Victor Moses continua a actuar no modesto Crystal Palace. Tem sabido resistir às multiplas tentações. Mas até os mais aférrimos adeptos do historico conjunto londrino sabem que o seu profeta tem hora de partida. Com Barcelona e Arsenal a disputarem os seus serviços, o jovem anglo-nigeriano sabe que está a poucos passos de atingir o estrelato.
É pouco habitual que o Barcelona se deixe seduzir por um jovem estrangeiro que não seja "pescado" bem novo. Preferem a cultura blaugrana desde tenra idade como fizeram com Messi, Asulin, dos Santos e companhia. E no entanto Victor Moses tem deixado os olheiros catalães com a água na boca. Tal como os de meia Europa. E isto actuando num clube que vê lá bem ao longe as suas melhores épocas e milita tranquilamente nos lugares modestos da League One. Quando um jogador chama a atenção nessas circunstâncias é porque realmente tem algo de especial. E Moses tem-no!
Nascido numa pequena localidade nigeriana há 19 anos, o jovem com nome de profeta emigrou para Londres depois de cumprir os 11 anos a pedir asilo politico. A guerrilha muçulmana tinha assassinado os seus pais e o jovem foi enviado para o cuidado de uma família de adopção. Rapidamente se tornou num dos cracks do clube do seu bairro e chamou à atenção dos olheiros do Crystal Palace que o abordaram para integrar a sua equipa de formação. Aceitou o desafio e oito anos depois transformou-se no novo rosto do clube.
Aos 14 anos já era a estrela máxima do sector de formação do conjunto londrino apontando 50 golos numa só época. Começou por jogar a ponta de lança mas foi descaindo para a posição de extremo-esquerdo. Sob a orientação de Steve Kember foi progredindo no Palace até chegar às selecções jovens inglesas depois de um complicado processo de naturalização. Com 15 anos logrou a primeira internacionalização e um ano depois já somava 20 jogos e 10 golos pelos jovens Pross. Ao mesmo tempo que progredia no Palace Victor Moses tornou-se na grande estrela do futebol escolar inglês. Venceu a FA Youth Cup para a sua escola, Whitgift, chamando a atenção da comunicação social britânica.
A sua progressão foi de tal forma retumbante que aos 16 anos o técnico Neil Warnock não hesitou em chamá-lo à primeira equipa do Crystal Palace, então a militar na League One. No segundo jogo como profissional abriu a sua conta pessoal e tornou-se imediatamente em peça nuclear no lado esquerdo do ataque dos londrinos.
Esta temporada assumiu a titularidade desde o primeiro desafio e até agora actuou em 18 jogos apontando 6 golos. Além da rapidez que o destaque pelo flanco Moses destaca-se pela sua inteligência de jogo. De tal forma que as ofertas dos grandes europeus começaram a chegar em catadupa a Sellhurst Park. E como as dividias aindam não foram totalmente amortizadas, é bem provável que o jogador saia antes do previsto do seu clube de sempre.
Moses é provavelmente a maior promessa do futebol inglês actual. Rápido e letal, faz parte de uma geração de grandes promessas como o ainda jovem Theo Walcott, o também gunner Whilshire ou o citizen Richards. Um verdadeiro fenómeno da natureza que rapidamente dará o salto para os grandes palcos. Depois de fintar a morte na sua Nigéria natal, Moses dedica-se agora a fintar alegremente a vida nos relvados britânicos.
PS: Precisamente hoje, última dia do mercado, confirmou-se a transferência de Victor Moses para o Wigan da Premier League. Certamente que este ano voltaremos a ouvir falar, e muito, deste magnifico dianteiro.
Quando se olha para trás a selecção do Egipto desta década entrará nos registos como um dos maiores case-studies da história do jogo. Dominadora absoluta do continente africano sem nunca ter pisado os pés de um Mundial. Os que pensavam que a eliminação diante da Argélia tinha terminado com o reino dos faraós estavam bem enganados. O implacável Egipto voltou a mostrar o seu rosto mais temível e trucidou a Argélia. A coroa de África espera-os. Outra vez...
Será a terceira final consecutiva dos egipcios. Pode significar também um tri histórico. Nunca nenhuma equipa venceu tantas vezes seguidas a prova. E merecidamente. Ainda falta um jogo mas parece um trâmite. Nenhuma equipa se exibiu ao nivel do Egipto neste torneio angolano. Nenhuma equipa esteve perto, sequer, de roçar o nível dos Faraós. Seguros a defender, controladores a meio-campo, letais no ataque. Frente à Árgelia voltaram a ser iguais a si próprios e libertos de velhos fantasmas fizeram o que em três jogos não lograram na fase de qualificação: impor-se claramente diante dos Fenecs.
É extremamente curioso que o onze argelino, que voltou a mostrar todas as suas debilidades, tenha garantido precisamente o passaporte mundialista à custa dos egipcios. Como sucedeu há quatro anos com a Costa do Marfim e há oito com o onze do Senegal. Equipas mais débeis que na hora da verdade deram a estocada final. E sempre que cairam os egipcios ergueram-se. E fizeram do torneio continental o seu feudo inexpugnável.
