Fechou o mercado de transferências (até Janeiro) e agora as águas turvas do mundo do futebol vão acalmar por uns tempos. Foi uma azáfama, uma corrida contra o relógio até à meia noite que deixou alguns negócios surpresas e muitas, muitas dúvidas (ou certezas) sobre como anda o desporto-rei. Começa a ser cada vez mais evidente que a total liberalização do mercado de transferências abriu caminho a um amplio submundo de dinheiro negro, sujo, escondido que o grande público não vê por detrás de negócios hilariantes e sem nenhum sentido desportivo. Portugal continua a ser um exemplo perfeito de como mexer no mercado por todos os motivos, menos pelo jogo em si, mas não é caso único. Sob a inoperância das grandes organizações directivas poucos se atrevem a dizer que... o rei vai nu!
Sempre houve negócios sujos e estranhos nos mercados de transferência, com luvas por debaixo da mesa e comissões por declarar.
Mas o que se viveu este Verão, e nos últimos porque isto vai in crescendo, reforça a teoria de muitos de que o mundo do futebol é cada vez mais um mundo tão perigoso e suspeito como o de qualquer actividade ilegal perseguida e vigiada pelas autoridades policiais. No livro Pay as Yoy Play, um grupo de estudiosos ingleses analisa as contratações nos últimos 20 anos da Premier League e chega a essa conclusão: hoje, uma transferência, é cada vez menos um negócio desportivo e, cada vez mais, uma forma hábil de lavar dinheiro, pagar favores e ganhar influência.
Portugal continua a ser um paraíso de corruptos, seguindo a tradição mediterrânica que se estende por Itália, Grécia, Turquia e Espanha, e como paraíso de corruptos que é, de Norte a Sul, o futebol continua a ser uma arena perfeita para negociar por debaixo da mesa o que ainda é ilegal às claras. Só isso pode explicar mais de uma dúzia de negócios realizados à última hora por parte dos grandes clubes lusos - os pequenos limitam-se a copiar, em menor escala, o que vêm funcionar nos graúdos - que encontraram em agentes FIFA - nomeadamente o todo poderoso Jorge Mendes - e em clubes aliados por essa Europa fora, parceiros idóneos para maquilhar contas, pagar velhos favores, ganhar novos amigos e, sobretudo, agradar a quem realmente manda hoje em dia no mundo do futebol: os empresários desportivos.
Granada, Zaragoza e Atlético Madrid representam em Espanha o que de pior se pode imaginar nesse submundo de trocas e baldrocas desportivas, tão putrefacto que nem as autoridades se atrevem realmente a investigar. Não surpreende, portanto, que tenham sido os parceiros perfeitos para os negócios mais surpreendentes dos clubes lusos que têm realmente algo que ganhar com este mercado de três meses que muitos suplicam que se reduza a um e termine a 1 de Agosto esquecendo-se de que isso é tirar o pão da boca a quem paga o desporto, os milionários que movem o dinheiro e os agentes que lhes servem de intermediários.
FC Porto, Sporting CP e SL Benfica continuam a ser clubes com gestões pouco transparentes e, sobretudo, repletas de manchas no que ao Fair Play desportivo implica, pelo menos segundo os critérios da UEFA que continua a lavar as mãos e a olhar para o lado enquanto assiste, impassível, a este mercadilho.
Não é assim em todo o lado. Em Itália há uma velha tradição de co-propriedade que permite a dois clubes partilhar o passe de um jogador num prazo máximo de dois anos até que um dos clubes, finalmente, compra a percentagem restante. Uma situação muito mais limpa e transparente que dá pouca margem de manobra para negócios surpresa de última hora (um clube estrangeiro tem de comprar os 50% a ambos os clubes para ficar com a totalidade do passe do jogador). Em Inglaterra houve muita agitação e, salvo o caso de Joe Cole (emprestado ao Lille), muitos negócios entre clubes da Liga. Mas tudo às claras, sem comissões escondidas e, sobretudo, sem fundos porque a Premier não permite que um passe seja detido por alguém que não seja um clube, algo que vem dos dias de Tevez e Mascherano. Mas também é certo que a Premier foi a primeira liga a abrir a borbulha e a permitir a chegada dos milhões do petróleo e gás, que encontraram em clubes de futebol a forma perfeita de lavar o dinheiro ilegal que iam ganhando nos seus países de origem. O caso dos argentinos levou a FA e a Premier a acordar a tempo para a nova realidade negocial e a travar - juntamente com a velha exigência de que os jogadores tenham um minimo de internacionalizações pelo seu país - esta derrapagem financeira. Mas esse negócio abriu precedentes.
