Há muito que as trevas tomaram conta do futebol português. A falta de civismo, de fair-play, de exercício democrático por parte de dirigentes, técnicos, jogadores, comentadores e adeptos "argentinizou" ao extremo o futebol em Portugal. A situação chegou a tamanhos extremos que a vitória de um campeonato de um clube invicto passou a segundo plano porque, uma vez mais, o mau perder habitual do dirigente português estraga qualquer celebração meritória. Culpas para todos no cartório numa noite histórica, a titulo desportivo. O SL Benfica falhou na época passada confirmar o titulo no campo do rival. Nesse jogo começou a desenhar-se o FC Porto campeão em 2011. Que não tremeu no terreno do rival e fechou, com chave de ouro, o seu 25 campeonato. A luz durou 90 minutos. Os novos campeões trataram simbolicamente de a apagar. O resto é pura pequenez moral.
Há 71 anos que o FC Porto não vencia um campeonato, matematicamente, no terreno do eterno rival.
Um feito pouco habitual no futebol português. Houve jogos que decidiram títulos mas quase nunca sem as matemáticas do seu lado. Tanto encarnados como azuis e brancos sabiam de antemão o desfecho desta época. Uns queriam antecipar a festa, outros atrasá-la o máximo de tempo possível. Era uma questão de honra e de orgulho, não de matemática. Uma premissa que se tinha vivido na época transacta. Então a "máquina de matar" de Jorge Jesus chegou ao Dragão com a ambição de fazer história. Foi derrotado em toda a linha e teve de sofrer até aos instantes finais do último jogo para confirmar um titulo que a imprensa (e o próprio técnico encarnado) tinham anunciado com meses de antecipação. Desta vez o cenário não se repetiu. O FC Porto de André Villas-Boas nunca necessitou do consenso popular e dos meios de comunicação social para explicar, no tapete verde, a sua imensa superioridade na época corrente. Dezasseis pontos de avanço sobre o segundo classificado, a cinco jogos do fim, explicam bem a dimensão do 25º titulo azul e branco. A invencibilidade (dois empates, tudo o resto triunfos), é uma curiosidade estatística mas também demonstra a autoridade com que os dragões entram em campo. Na Luz repetiu-se o cenário.
O FC Porto foi sempre a equipa menos nervosa, aquela que tinha a faca e o queijo na mão. Agradeceu a Roberto a inestimável ajuda, uma constante na época, soube sofrer com o golo do empate e com um jogador a menos durante boa parte do segundo tempo e matou o jogo de forma cirúrgica. Podia até ter ampliado a vantagem em vários lances de contragolpe. Podia também ter sofrido o golo do empate, quando o Benfica, à desesperada, como tem sucedido demasiadas vezes este ano (com o evidente desgaste físico e mental acumulado) tentou o tudo por tudo. Jesus não teve argumentos tácticos - como sucedeu na excelente vitória nas meias-finais da Taça de Portugal no campo do rival - nem paciência para sofrer. Podia-lhe mais o orgulho de não cair diante dos seus. Os adeptos não souberam empurrar a equipa - à distância de muitos quilómetros, ouviam-se mais os gritos de raiva dos adeptos visitantes - e nem a constante violência do onze encarnado (quase todo amarelado, com direito a expulsão de Cardozo, que só jogou metade do encontro) serviu para estragar um espectáculo futebolístico. O FC Porto selou a sua superioridade desportiva depois de ter mostrado que era a equipa mais constante, mais organizada e mais preparada para o choque. No ano transacto o Benfica venceu metade dos jogos com os rivais directos (SC Braga e FC Porto). Este ano os novos campeões trataram de selar a sua superioridade ao bater Benfica e Braga nos dois encontros, sem deixar grandes margens para dúvidas. O titulo, desportivamente, não tem qualquer contestação.
Mas quando em Portugal se devia falar de futebol jogado - que não vive, propriamente, na abundância - tudo acaba por derivar para o futebol politizado, estragado pela postura de directivos e profissionais do disparate. A semana prévia ao Clássico tornou-se no microcosmos perfeito que define o futebol português actual. Houve proibições ilegais, anuências das autoridades competentes desrespeitando os seus próprios regulamentos. Houve apedrejamentos de parte a parte, incitação à violência, declarações de guerra pouco transparentes. Houve jogadores que entraram em campo sem dar a mão a 11 meninos que destas guerras ainda entendem, felizmente, muito pouco. Houve frangos, bolas de golfe, petardos e cargas policias. Houve dureza no relvado e falta de hombria nas declarações finais dos perdedores. E, acima de tudo, houve aquele gesto que define bem o portuguesismo contemporâneo, o chico-espertismo e o mal perder de um país que se tornou na América Latina do futebol europeu há muitos anos e que continua a mostrar à Europa, à Europa a que anseia pertencer de pleno direito, que vive num planeta à parte. Em primeiro lugar fica por explicar a atitude da Liga de Futebol Professional, que gera a competição Liga Sagres.
Depois de anos a adiar ao ano seguinte a entrega do troféu, em 2010 determinou-se, e com toda a lógica, a entrega do troféu de campeão no acto a quem de direito. Uma prática corrente em vários países europeus e que permitiu ao SL Benfica celebrar, diante dos seus, com toda a naturalidade o titulo do ano transacto. No entanto, sabendo da possibilidade matemática, concretizada, do FC Porto repetir o feito, não houve sequer uma referência das autoridades em repetir a mesma sábia postura um ano depois. Em Espanha e Inglaterra, quando uma equipa se sagra campeã, não se lhe entregam o troféu, como o rival tem de fazer o chamado "pasillo", por onde os campeões desfilam vitoriosos. Uma prática de fair-play que em Portugal se torna cada vez mais, inimaginável. Não só a Liga permitiu a não entrega das faixas no dia adequado como deixou passar em branco o súbito apagão, e o despertar "imprevisto" dos aspersores de água à la Camp Nou, que ensombreceu mais a alma torturada do adepto benfiquista, forçado a contemplar um feito histórico no seu recinto, do que a festa azul e branca. O acto, insignificante à priori, porque os festejos naturalmente continuaram na Luz e noite fora, por todo o país, diz muito dos dirigentes encarnados, os principais responsáveis pela escalada de violência verbal e física em que vive o futebol português nos últimos anos. Uma realidade indesmentível e que esconde uma outra, desportiva, que não deixa mentir. Nas últimas 15 épocas o clube encarnado venceu a prova por duas vezes, tantas como o Sporting e uma mais que o Boavista. As restantes 10, já se sabe onde foram parar.
A cultura de sobrevivência do FC Porto voltou a vir ao de cima. Desde 2002 que os azuis e brancos não passam mais de um ano sem saborear o titulo de campeão. Estão a sete dos espantosos 32 troféus ganhos pelo Benfica com a adenda de que, nos últimos 30 anos, mais de metade dos troféus foram parar à Invicta. Como apontou André Villas-Boas, um dos artesões deste regresso dos dragões ao topo da Liga Sagres, esse é um facto cultural e social indesmentível pelos números. O resto, as notas artísticas, as vitórias épicas, a superioridade moral e o discurso da suspeita, no final de contas, e no tapete verde, à vista de todos, onde o resultado final se decide, conta muito pouco. O espectáculo chegou ao fim, o último a sair apague a luz por favor!