Sem Aboutrika e Mido, duas figuras nucleares da selecção egipcio dos últimos dez anos, o Egipto manteve-se fiel à sua filosofia. Rápidos laterais - o genial Moawab é, claramente, um dos melhores laterais-esquerdos do futebol mundial - e avançados móveis e contundentes. Se os Quartos-de-Final foram totalmente de Hassan, hoje o jogador mais internacional da história, as Meias-Finais pertenceram a Zidan. O médio O jogo arrancou extremamente equilibrado, com El Hadary a voltar a brilhar para a história. Os remates venenosos dos argelinos não perturbaram os egipcios que continuaram a sua série de ataques à área argelina. Num desses lançamentos rápidos o demoniaco Motaeb isolou-se diante de Chaouchi antes de ser derrubado por trás por Halliche. O central do Nacional viu o segundo amarelo e acabou expulso. O penalty de Hosny fez justiça ao marcador e a primeira-parte acabava com a superioridade egipcia no terreno e no marcador.
O quadrado mágico egipcio a meio campo de Hassan Shehata, o grande maestro dos bancos africanos, voltou a encantar. A rápida circulação de bola e o apoio dos laterais-ofensivos desnorteou por completo os dez argelinos que começaram a perder a cabeça. Zidan pautou o jogo ofensivo do Egipto e pouco passados os 60 minutos matou o jogo com um golo repleto de oportunismo e talento. Um golo que matou o jogo e levou a Argélia a actuar, precisamente, como queriam os egipcios. Em vez de tentarem reduzir os argelinos passaram a última meia-hora em entradas violentas que levou o árbitro a expulsar mais dois jogadores. O Egipto agradeceu, marcou mais dois tentos, e consumou a doce humilhação. Nunca numa meia-final da CAN os egipcios tinham sentido tantas facilidades para marcar o bilhete da final. E se o Gana se está a revelar uma equipa mais europeizada - com um sólido sector defensivo e um bom aproveitamento do contra-golpe - a verdade é que a CAN 2010 voltou a provar que em África quem continua a mandar são os egipcios. Por muito que estranhe ao mundo.
A selecção dos Faraós é, provavelmente, junto com a Rússia, a melhor selecção que não irá ao Mundial da África do Sul. Duas selecções magnificas e eliminadas num duro play-off que explica muito a incerteza mágica de que se reveste o jogo. Mas um dominio como o que têm imposto os egipcios ao longo da última década não é habitual. E para a história ficarão sempre Hassan, Zidan, Aboutricka, Motaeb, Moawab, El Hadady, Abdelshafi, Gedo, Hosny e companhia. Uma geração magica que por razões que a própria razão desconhece nunca conhecerá o palco de um Mundial.
Foi uma das maiores polémicas dos anos 80 e travou a ascensão de uma das grandes promessas do futebol francês. De um lado o capitão do Saint-Ettiene. Do outro um Jean François Larios. No meio da tormenta a senhora Platini. Não foi a primeira vez que um jogador pôs em risco a carreira por uma mulher. Mas no final percebeu-se que Michel Platini tinha mesmo o estatuto de marechal de França.
Jean François Larios era uma estrela em potência. Em 1977 despontou no onze do Saint-Ettiene com uma naturalidade assustadora. Tinha chegado ao conjunto verde em 1973 depois de fazer a formação no Pau, clube do seu pai, um antigo internacional nascido na Argélia. Rápido, ágil e com faro de golo, a estreia como titular dos Verts surgiu com 20 anos. O jovem chegava a uma equipa de campeões onde pontificava outra jovem estrela, um tal de Michel Platini. Por essa época a reputação de rebelde perseguia-o junto dos técnicos e encantava os adeptos, desejosos de ver um jogador carismático. Após o empréstimo ao Bastia, tornando-se num dos jogadores da Ligue 1 e levando os corsos à final da Taça UEFA, o filho pródigo volta a casa. Levanta-se a polémica sob a sua ausência dos convocados para o Mundial da Argentina mas imediatamente após a péssima prestação dos Bleus na prova, Larios é convocado pela primeira vez. Todos estavam de acordo. Ali poderia estar o futuro lider da nova geração gaulesa. O apelido de "Grand Jeff" não enganava.
Com Johnny Rep e um jovem Michel Platini, o meio campo do Saint-Ettiene era demoníaco. Os passes precisos de Larios são determinantes na notável campanha na Taça dos Campeões Europeus e na revalidação do titulo de campeão francês. É eleito com imensa margem o melhor jogador do campeonato francês à frente de...Platini. Os bons amigos tornam-se rivais e o ambiente no balneário vai-se crispando a cada mês que passa. Platini reinvindica mais protagonismo e ameaça com sair para Itália onde Inter e Juventus o esperam. Larios tem ofertas do Real Madrid e Barcelona mas a direcção recusa-se a libertar as duas pérolas. E então chega o Mundial de Espanha. Os jogadores, já totalmente de costas voltadas, mal se falam e o balneário está tenso. E então dá-se o escândalo que iria marcar a própria prestação gaulesa na prova.
A imprensa francesa lança a noticia de que o jogador teria um caso extra-matrimonial com, Christele, precisamente a mulher de Michel Platini. O já capitão francês entra num estado de fúria incontrolável. Esteve perto de agredir fisicamente Larios e quando acabou dissuadido pelos colegas utilizou o seu estatuo. Ou Larios saía da equipa nacional de França, ou então saía ele. A Federação Francesa de Futebol e o seleccionador Michel Hidalgo tentaram acalmar o jogador mas a postura era irreversível. Na eminência de perder o lider da equipa - que tinha o apoio da esmagadora maioria do balneário - os dirigente preferiram sacrificar Larios. O médio, que tinha sido titular no jogo inaugural com a Inglaterra, foi relegado à bancada e convidado a sair do centro de estágio. No final da prova a FFF convocou-o a Paris para prestar declarações. Larios antecipou-se e anunciou publicamente que se retirava dos jogos internacionais.
