços, galeses e ingleses. Ninguém imaginava que no último dia os recém-chegados tenham ficado a apenas 4 pontos do apuramento directo para o torneio disputado entre a Polónia e a Ucrânia. O arranque sublime (três vitórias por 1-0 com golos de Vucinic contra Gales, Bulgária e Suiça) foi seguido de um épico duelo em Wembley com a Inglaterra de Fabio Capello. Num jogo onde os papeis pareciam trocados, os montenegrinos encostaram os ingleses às cordas e o próprio seleccionador italiano confessou que o empate era um mal menor.
Depois de uma série inesquecível começaram a chegar os primeiros revezes. A selecção já tinha perdido a fluidez de jogo de Jovetic - lesionado durante um ano - e ninguém se surpreendeu com o empate contra os búlgaros e a primeira derrota em Gales. Os ingleses pareciam escapar-se finalmente e os suíços de Shaquiri e companhia aproximavam-se perigosamente antes de um duplo confronto determinante contra ingleses e suíços para decidir as posições finais do grupo. O clima de histeria depois da derrota em Gales custou a cabeça ao mentor da fábula, o seleccionador croata Zlatko Kranjcar e para o seu lugar a federação - que parecia ter perdido a crença num apuramento que chegou a estar perto de ser directo - nomeou o técnico Branko Brnovic, secundado pelo ex-internacional jugoslavo Savo Milosevic. A nomeação, juntamente com o regresso de Jovetic à equipa nacional, deu o plus de motivação que faltava. Podgorica encheu para receber a Old Albion e apesar dos dois golos inaugurais dos ingleses na primeira parte, os locais nunca perderam a cabeça. As noticias que chegavam de Gales (onde a Suiça perdia também por 2-0) eram motivadoras suficientes e no segundo tempo os ingleses sofreram uma pressão asfixiante que culminou no tento de Zverotic e depois no salto milagroso de Delibasic. O salto em suspensão de todo um povo.
O empate garantiu a qualificação matemática para o play-off, algo que nem a derrota por 2-0 com a própria Suiça foi capaz de alterar. O destino traçou um duelo com a República Checa, selecção facilmente reconhecível pelo transtorno bipolar na grande prova europeia. Uma final e uma semi-final caminham lado a lado com duas campanhas em que a eliminação na fase de grupos foi o melhor que conseguiram. Os checos contam com uma das melhores gerações jovens do continente mas terão de medir-se contra uma pequena nação que olhará para os 180 minutos como um encontro com a história. O jogo decisivo em Podgorica, mais do que um duelo entre duas selecções, promete ser o grito de um povo que só quer que o Mundo sinta que eles também existem.
Num país onde o futebol não é, nem de longe, um dos três desportos mais populares, quanto vale um apuramento histórico para um Campeonato da Europa? O peso da tradição joga todo do lado da República da Irlanda mas a grande sensação chega de uma Estónia que há uma dúzia de anos era apenas mais uma equipa entre muitas a abater e que agora se pode tornar na quarta ex-república soviética a marcar presença numa grande prova internacional.
É curioso que uma super-potência futebolistica como foi a União Soviética tenha tido, até hoje, apenas três descendentes directos nos palcos mais sonantes do futebol mundial. O apuramento da Rússia em 1994 foi o primeiro de uma ex-república soviética a brilhar com luz própria. Foi preciso esperar 10 anos para um replay, com a insuspeita Letónia a bater todas as previsões. Foi sol de pouca dura e para os letónios hoje a lembrança desse Verão português é algo que não provoca demasiado entusiasmo. Para fechar o trio, dois anos depois, a Ucrânia que sempre parecia estar a ponto de marcar os bilhetes e que sempre ficava apeada no aeroporto, marcou a sua estreia de forma categórica no Mundial da Alemanha. Agora regressa como anfitriã e juntamente com os russos, no próximo mês de Junho está garantida a presença de uma forte herança do futebol dos primeiros campeões europeus. Mas e se em lugar de duas selecções, sejam três as ex-repúblicas a disputar o ceptro continental?
Para os estónios esse fenómeno era surreal apenas há um ano atrás. Afinal o país do Báltico está longe de ser um entusiasta do beautiful game. Em Tallin e arredores qualquer desporto com gelo, e até mesmo o basquetebol, é muito mais popular que o futebol e isso sempre se fez notar. Os clubes estónios primavam pela sua ausência na poderosa liga soviética e as suas equipas, já recém-independentizadas, nunca deram um ar da sua graça nas provas europeias (ao contrário de letões e lituanos, por exemplo). A selecção azul e negra era um rival simpático e bem-vindo em qualquer sorteio. E talvez no futuro tudo volte a ser como dantes. Mas esta semana o mundo do futebol para obrigatoriamente aqui.
O frio de Riga será um rival tão ou mais intenso para os irlandeses como a qualidade da selecção orientada por Tarmo Ruttli.