Como os de Alex Sandro e Danilo, novos jogadores do FC Porto. Os azuis voltaram a romper o mercado graças a Falcao (e recusaram propostas por Alvaro, Fernando e Moutinho até ao fim) mas acabaram por investir pouco do dinheiro ganho (12 milhões em Defour e Mangala e alguns trocos entre Kelvin, Iturbe e percentagens de passes adquiridos). Essencialmente porque os quase 20 milhões que custam os dois brasileiros são cortesia do fundo que comprou ambos os jogadores e que pretende utilizar o clube das Antas como plataforma na Europa. Os jogadores actuam no FC Porto até que uma proposta maior permita aumentar a rentabilidade do investimento e ninguém se surpreenderá se daqui a um ano nenhum dos dois atletas fique na Invicta. Um negócio obscuro que não é nada novo nas manobras de Pinto da Costa no mercado sul-americano que começou há uns anos com a compra de percentagens de passes (algo que em Inglaterra é ilegal, por exemplo) e nos negócios com empresários de reputação duvidosa que utilizavam os seus próprios clubes plataforma, criados ou reestruturados para potenciar jogadores, para sacar o seu lucro. O negócio mais chamativo dos dragões inclui a venda de Falcao por 45 ao Atlético. Uma surpresa porque ambos os clubes estavam de relações cortadas com o caso Paulo Assunção (que chegou até à UEFA) mas que se explica porque nenhum outro clube estava disposto a pagar tanto pelo colombiano. E porque Jorge Mendes estava envolvido na transferência.
O agente FIFA, que fez de Madrid a sua casa (os seis jogadores que tem no Real Madrid, incluindo um desconhecido Pedro Mendes que já se estreou no troféu Bernabeu para rentabilizar um passe que pertence ao próprio empresário), incluiu Ruben Micael no negócio por valores que vão de zero a cinco milhões, dependendo das versões. Um jogador que o Atlético não queria e que acabou no Zaragoza, clube que está em concurso de credores, mas que pode vender e comprar jogadores porque a lei espanhola é assim, uma lei sem lei. O Deportivo que bem se queixou do trato preferencial dado ao clube aragonês já ameaçou denunciar os "maños" à FIFA e com razão. Um clube sem dinheiro, com dividas astronómicas, que acabou por ser o rei do mercado nos últimos dias graças ao dedo miraculoso de Mendes. Um clube que comprou por uns meros 500 mil euros o passe de Helder Postiga, o avançado titular do Sporting. Um clube que adquiriu o jovem Juan Carlos, promessa da cantera do Real Madrid que foi comprado pelo Braga (com ajuda de Mendes) para acabar junto ao Ebro. Isto claro sem falar do negócio Roberto com o Benfica que levou o clube das águias a justificar à CMVM que a venda de 8 milhões de um guarda-redes que custara...8 milhões (num ano em que o seu passo desportivamente se desvalorizou de forma absoluta e inequivoca aos olhos do Mundo) se devia a que Roberto tinha sido adquirido por um fundo (onde também está Mendes) e que o Zaragoza tinha pago umas migalhas. Zaragoza, clube que adquiriu mais 10 jogadores (entre vários internacionais se inclui Fernando Meira) e que vendeu um dos seus dianteiros, Uche, ao Villareal curiosamente pelo mesmo valor que era devido ao Getafe, o clube da sua procedência. Claro que Uche não vai jogar no Villareal mas sim no Granada, outro clube desta trilogia à espanhola envolvido intimamente com o futebol português. Detido por investidores italianos, onde se inclui o dono da Udinese, o Granada estreitou ligações com o Benfica, obtendo Jara, Yebda, Júlio César e Carlos Martins por empréstimo. Zaragoza e Granada, clubes sem dinheiro, com um estádio novo por construir, terrenos por alienar e amigos influentes no mundo da construção civil que se tornam alvos apetecíveis para tubarões de águas profundas.