Com Platini já a caminho da Juventus, Jean Larios decide ficar em Saint-Ettiene. Mas o ambiente é de cortar à faca e depois de um ano decepcionante convidam-no a sair. Pela porta pequena. O médio migra, primeiro para Espanha onde irá representar o Atlético de Madrid. Logo passa pelo futebol canadiano e suiço até que volta a França. A imagem manchada pela conservadora opinião pública francesa e a constante adoração à volta da figura de Platini marcam a sua carreira de forma irremediável. Durante anos é assobiado em todos os estádios por onde passa. Em 1986, com 30 anos, decide por um ponto final a uma carreira que esteve perto de atingir a brilhantez. Ao contrário, Platini, que deixa o futebol um ano depois, consagra-se como a grande estrela do futebol internacional. Para lá dos prémios individuais (incluindo 3 Ballon´s D´Or consecutivos) e das conquistas em Itália e com a selecção gaulesa, o número 10 transformou-se no icone do foot-champagne. E relegou para a obscuridade um jogador de um talento tão grande como o seu rebelde ego.
Os problemas no balneário muitas vezes ficam aí. O caso de Larios e Platini não é único. A fama de jogadores como Pelé, Romário, Ronaldinho ou Beckhambauer precedem-nos e ainda há poucos meses Luduvic Giuly e Robert Pires foram associados à mulher de Raymond Domenech, razão pela que tinham sido descartados pelo seleccionador. No entanto o caso de Larios foi especial. Porque se deu durante um Mundial. Porque privou a França de um dos seus melhores executantes. E porque serviu para demonstrar que até nas grandes equipas há muitos segredos negros por contar.
Materazzi celebra um triunfo histórico com uma máscara de Berlusconi. O Comité da Liga chama Mourinho a justificar as suas polémicas declarações sobre a verdade desportiva num país onde há nem meia década o campeão foi despromovido por corrupção. A Juventus de Ferrara afunda-se na classificação depois de muita polémica à mistura com a conivência da imprensa. E pelo meio o futebol italiano continua a viver o seu longo e tormentoso pesadelo. Um jogo cada vez para "buffones".
O Inter acabou com nove jogadores o derby de Milão. Na fria e seca cidade lombarda as pessoas reuniram-se à volta da segunda maior catedral do burgo, o belo San Siro, para um duelo daqueles que em Itália ganha sempre outras proporções. E assim foi. Uma vez mais. Gattuso dizia que Mourinho nem dormia, do medo que tinha ao renascido AC Milan. Mas dos rossoneri pouco se viu. E isso que o simpático árbitro até ajudou. Expulsou Sneijder de imediato e ainda teve tempo de mandar Lucio tomar banho mais cedo. Pelo meio o futebol ficou nas mãos dos guerreiros de Mourinho que, de novo sem espectáculo, deixaram KO uma equipa onde Ronaldinho, o regressado, andou desaparecido. De tal forma que até um penalty, esse pontapé que o mitico avançado brasileiro nunca falha, acabou desperdiçado. O Inter venceu, justamente, e manteve em nove pontos - que podem ser seis - a vantagem classificativa. E no final voltaram os "buffones" de sempre.
Marco Materazzi, o enfant-terrible do futebol italiano, entrou em campo a festejar com os colegas. O defesa de 36 anos não jogou, como tem sido hábito, mas fez a capa de todos os jornais com a sua máscara de Silvio Berlusconi. Um presidente sorridente. Mas o país não achou tanta piada. Para além de dono do clube milanês, Berlusconi ainda é primeiro-ministro. E depois de há um mês ter ido a Milão levar com uma réplica do Duomo na face, ontem saiu humilhado pelos seus eternos rivais. Só que em Itália nada é o que parece.
O jogador foi imediatamente crucificado e Berlusconi, uma vez mais, adoptou o papel de virgem ofendida. Num acto sem precedentes, a Liga italiana suspendeu o defesa por um jogo por ter "insultado a figura do primeiro-ministro". Hugo Chavéz não faria melhor.
E apesar de todos se terem rido do incidente, a Liga decidiu voltar à carga. Aumentou a suspensão a Wesley Sneijder para dois jogos, por "palavras injuriosas" à equipa de arbitragem e chamou José Mourinho para explicar as suas polémicas declarações contra a verdade desportiva do futebol italiano. O mesmo que ainda há quatro anos viveu sobressaltado pelo tão celebre Moggigate.
Itália tem uma relação especial com o futebol. Em vez de veteranos jornalistas, os programas desportivos são apresentados por mulheres de proporções mais do que generosas. Um painel de mais de dez convidados analisa, todos os fins-de-semana, cada lance, cada palavra, cada gesto do jogo. Já não se passam só resumos dos lances. Analisa-se a táctica de cada treinador e há muitas entrevistas em directo quando noutros países o black-out é mais do que habitual nas relações com a imprensa. E no meio de todo esse teatro, das campanhas jornalisticas, do vitimismo, vai grassando uma liga sem chama e apelo a um público cada vez mais rendido à eficácia germânica, ao show inglês e às estrelas que deambulam por terras espanholas. O Calcio definha e os "buffones" mandam no burgo.