Quando o seleccionador chegou ao banco da equipa nacional, durante a fase de qualificação para o Mundial da África do Sul, a Estónia estava no 137º lugar do ranking FIFA. Dois anos depois encontra-se no 57º posto, uma metamorfose que poucos conseguem explicar. Não apareceu nenhuma estrela internacional, não há uma verdadeira geração de prodigios e, sobretudo, o país não se apaixonou pela sua equipa nacional. E contra tudo e contra todos, desafiando a pura lógica, os estónios estão a 180 minutos de fazer história.
A Irlanda é uma ilha que traz boa sorte aos bálticos.
Nos dois últimos encontros de apuramento a Estónia mediu-se contra a Irlanda do Norte, país que desde 1986 não marca presença numa competição internacional. À partida os irlandeses eram favoritos mas os homens do norte venceram os dois jogos (4-1 em casa e 1-2 fora) e confirmaram uma surpresa absoluta.
Uma viagem que começou um ano e meio antes com um vitória surpreendente em Belgrado contra uma Sérvia que tinha saído do Mundial com a cabeça baixa. Os homens dos Balcâs eram considerados como claros favoritos a disputar a liderança do grupo à Itália de Cesare Prandelli mas os problemas no balneário depois da péssima performance no Mundial ficaram à vista de todos na noite em que a Estónia decidiu começar a tratar a bola por tu. Apesar da derrota com a Itália e a esperada vitória diante das ilhas Faroe muitos imaginavam que o duplo duelo contra a igualmente mundialista Eslovénia iria colocar os estónios no seu respectivo lugar. A derrota no jogo disputado em casa frente aos eslovenos deixou a entender que assim seria mas depois os estónios empataram, também em casa, com a Sérvia e, beneficiando-se de uma campanha exemplar da Itália, viram-se isolados no segundo lugar do grupo. Uma posição que provocou certamente vertigens, de tal forma que a derrota contra a amadora selecção das Faroe funcionou como um verdadeiro choque de realidade. Faltavam três jogos e os estónios necessitavam de somar sete pontos para chegar aos play-off.
E então apareceu Purje.
Numa selecção onde os jogadores actuam todos em clubes de segunda, terceira e quarta linha internacional, que um médio de 26 jogue num modesto cipriota não é novidade. Mas Purje tornou-se num jogador especial quando ao minuto 81 desnivelou a balança (o jogo e o resultado) no duelo na Eslovénia, marcando o agónico 1-2 que deixava tudo nas mão dos homens do Báltico para a ronda final. Só os sérvios lhes poderiam arrebatar o sonho mas a derrota o empate em Itália e a derrota na Eslovénia permitiram à equipa da Estónia fazer história. Sem jogar - depois da dupla vitória contra os irlandeses do Norte - os jogadores celebraram um passaporte único para a fase de play-off onde defrontarão uma Irlanda traumatizada pela derrota diante da França (e dessa mão) há dois anos.
Ninguém espera que os estónios se apurem (aliás, na Irlanda, apesar de Trapatonni, a confiança roça o histerismo) mas a crença nos golos de Konstantin Vassiljev (foram cinco, o melhor registo de sempre da selecção numa fase de apuramento) e no espirito de grupo que Ruttli criou à volta de atletas que roçam quase o amadorismo torna esta eliminatória num dos pratos mais apetecíveis de toda a fase de qualificação. Os irlandeses encontram uma equipa que talvez lhes lembre a eles mesmos, quando Jack Charlton transformou o EIRE num caso sério de popularidade. Quase 25 anos depois, haverá alguém que tenha coragem de não esperar por um milagre no gelo de Riga?
A saída de Fabregas provocou um calafrio na espinha dos gunners. Pela enésima vez um dos seus melhores jogadores preferia abandonar o navio capitaneado por Arsene Wenger e, pela enésima vez, um sentimento de orfandade apoderou-se dos adeptos de um clube que passou de aborrecido a genial e de dominador a sofredor. Apesar das apostas de última hora em Arteta e Benayoum, o que os gunners não esperavam é que a solução para o vazio deixado pelo catalão estivesse dentro de casa. Na camisola de Aaron Ramsey.
Quando Wenger acordou com a direcção do clube que o dinheiro disponível nas arcas dos londrinos seria, quase na integra, destinado à construção do novo Emirates, tinha um trunfo na manga. A sua experiência no Mónaco ensinou-lhe o verdadeiro valor da formação e depois de conquistar Inglaterra com duas equipas repletas de estrelas e descartados pelos grandes do Continente, o desafio agora era repetir o feito com material da casa. Um problema, tendo em conta a diferença gigantesco de orçamentos com os seus rivais habituais, Manchester United e Chelsea, e com o dinheiro dos petrodolares do Manchester City, então um rival inexistente.
Essa aposta na formação começou a dar, paulatinamente, os seus frutos em jovens que vinham dos quatro cantos do Mundo, desde Fabregas a Song passando por Sagna, Szczesny ou Denilson. Apesar dessa aposta clara os adeptos reclamavam a herança britânica de um clube que se tinha tornado mais numa filial desportiva das Nações Unidas do que, propriamente, num grande do futebol inglês. Theo Walcott foi a primeira resposta de Wenger mas o rápido extremo vinha da formação do Southampton e não contava propriamente com o selo da casa na camisola. Só em 2009 se começou a perspectivar uma mudança de rumo nas apostas pessoais do gaulês. A primeira chamou-se Aaron Ramsey.