Mas até históricos caem nesta rede de dinheiro que se move à velocidade da luz, aparece e desaparece, e permite a máquina continuar a funcionar. O Atlético de Madrid é o exemplo perfeito nas mãos de Gil Marin, filho do polémico Gil y Gil, e com a colaboração de Mendes. A chegada de Falcao é um exemplo perfeito mas mais interessantes são os casos do esquadrão bracarense e de Julio Alves. O irmão mais novo de Bruno Alves, que apenas jogou na Liga Sagres pelo Rio Ave, foi contratado para ser imediatamente emprestado ao Bessiktas onde, curiosamente (ou não), já jogam Simão, Manuel Fernandes, Bebé, Quaresma e Hugo Almeida. Todos "homens Mendes"!
De Braga chegou Silvio e um contrato de preferência sobre Pizzi, revelação no Paços, que acabou por aterrar no Calderon por um valor que pode chegar aos...15 milhões de euros, impensável para um jogador sem mercado, mais o empréstimo de Fran Merida, revelação espanhola por confirmar desde os dias do Arsenal. Mas se no Manzanares entram jogadores a preço de saldo, tal como sucedeu com Roberto - o Atlético também tem um novo estádio a ser preparado, relembro - saem jogadores com preços de mercado inflacionados. É o caso de Elias, descartado, raramente utilizado desde a sua chegada em Janeiro, que aterra em Alvalade pelos 8,5 milhões que custou. O Sporting, que mudou por completo o plantel de um ano para o outro, gastou pouco em muitos jogadores. Em Elias gastou mais do que arrecadou com todas as vendas e começam a voltar as suspeitas sobre a real saúde das finanças leoninas.
Casos graves que passam ao lado de investigações policiais sérias e independentes.
Mas que não são exclusivos de clubes lusos ou pequenas plataformas espanholas. Até um clube como o Real Madrid hoje depende dos empresários para confeccionar o seu plantel. Vejam o caso de Altintop. Um jogador livre, dispensado pelo Bayern Munchen, com uma grave lesão nas costas que acaba no Real Madrid de forma surpreendente. Para muitos talvez o que surpreenda é que o turco provavelmente nunca jogue com os merengues já que está prevista a sua venda ao Galatasaray no próximo Verão depois de um empréstimo de seis meses a começar em Dezembro. E porque chegou Altintop ao Real Madrid?
Porque o seu empresário é o mesmo de Nuri Sahin, a grande promessa turca que o clube merengue contratou ao Dortmund. Uma exigência do empresário (e do jogador, que é o "protegido" do capitão da selecção turca) foi sempre de chegar a Madrid acompanhado por Altintop para valorizar o seu passe de forma a que este pudesse voltar à Turquia sem problemas, já curado da sua lesão que, garantidamente, iria impedir a sua colocação durante o Verão em qualquer clube. O Real Madrid lutou contra a situação mas rendeu-se à evidência. E hoje oficialmente, Altintop é jogador merengue. Como Bebé foi jogador do Manchester United - sem o clube o ter visto sequer jogar - ou como Tevez ainda se move por Inglaterra sem saber-se realmente bem a quem pertence o seu passe.
Essa ditadura dos empresários, aliada à sagacidade de alguns dirigentes, tem condicionado por completo um mercado enlouquecido.