Ninguém parece importar-se com a subida do nível médio das equipas de metade de tabela. Napoli, Palermo, Genoa, Parma e Sampdoria exibem-se a óptimo nivel. A Roma está de regresso à luta pelo titulo. E na parte baixa da tabela a luta é intensa. O futebol, no entanto, fica à porta. É Berlusconi, o omnipresente. É Mourinho, o maldito. É isto e aquilo. É pouco jogo.
A anedocta de Materazzi e as proporções que tomou só existem em países como a Itália. Países onde o espectáculo vale mais do que o jogo. Houve uma clara regressão desportiva num país que nos anos 80 e 90 iluminava as restantes ligas europeias. E no meio de todo o circo montado, olhamos para o pequeno rectângulo à beira-mar e percebemos que Portugal não é mais do que uma Itália em pequenino. E tudo fica mais claro!
O futebol é um desporto de massas e portanto rende-se facilmente à histeria. São as regras não-escritas do jogo. Num lance de um desafio há muito decidido o cotovelo de Cristiano Ronaldo encontra o nariz de Mtiliga, um defesa da escola antiga do Málaga. O sangue, os protestos, a casmurrice. O português acaba expulso e com a etiqueta de jogador violento sem controlo sobre si próprio. Mas afinal, qual é a verdadeira base do futebol?
Diz Cristiano Ronaldo que não é um jogador violento. É verdade. Que quem está no meio sabe que a expulsão sofrida no passado domingo à noite no frio Santiago Bernabeu é injusta. Também é verdade. E que só quer jogar. Acreditamos. E no entanto o rótulo está colado e será muito dificil de desprender. Em Espanha - e por arrastamento, no resto do Mundo - o extremo português é um jogador irresponsável, violento e egoísta. Todo o contrário do protótipo que a sociedade procura para os seus idolos. Talvez por isso Cristiano viva na corda bamba e saia sempre a perder nas comparações morais com Messi. O argentino é calado, apenas se percebe o que diz e não costuma resmungar. O Mundo toma isso como humildade, essa mesma humildade que a nossa podre sociedade exige aos que sãos melhores para justificar a sua impotência. Ser o melhor e não o dizer para evitar ferir a maioria é o truque. Cristiano Ronaldo ainda não o aprendeu. Dificilmente o fará. Felizmente.
A quem diga que tem de aguentar cada soco e pontapé. Que nunca deve responder. Reagir. Ser inerte, uma estátutua. Que a cada golpe deve parar e não devolver o golpe. O olhar. O gesto trapaceiro. Cristiano Ronaldo não é Gennaro Gattuso, um jogador genial mas que busca o confronto como quem busca o pão de cada dia. Nem é Pepe, que perdeu a cabeça sem qualquer antecedente e pagou caro por isso. É um jogador que quer ganhar e está disposto a tudo para isso. Desde quando isso é criticável? Talvez por isso é que haja tão pouca gente disposta a esse sacrificio.
E no meio de tudo isto a jogada é tão simples que surprende o rebuliço. Cristiano Ronaldo arranca no seu meio-campo para o meio campo quase vazio do Malaga. Um defesa despistado agarra-lhe a camisola para impedir o seu avanço no terreno de jogo. 99% dos jogadores teria parado, esperado pelo cartão e deixado o jogo pausar. O número 9 não é dessa estaleca. Continuou a correr, mesmo agarrado, para soltar-se pelos próprios meios de um lance sujo que os árbitros deviam imeditamente punir e nunca o fazem. Beneficiar o infractor no seu pior registo. É assim a "Liga das Estrelas". O campeonato do futebol espectáculo. Num desses movimentos em que se tenta libertar o cotovelo do possante português encontra o nariz do baixo defesa malagueño. O choque é inevitável e a fúria transforma-se em violência. Cai sangue, cai o vermelho. Anedótico.
Talvez seja mais ainda irrisório o lance se nos lembramos que há uma semana o eterno rival do português, o tal argentino que brilha no Camp Nou, arrancou no meio campo adversário agarrado por um defesa sevillista. Durante segundos Messi debateu-se como um leão para se soltar e prosseguir o lance. Com a diferença de que aqui o possante era o defesa e ele o baixito. Cada gesto de impotência era recebido pelo defesa do Sevilla com naturalidade. Não houve sangue, não houve vermelho. Não houve rótulo de violëncia. É assim o jogo.
Já Ronaldo foi expulso uma vez desde que chegou a Madrid. Num jogo com o Almeria. Onde também marcou dois golos. Recebeu um soco no pescoço, desses que o árbitro nunca vê e que os defesas são peritos em aplicar. Vingou-se com um pontapé que o defesa recebeu com o habitual espectáculo. O resto já se sabe.
O futebol é um desporto leal. Ao contrário do que se possa pensar. E Cristiano Ronaldo é um jogador correcto e sempre o foi. Mas tem caracteristicas que chocam com o socialmente aceite. A sua competitividade leva-o ao extremo facilmente. É daí que saca a sua raça. Mas num mundo de pequenos e pouco ambiciosos seres que se contentam em criticar tudo o que os rodeia, é um alvo fácil. Em Inglaterra começaram por chamá-lo de fiteiro. Com o tempo o extremo ganhou o seu respeito. Odiavam-no porque o respeitavam. Em Espanha, em cada campo que visita, é insultado do principio ao fim pelo público e pelos adversários. Recebe mais golpes do que qualquer outro jogador da liga espanhola. E não desiste. É o estofo de campeão que distinguiu outros enfant-terribles como Garrincha, Maradona ou Cantona. E que fazem dele a estrela que muitos craques tão bem comportados aos olhos dos rivais e dos árbitros nunca conseguirão ser. Uma questão de caracter.
