A improvável vitória da Sampdoria na Serie A de 1991 foi o culminar de uma campanha demoníaca dos legionários de Vujadin Boskov. O Luigi Ferraris transformou-se na caixa de pandora do Calcio e na ressaca mundialista o clube pequeno de Génova tornou-se no clube grande de Itália. Uma história de glória efémera mas com feitos extraordinários que a história jamais apagará.
Pagliuca. Vierchwood. Mannini. Lana. Pellegrini. Toninho. Katanec. Mikaylichenko. Lombardo. Vialli. Mancini.
Onze nomes que a cidade de Génova nunca poderá esquecer. Durante dois anos a cidade portuária da Ligúria, berço da primeira grande equipa italiana da história - o eterno rival Genoa - voltou a ser o coração do Calcio. Um fábula que provou que no futebol - ou pelo menos, no futebol pré-Bosman - tudo era verdadeiramente possível. O conjunto genovês com o equipamento mais belo, quiçá, do futebol europeu, conseguiu em dois anos o que muitos clubes tardam toda a vida em lograr. A vitória na Serie A, a uma jornada do fim, em 1991, foi histórica. A final da Champions League perdida, no ano seguinte, frente ao Barcelona, o principio do fim. Entre esses dois anos os Blucerchiatti puderam sonhar.
A equipa que arrancou a época de 1990 era praticamente a mesma que disputara, na Primavera anterior, a sua segunda final consecutiva da Taça das Taças. Os genoveses tinham perdido contra o Barça, a sua besta negra como se veria, em 1988 mas no ano seguinte bateram o Anderlecth para conquistar o seu primeiro trofeu europeu. Uns meses depois, frente ao todo poderoso AC Milan, Boskov e companhia estiveram perto de vencer, também, a Supertaça Europeia. Era o prenúncio da formação de uma equipa altamente competitiva. A equipa mantinha a estrutura e reforçava-se com o soviético Mikhaylechenko, pedra basilar do Dynamo Kiev de Lobanovsky que finalmente dava o salto rumo ao Ocidente. A equipa arrancou o ano com uma modesta vitória frente ao Cesena mas demorou a arrancar. A 28 de Outubro, em San Siro, uma vitória por 1-0 frente ao AC Milan (golo inesquecível do brasileiro Toninho Cerezo) deu a entender que a dinâmica dos azuis mudava a pouco e pouco. A partir daí a Sampdoria entrou numa serie de jogos decisivos sempre a ganhar (exceptua-se a derrota no derby, por 1-2) em que bateu expressivamente o Napoli de Maradona, a campeã equipa do Inter e a AS Roma de Voeller e companhia. A liderança do campeonato, algo inédito no historial do clube, tardou algumas jornadas em chegar por culpa de tropeços inesperados (derrotas com Torino e Lecce) mas chegou com uma vitória face à Juventus de Baggio. A partir daí os homens de Boskov tornaram-se no alvo a abater.
Alinhando num 4-4-2 profundamente dinâmico, com Lombardo e Toninho no apoio directo ao duo de ataque mais celebre do futebol italiano (e com Vierchwood, Katanec e um jovem Pagliuca a comandar, imperialmente, o sector defensivo), o Luigi Ferraris transformou-se com a sua equipa e tornou-se num verdadeiro inferno. A equipa recebeu - e venceu - AC Milan, Napoli e Inter, os três últimos campeões, e a 19 de Maio, a uma jornada do fim da época, confirmou o titulo com uma desforra expressiva face à Lecce. A vitória por 3-0 confirmou o titulo e também o prémio de Capocanonieri, com 19 golos, para o flamante Gianluca Vialli. Era a consagração definitiva de um estilo que tinha abandonado o catenaccio puro para abraçar um jogo ofensivo e dinâmico que teve a sua devida recompensa. A Samp falhou apenas a dobradinha por cair diante da AS Roma na final da Taça de Itália - a sua prova fetiche dos anos anteriores - depois de se revelar incapaz de dar a volta na segunda mão, em Génova, ao mau resultado do primeiro jogo (3-1, derrota no Olimpico da capital).
Com 20 vitórias e 57 golos marcados, a Sampdoria foi a equipa mais ofensiva do último ano da era Sacchi (que se manteve como a melhor defesa da prova). Mas a glória caseira acabaria por revelar-se sol de pouca dura. Na época seguinte Boskov decidiu colocar todas as fichas na ambição europeia do presidente Mantovani e esqueceu-se do dificil que era manter o Scudetto numa liga com tantos pretendentes. Na Europa a missão dos genoveses foi superado contra toda a expectativa. Depois de destroçar Rosenberg e Honved nas fases prévias, os italianos foram colocados no mesmo grupo que Panatinaikhos, Anderlecth e Estrela Vermelha, os campeões europeus em titulo. As duas vitórias no confronto directo com os jugoslavos revelaram-se decisivas para o histórico apuramento de Mancini, Vialli e companhia para a final do Wembley. A noite que consagrou o Dream Team de Cruyff (que em 1988 tinha ganho o seu primeiro trofeu europeu precisamente contra os italianos) podia ter sido a noite da Sampdoria não fossem os pouco habituais erros de Lombardo, Mancini e, sobretudo, Vialli, à frente de Zubizarreta. A amarga derrota, a poucos minutos do fim, culminou um final de ano para esquecer. Na Serie A os genoveses há muito que estavam afastados da rota do titulo (com direito a derrota e goleadas impostas pelo futuro campeão, o AC Milan de Capello) e na Copa de Italia uma eliminação precoz fui tudo o que os adeptos puderam lamentar. A partir desse Verão de 92 a histórica formação, que durante quatro anos tinha levantado a moral dos tiffosi, foi-se desfazendo.
Boskov partiu e deixou o posto para Sven-Goren Eriksen, incapaz de devolver o clube ao topo da tabela. Rapidamente as grandes estrelas partiram para outros campeonatos. Mancini para a AS Lazio, Vialli para a Juventus e Mikaylichenko para o Rangers...Nem as chegadas dos promissores Jugovic, Amoruso e Chiesa permitiu ao clube inverter a tendência. Até à histórica campanha de Luigi Del Neri, na passada época, nunca mais o Luigi Ferraris se transformou num recinto demoniaco, capaz de destroçar a mente dos rivais antes de entrar em campo. A Sampdoria passou a década e meia seguinte a lutar por sobreviver na parte baixa da tabela classificativa. As lembranças dos dias de glória ficaram, mas a ascensão do duo romano, da Fiorentina e da AS Parma transformou o fenómeno genovês num episódio de um passado longinquo. Um passado grandioso mas desenhado na pedra, perdido nos confins do tempo.