O médio galês começou a sua formação na sua Cardiff natal e em 2008 foi recrutado pelo clube londrino que via nele uma cópia do modelo de médio que jogadores como Frank Lampard e Steven Gerrard popularizavam, talvez como nunca, nos tapetes ingleses, o chamado box-to-box. Ramsey tinha um pouco de tudo. Posicionamento defensivo, velocidade, arranque, colocação no remate, precisão no passe e um sentido de autoridade que o distinguia dos demais. No 4-2-3-1 habitual de Wenger o seu posicionamento permitia-lhe sonhar com uma equipa sem Fabregas, já então fortemente cobiçado pelo Barcelona. O francês sabia que o jogador, tarde ou cedo, iria querer voltar a casa. O relógio obrigava-o a trabalhar mais depressa do que nunca para preparar a sua sucessão.
Em 2009 Ramsey começou a ser utilizado com maior regularidade e o seu estilo de jogo pareceu encaixar perfeitamente com o ideário wengeriano, um técnico que defende o futebol espectáculo mas que não abdica da solidez e eficácia nos seus jogadores. Foi a primeira aposta assumidamente britânica do producto da casa e o seu talento era mais do que evidente. A sua progressão confirmou as expectativas do técnico e o seu papel na equipa começou a conquistar preponderância até que, numa inesquecível tarde de 27 de Fevereiro, em 2010, o seu génio cruzou-se com as pernas de Ryan Shawcross. A duríssima entrada do médio do Stoke City atirou Ramsey para o hospital com uma fractura de tibia. O seu fantástico crescimento era brutalmente interrompido e começavam a surgir as dúvidas sobre o seu futuro como atleta de alta competição.
Foram meses duros, muito duros para o galês. Como é habitual nele, Wenger prolongou o seu contracto para dar-lhe um forte sinal de confiança mas foram precisos nove meses para Ramsey voltar a tocar numa bola de futebol num jogo competitivo. Entretanto o técnico francês tinha encontrado uma nova coqueluche, o inglês Jack Whilshere, que ocupou no campo e na mente dos adeptos um lugar que apenas há um ano parecia eternamente destinado ao galês. Para recuperar a forma o jogador foi emprestado, primeiro ao Nottingham Forrest e depois ao seu Cardiff durante três meses. Quando voltou a Londres a equipa que semanas antes parecia candidata a tudo entrou numa espiral auto-destructiva que afectou profundamente o médio. O seu jogo de re-estreia pelos gunners ocorreu na derrota por 2-0 contra o Manchester United, nas meias-finais da FA Cup. Dias depois seguir-se-ia a eliminação da Champions League, a derrota na League Cup e o descalabro na Premier. O médio foi ainda utilizado nos jogos finais e começou a recuperar velhas sensações mas a suspeita estava aí. A sua dupla com Whilshere, reeditada desde os dias em que ambos coincidiam na equipa de reservas do clube, parecia prometer muito mas o final da época adiou a experiência por um par de meses. A venda de Cesc facilitou o processo mas foi a lesão de Whilshere, como triste ironia do destino, que devolveu a titularidade a Ramsey.
O galês agarrou-a com ambas as mãos e tornou-se peça fundamental de um renascimento esperado do Arsenal depois do descalabro em Old Trafford (sem oito titulares) e do arranque titubeante na liga. No último mês poucas equipas exibiram a mesma regularidade e qualidade que os gunners e o trabalho fisico e táctico de Ramsey contribuiu fortemente para essa transformação de cordeiros em lobos. O seu posicionamento, atrás do espanhol, no desenho do 4-2-3-1 - com van Persie, Wallcot e Gervinho à sua frente e Song no apoio defensivo - dá outro dinamismo à condução ofensiva dos londrinos. Os seus golos e assistências revelaram-se determinantes em Marselha e no duelo do último fim de semana contra o Chelsea de André Villas-Boas. O seu passe, no golo inaugural de van Persie, desmembrou por completo a eficiente linha defensivo dos Blues e o seu pulmão e inteligência táctica desmontaram o tridente do meio-campo do Chelsea.
Espera-se avidamente o regresso de Whilshere no Emirates e muitos começam já a especular se o técnico francês vai optar por manter o duo no meio-campo (abdicando de Song), se será o recém-contratado Arteta - bastante irregular desde a sua chegada a Londres - a ceder o posto à promessa inglesa ou se a ascensão de um destes novos prodígios do futebol britânico significará, no imediato, travar a ascensão do outro. Apesar de serem jogadores com perfil similar, Wenger já provou a Ramsey numa posição mais criativa, por detrás do trio da frente, e para muitos esse será o caminho a seguir. Depois do espantoso mês de Outubro o jovem capitão de Gales tem vontade de recuperar o ano perdido e para os londrinos isso só pode significar boas noticias. Se os destaques da imprensa vão para a febre goleadora de um superlativo Robbie van Persie, a verdade é que Wenger sabe que a mutação de jogo de um Arsenal que todos se preparavam para enterrar antes de tempo se deve, sobretudo, ao génio do galês.