E sucedeu o inevitável. Em ano de Mundial todas as esperanças estavam postas sobre as nações africanas. A CAN, pensava-se, seria o balão de ensaio ideal para o grande torneio de Junho. Mas as indicações que vão ficando desarmam os mais optimistas. A África do Magrebe continua a ditar as cartas na mesa e a África Negra que todos temiam volta a levantar muitas, muitas dúvidas.
A fase de Grupos já tinha deixado no ar que o Egipto - do que falaremos mais em detalhe noutra ocasião porque continua a ser um verdadeiro case-study - era a única selecção ao melhor nível. Os quartos-de-final comprovaram essa ideia. A África Negra até conta com um finalista assegurado. Mas não tem deslumbrado. E a cinco meses do Mundial fica no ar a sensação de que o sonho daqueles que querem ver uma equipa africana a levantar o troféu ficará, uma vez mais, adiado. Pode ser uma conclusão precipitada, mas contra factos dificilmente há argumentos. E o jogo de Camarões, Costa do Marfim - já eliminados - e Gana e Nigéria - semi-finalistas - deixa muito a desejar. A queda ontem dos Leões Indomáveis e a eliminação surpresa da Costa do Marfim, confirmam que o futebol africano continua a estar bem dividido entre os nomes e a força e o talento e a táctica. O futebol magrebino da Argélia e Egipto pode não dispor de estrelas do gabarito de Drogba e Etoo - desaparecidos ao largo de toda a prova - mas há naquelas selecções uma sensação de colectivo e disciplina que o futebol da África central e sul não conhece. Ver a teia montada por egipcios e argelinos é recuar décadas até à época da inocência do jogo. E houve realmente jogadores muito inocentes. Num duelo com uma equipa europeia ou sul-americana, mais matreiros do que qualquer onze africano, esses são erros que se pagam.
Se a Angola já tinha demonstrado que era fogo de vista, a tipica ilusão do anfitrião, já o jovem Gana desiludiu. O seleccionador ganês apostou na equipa que venceu o Mundial de sub20 e vários dos jovens dessa equipa mostraram-se a bom nível. Mas pareceram ainda muito verdes. Os ganeses marcaram e passaram o resto do jogo a defender, num exercicio de calculismo utilizado para esconder as deficiencias gritantes do conjunto que está na lista dos favoritos para o Mundial. A jogar assim é fácil antever que o Gana será uma presa fácil para a Alemanha e Sérvia, muito mais incisivos e metódicos. E letais na hora H. Também a Nigéria, a última a qualificar-se, exibiu o seu pior rosto em largos anos. Depois de uma fase de grupo deprimente, as águias verdes tinham oportunidade de se redimir frente à surpresa chamada Zâmbia. Não conseguiram. Foram lentos, previsiveis e sem chama. A defesa nigeriana errou de forma constante e ao rival faltou aquele sentido de oportunidade que falta às grandes equipas. O apuramento no sofrimento dos penaltys depois de um agonizante empate a 0 em 120 minutos diz muito da inoperância dos nigerianos que no próximo Mundial terão mais sorte que outros. Argentina, Grécia e Coreia do Sul são rivais acessiveis mas o nível futebolistico dos nigerianos terá de subir uns bons degraus.
Para o fim deixamos os casos mais claros. Os favoritos.
Camarões e Costa do Marfim continuam a sua particular via sacra na CAN. As duas formações apresentam-se como as mais emblemáticas do continente e muitos depositam neles grandes esperanças. E o seu jogo também se assemelha. Tal como os seus defeitos. Treinados por europeus experientes, tanto os camaroneses como os marfilenhos vivem da desordem. São equipas que apostam na velocidade e pressão no ataque mas que carecem de miolo, de cultura táctica na defesa. Facilmente surpreendidos no contra-golpe, manobráveis no meio campo e superáveis com uma defesa capaz de anular as suas peças-chave, o futebol de Camarões e Costa do Marfim foi, durante os jogos disputados, absolutamente previsível. A vitória do Egipto ontem, apesar de lograda no prolongamento, resultou de um trabalho de analise metódico pelos egipcios. Os camaroneses nunca estiveram cómodos sobre o relvado. Já a Costa do Marfim mostrou ter um bom ataque mas uma defesa de papel. Em cinco minutos sofreu dois golos impossíveis. Desses que matam. Portugal que tome nota. Defender bem, circular a bola no miolo e ataques incisivos. É só o que é preciso para dobrar uma equipa que teima em não vencer a CAN e que agora se apresenta na mó de baixo para um Mundial que muitos queriam que fosse seu.
O norte de África será representado pela Argélia. Uma equipa muito organizada atrás mas pouco incisiva no ataque. Dos argelinos pouco se espera e agora resta ver como lidarão com a pressão dos egipcios nas meias-finais, onde se discute mais do que um lugar no último desafio. O Egipto quer limpar a honra ferida. Com a África do Sul como organizador-fantoche, as esperanças dos adeptos africanas ficam resumidas a quatro equipas que continuam a anos-luz dos grandes. Apesar dos imensos talentos que vão brotando do continente, o dominio da técnica e táctica continua a ser, em muitos casos, um quebra-cabeças. Resta ver o que nos reserva Junho nesse Inverno africano que a tantos tem deixado com uma interrogação na mente.