Na maioria dos casos os jogadores são conscientes do circulo vicioso em que entram. Aceitam contratos chorudos para paliar o mínimo impacto desportivo nas suas carreiras mas muitos deles voltam rapidamente ao ponto de origem, como virgens arrependidas. Outros deixam-se levar pela conversa de empresários e dirigentes e perdem-se completamente para o futebol, entregues aos excessos do dinheiro e ao mínimo controlo que o clube receptor exerce na sua carreira. A maioria dos casos são jogadores sem futuro a quem lhes custa muito recuperar. O caso de Ricardo Quaresma é, sem dúvida, o mais gritante. Negócio Mendes a três niveis, passou do FC Porto ao Inter, do Inter ao Chelsea por empréstimo e daí para o Bessiktas, desaparecendo a pouco e pouco o destelho de arte que o converteu numa das grandes promessas do futebol mundial. O mesmo se pode dizer de mil e um atletas, carne para canhão neste mundo de milhões que transformam presidentes de clubes em milionários, empresários em semi-deuses e treinadores em cúmplices de projectos desportivos que se desfazem. Manzano, Vitor Pereira, Jorge Jesus, Domingos Paciência, Javier Aguirre ou Leonardo Jardim são treinadores que viram os seus planteis aumentar e diminuir de forma descontrolada durante o último mês, sem saber realmente com quem contavam para trabalhar. Domingos ficou com um plantel praticamente novo. Jesus desmontou, quase definitivamente, a sua equipa campeã. Vitor Pereira ficou sem opções para zonas do terreno onde o FC Porto vive órfão e Leonardo Jardim limitou-se a acenar que sim quando António Salvador apareceu com o dinheiro no bolso. Realidades que os adeptos não entendem e que se estendem em clubes menores com compras em paquetes express a clubes sem expressão ou com o regresso de futebolistas perdidos em ligas como a romena, cipriota, grega, russa ou ucraniana e que tentam recomeçar do zero depois de terem sido abandonados, como cordeiros no altar, ao sacrifício do Dom Dinheiro.
O futebol continua a caminhar perigosamente para um túnel sem saída. O dinheiro que se move é cada vez maior e, sobretudo, cada vez mais oculto. Não se pagaram mais de 50 milhões por um jogador - como sucedeu nas últimas épocas - mas pagou-se muito dinheiro que ficou por declarar e justificar tendo em conta o rendimento de mais de um atleta. Projectos como o do Zaragoza sobrevivem com a cumplicidade da legislação, já de si construida para beneficiar quem mais tem a ganhar com ela. Clubes como o Benfica e Sporting entregam-se a negócios obscuros que dificilmente poderiam justificar e entidades como o FC Porto ou Atlético de Madrid continuam a utilizar os empresários e os misteriosos fundos para manter-se na ribalta quando financeiramente vivem na corda bamba do resultadismo. No caso dos portugueses, na constante presença na Champions League, no caso dos espanhóis nos empréstimos bancários e na borbulha imobiliária que definiu a vida de muitos clubes de futebol no país vizinho na última década. Olhando para estes nomes, números, para estas coincidências que não o são, para tantas suspeitas por justificar, é irónico ouvir a UEFA falar de fair play e as autoridades policiais a assobiar para o lado quando um negócio como o futebol, talvez uma das indústrias mais poderosas da actualidade, continua a ser pasto para corruptos e corruptores passearem à vontade sabendo que o risco é minimo e o lucro gigantesco. À medida que esses jogadores se movem, ocupando lugares em plantéis onde muitas vezes nem contam, os clubes abandonam a formação, a aposta em jogadores da casa ou em negócios desportivos realmente relevantes, ideias que se tornaram, na mente dos directivos de SADs quimeras quixotescas quando existe a possibilidade de ganhar milhões. Enquanto o mundo do futebol continuar a vier neste limbo muitos Julio Alves e Bebés acabarão na Turquia depois de sonhar com a glória da Liga Espanhola ou da Premier e muitos veículos desportivos, viagens de luxo, terrenos em zonas privilegiadas ou negócios bem mais perigosos passarão pelas mãos de quem realmente tem a bola debaixo do braço.