Quem está habituado ao jogo de cartas sabe que ter uma mão de Poker é o sonho de qualquer jogador. Alex Fergusson sabe disso. É um veterano nessas andanças e sabe que, apesar de ter vendido Cristiano Ronaldo, continua a ter na manga um verdadeiro Poker. Quatro rostos de um mesmo jogador, o simbolo actual da Premier League.
Quatro ases. Um Poker.
É assim Wayne Rooney. Mais do que o poker de golos marcados ao Hull City. O dianteiro do Manchester United é um verdadeiro quatro em um que faz a diferença em qualquer equipa. A saída de Cristiano Ronaldo - e de Carlos Tevez - pode ter diminuido o arsenal ofensivo do United. A equipa não é tão acutilante e ofensiva como nos dias de CR7, é verdade. Mas com Rooney ganhou outra profundidade. Porque o jovem dianteiro inglês é um jogador cada vez mais completo. A saída do seu amigo português abriu-lhe as portas que faltavam para se tornar no verdadeiro lider da equipa. Hoje ele é o rei de Old Trafford.
Disciplina táctica inusual num jogador britânico. Espirito de sacrificio e força fisica acima da média. Oportunismo goleador como poucos dianteiros no futebol de hoje. E uma liderança nata. Quatro ases. Um poker. Uma estrela que brilha este ano mais intensamente que nunca no Teatro dos Sonhos.
No duelo de sábado contra o modesto Hull City o Manchester United foi avassalador. Graças a Rooney.
O avançado este ano soube dizer presente sempre que a equipa precisava dele. Forçada a levar com o peso da equipa às costas, face ao envelhecimento da espinha dorsal dos Red Devils e à dificil afirmação de muitos dos jogadores escalados por Ferguson, o jovem internacional inglês tem uma equipa à sua medida. A sua velocidade permite-lhe explorar os flancos como poucos jogadores. O seu killer instinct torna-o fundamental na área. E a sua voz de comando hoje eleva-se perante tudo e todos. Foi assim com o Hull. Quatro golos repleto de oportunismo, magia e sacrificio. Enfim, quatro golos de um dianteiro de classe que o ajudam a colocar o Manchester United na liderança de uma Premier mais emotiva do que nunca. Uma Premier que tem o seu particular Poker de Estrelas. Drogba, Torres, Fabregas e Rooney. Um quarteto de luxo num ano em que o inglês se tem destacado dos demais. Não só pelos golos que já leva e que lhe podem valer bem a sua primeira Bota de Ouro. Mas também pelas assistências e pela forma que vem exibindo. Com os Red Devils a entrar em meses fulcrais para definir o futuro na época doméstica, Sir Alex precisa do seu general mais do que nunca. E ele diz presente.
Fabio Capello espera este Rooney. Um lider nato capaz de levar a Inglaterra onde génios como Keegan, Shearer, Lineker ou Beckham nunca conseguiram. Tem ambições legitimas particularmente se for este o jogador que chega em Junho. Hoje, Wayne Rooney assume-se como um dos elementos mais desiquilibrantes do futebol mundial. Cada vez mais se percebe que a queda em Roma do United deveu-se muito ao desaparecimento do inglês e não ao génio endiabrado de Lionel Messi. Agora sem a sombra de CR7 o avançado quer conquistar o seu primeiro titulo. Seu. Como lider. Como rei de Old Trafford. O titulo de um autêntico Poker que ameaça com levar toda a mesa para casa.
A história do futebol holandês sempre se construiu à base de virtuosos. A defesa foi sempre deixada para segundo plano. Talvez essa tenha sido o calcanhar de Aquiles que os fez soçobrar tantas vezes. E se pela esquerda sempre se encontraram opções, pela direita é dificil fazer memória de um jogador inesquecível. O futuro, no entanto, já está aí. Esse é o corredor de van der Wiel.
O Ajax continua - apesar da gravíssima crise desportiva - a ser uma das melhores escolas de formação do mundo. Só que mudou de vocação. Nos últimos anos dedicou-se ao sector defensivo e tem lançado verdadeiras pérolas. Poucas brilham já de forma tão intensa como o jovem holandês de 22 anos que um dia ousou dizer ao seu treinador que seria o melhor do mundo. Esse espirito de rebelde com causa tornou imediatamente van der Wiel num case-study.
Nascido em Amesterdão em 1988, mais um producto dessa multiculturalidade que dá cor à cidade que ganhou ao mar, o lateral demorou 20 anos a fazer-se notar. E agora o futuro está pendente do próximo passo. Desde pequeno começou a fazer parte da formação ajaccied. E apesar do seu 1m82 nunca perdeu o toque da velocidade que fazem das suas explosões uma arma absolutamente desequilibrante. Aos 8 anos já andava pelos infantis do Ajax. Aos 15 os pais mudaram-se e ele teve de transferir-se para o modesto Haarlem. Mas dois anos depois o Ajax foi repescá-lo de forma definitiva. Com 19 anos passou a treinar habitualmente com a equipa principal e estreou-se como titular em Março de 2007.
Foi Marco van Basten, impressionado com o seu carisma, que lhe deu no ano seguinte a titularidade e o número 2. Não voltou a largar ambos. As suas arrancadas tornaram-se fulcrais na manobra de jogo da equipa e van der Wiel começou a mostrar a sua faceta ofensiva com golos e assistências. No final da época já somava mais de 40 jogos pela primeira equipa e a sua primeira internacional. O ex-adjunto do seu treinador em Amesterdão, van der Maarjwick, seguiu o conselho de van Basten e chamou o jovem lateral. O número 2 não desiludiu e rapidamente deu entender que o lugar é seu para a viagem à África do Sul. Depois de ter já brilhado com os sub-20 em Toulon disputou três jogos pelos seniores. Todos com nota máxima.
Na equipa holandesa van der Wiel continua, agora sob o mandato de Martin Jol, a ser determinante. Com Verthoygen, Alderweild e Emanuelson forma um quarteto defensivo de luxo. Ofensivo, jovem e desequilibrante. A equipa perdeu pontos importantes e já está longe do primeiro posto mas a sua qualidade futebolistica emerge jornada após jornada. Polémico como poucos - um incidente com o Twitter quase causou o seu afastamento do Orange - e com um caracter dificil, van der Wiel já sabe que tem meia Europa atrás de si.
Veloz, com bom posicionamento e extremamente ofensivo, o holandês parece ser o herdeiro natural do brasileiro Daniel Alves como melhor lateral direito ofensivo do futebol europeu. Mostra caracteristicas já de grande maturidade e em Amesterdão sabem que dificilmente ficará no Arena durante mais tempo. Pode ser que uma arrancada veloz pelo seu corredor num qualquer estádio da África do Sul seja o suficiente para o levar às estrelas.
Por momentos Kafka vestiu-se de negro e viajou de dimensão. Aterrou num relvado africano e esperou. A lei das probabilidades no futebol não existem. Esfumam-se como a erva mal tratado dos imensos relvados que despertam o adepto do sono profundo. Ou será sonho. Depende para quem. No Gabão ainda ninguém quis despertar do sono confundo. Drama oblige. Na Zâmbia o tempo é de festa. O futebol é assim, mais imprevísivel que a própria vida.
Três equipas, quatro pontos. Três festejos. Que fazer?
Um final de infarto, desses que dá razão de ser àqueles que dizem que na CAN se vive mais perto da essência do jogo. Depois do vergonhoso calculismo dos angolanos e argelinos - que provavelmente pagarão a sua insolência mais cedo do que prevêm - chegou a magia da incerteza. Da dúvida. Do imprevisível. O Grupo D revelou-se o mais democraticamente possível num continente onde esse conceito ainda é desenhado de forma túrbia. Ignorou a condição de favoritismos e virou as contas do avesso dos mais previsiveis. Que se os Camarões eram os favoritos ao titulo. Que a Tunísia queria lavar a má imagem deixada na qualificação para o Mundial. E que no Gabão e Zâmbia nada sabiam de futebol. Enfim, frases feitas como só o futebol domina. No minuto 93 ambos árbitros terminaram os respectivos encontros. E todos se lançaram a festejar. Camaroneses, zambianos e gaboneses. Mas não há só duas vagas para os Quartos? Afinal há metamorfoses que só o beautiful game sabe explorar.
O Gabão foi a sensação da primeira ronda. Chegou ao último jogo lider e com um empate como resultado mais do que suficiente para seguir em frente. E fazer história em largos anos. Os gaboneses nem queriam acreditar depois da vitória frente aos Leões Indomáveis (e adormecidos) e o nem o empate com a Tunísia parecia arrefecer os ânimos. A Zâmbia era um trâmite, e pouco mais. Do outro lado uma formação humilde que empatara a abrir com os debéis tunisinos mas que não resistiram a Etoo e companhia. Um ponto e poucas esperanças. A longos quilómetros da savana angolana Etoo queria ressuscitar - e evitar se possível o Egipto, carrasco há dois anos dos camaroneses - enquanto que o onze tunisino procurava lavar a cara de uma prestação para esquecer. Os dias anteriores tinham confirmado o estatuto dos favoritos. Exceptuando o Mali - que caiu diante de Angola - todos os outros favoritos tinham passado o trâmite inicial. Ninguém esperava grandes mudanças. Mas o futebol continua a ser mais do que um jogo de 90 minutos. E a magia que envolve o jogo move-se entre forças indecifráveis. Aos poucos segundos de jogo a Tunisia marca. Com este resultado está apurada, junto com o Gabão. Sem Geremi e com Etoo adormecido, os Camarões desesperavam. Aos trinta minutos Kalaba, que o Braga emprestou ao Leiria, marca. Silêncio absoluto. A Zâmbia surge na liderança do grupo. Ao intervalo o mundo estava de pernas para o ar. A realidade transformou-se e Etoo empatou, no reatar do desafio. Minutos depois os zambianos voltam a marcar. E subitamente lideravam o grupo em goal-avarege frente aos camaroneses e gaboneses. Até que os tunisinos voltam a marcar e a colocar-se nos Quartos. Um sonho de um minuto até novo empate. Ainda havia folha livre para fechar o capitulo. O golo do Gabão. E a dúvida no ar. Quem se apurava realmente?
A CAF foi obrigada a recorrer ao terceiro critério de desempate. Zâmbia, Gabão e Camarões tinham os mesmos pontos e a mesma série de resultados: vitória, empate e derrota. E o mesmo goal-average. Foi nos golos entre si que se encontraram os felizardos. Mas todos sairam a festejar. Os camaroneses abraçados aos zambianos. Os gaboneses a celebrar solos no relvado. Até que um homem de fato e gravata, como desses que passeavam pelas ruas cinzentas de Praga, lhes disse que era hora de acordar. E voltar a casa. O futebol continua a ser assim, mágico como um continente. À Zâmbia esperam-lhe os nigerianos. Os camaroneses terão de se haver com a sua história mais recente. Os angolanos acreditam no seu poder mistico sobre os ganeses e a Costa do Marfim prepara-se para o embate frente à Argélia. O surrealismo africano é impar. A festa continua até que o último copo se esvazie.
O futebol é um desporto de semi-deuses mas nunca nenhum deles mostrou ser omnipresente. Até que chegou Soren Lerby. Na mágica Danish Dynamite que maravilhou o futebol da década de 80 havia vários génios. O inconstante e cerebral Laudrup, o velocista Simmonsen e o eterno fumador Elkjaer Larsen. Mas nunca nenhum dos três logrou o feito histórico do mitico Soren Lerby. No mesmo dia Lerby provou ser omnipresente.
Os registos do mundo do futebol estão repletos de episódios curiosos, daqueles que passam ao lado dos mais distraidos. Na vida de Lerby há vários episódios assim. O médio dinamarquês foi um verdadeiro enfant-terrible numa era onde aos jogadores ainda era permitido muito pouco. Membro estelar de uma geração histórica do futebol dinamarquês - e europeu - Lerby era especial.
No caracter, no estilo de jogo e na determinação. Foram essas as principais caracteristicas que o celebrizaram no campo. E fora dele. Lerby nunca virava as costas a um desafio e tinha um espirito competitivo inimitável. Passou a adolescência a jogar em pequenos clubes amadores dinamarqueses numa era onde o profissionalismo ainda era quase uma ilusão. Quando Allan Simonsen começou a ganhar fama internacional as equipas europeias voltaram-se para o mercado nórdico. Numa das viagens dos seus olheiros, o Ajax descubriu o jovem e recrutou-o com apenas 17 anos para a sua equipa principal. O médio actuou pelo conjunto ajaccied durante oito largas épocas onde venceu cinco títulos e foi eleito capitão de equipa, antes de se mudar para o poderoso Bayern Munchen. Foi em 1983 e rapidamente se tornou pedra basilar do conjunto bávaro. Por essa altura já era o peso e medida do meio-campo da Danish Dynamite de Sepp Piotnek. E foi a sentir-se dividido entre dois compromissos inadiáveis com o seu clube e selecção que Lerby fez história.
O feito que o faz ser recordado ainda hoje teve lugar num chuvoso 13 de Novembro de 1985.
O futebol europeu não tinha ainda a mesma estructura organizativa de hoje e era muito comum haver jogos de distintas competições no mesmo dia. Isso implicava um problema para as equipas e jogadores que eram forçados a escolher entre manter-se fiel à sua selecção ou seguir com o clube que lhes pagava o salário. A maioria assinava acordos entre a federação e clube. Lerby não o fez. O seu caracter impedia-o de optar. Nesse dia Lerby tinha dois compromissos e estava determinado a não faltar a nenhum deles. E portanto, logrou o impossível. Tornou-se omnipresente.
Às 12h00 da manhã apresentou-se com os seus restantes colegas no relvado de Dublin. A Dinamarca visitava a Irlanda e o jogo era decisivo para confirmar o apuramento dinamarquês para o Mundial, pela primeira vez na sua história. Lerby juntou-se aos seus colegas e tomou parte na histórica vitória por 1-4. Com o terceiro golo dinamarquês, dez minutos depois do intervalo, o médio pediu a substituição. Foi ao minuto 58. Sem tomar banho saiu imediatamente do estádio com um motorista privado que o levou ao aeroporto da cidade onde o esperava um jacto privado fretado pelo Bayern Munchen. O avião levou-o até Bochum onde o clube bávaro disputava uma eliminatória da Taça da Alemanha. Depois de aterrar o avião o jogador rumou ao estádio. Chegou aos 35 minutos de jogo decorridos. Ao intervalo foi lançado para o relvado e ajudou o Bayern a empatar, depois de ter começado a perder. Tinha acabado de fazer história. O primeiro futebolista a actuar, no mesmo dia, por duas equipas diferentes, em países diferentes e competições diferentes. Omnipresente.
A carreira de Soren Lerby foi mágica. Depois da era bávara, o médio viajou até França onde actuou pelo AS Monaco. Atraido pelo estilo de vida de playboy da capital monegasca o médio passou apenas uma temporada na Ligue 1 antes de voltar à Holanda onde assinou pelo PSV. Esteve na final da Taça dos Campeões Europeus que os holandeses bateram o SL Benfica antes de se retirar com o ouro europeu ao pescoço. Atrás de si deixou um registo notável de 67 internacionalizações, um Mundial, dois Europeus e 1 Taça dos Campeões, para além das vitórias nas ligas holandesas e alemãs. Mas com o passar do tempo os titulos foram caindo no esquecimento. Mas que um dia Lerby tenha desafiado o tempo e espaço, isso é uma recordação que não tem preço.