Milão é uma cidade cinzenta iluminada no Inverno pelo branco do cume dos Alpes e pela cor que os mais ousados estilistas pintam na sombra da sua célebre passarela. É uma cidade sem rasgo e com uma história de conflictos suficientes para explorar em largas sessões de psicanálise. Acima de tudo é, hoje em dia, uma cidade desencontrada. Como Gattuso. Como o AC Milan. Como o próprio Calcio.
Joe Jordan foi um dos primeiros jogadores britânicos a dar o salto à liga italiana. Nunca foi uma estrela,mas deixou uma grata recordação como profissional dedicado numa época em que a cidade de Milão estava longe de ser o centro do futebol italiano. Gennaro Gattuso é um simbolo do futebol italiano que poucos admiram e muitos não querem ver. A popular Frikipedia diz que o médio de 33 anos joga na posição de "assassino centro". Ontem, num jogo feio, sujo e violento, "Gattu" pareceu lembrar-se mais das suas origens, a agreste Calabria no sul de Itália, do que no prestigio internacional de um clube que pode ostentar mais titulos do que nenhum outro clube no Mundo, salvo o Real Madrid.
Mas este AC Milan há muitos anos que deixou de ser o clube de Rivera, Baresi, Maldini ou van Basten e passou a ser o clube de Gennaro Gattuso.
Uma realidade que tem vindo a ganhar força à medida que passam os anos e o clube perde as suas referências. Hoje dificilmente encontrarão algum jogador do plantel do clube milanês que se lembre de ver Jordan jogar como rossonero. E isso que foi algo que sucedeu há sensivelmente três décadas. A memória perde-se num clube entregue a si mesmo e sem um rumo certo.
Talvez a culpa nem seja de Gattuso, jogador que ontem, em pleno duelo europeu (ele que tem duas Champions League, 1 Mundial, 1 Intercontinental e uma Serie A, a única do clube na última década) contra o Tottenham Hotspurs, simplesmente foi igual a si mesmo. Foi o AC Milan que mudou. E drasticamente. Há 20 anos ocupava o lugar hoje exclusivo do Barcelona: a grande referência mundial. Em 2011 é apenas o lider de uma liga que não vence há sete anos e uma equipa de segunda linha europeia que, segundo a maioria dos analistas, teve a sorte do seu lado nas três finais europeias que disputou na última década (venceu duas).
Não é coincidência que o mesmo dia em que Gattuso perdeu a cabeça (outra vez), Silvio Berlusconi tenha visto a sua prender-se ao cadafalso (outra vez). O primeiro-ministro italiano é, ainda, a máxima referência do AC Milan. Foi ele que resgatou o clube das sombras, em meados dos anos 80, e foi ele que financiou o renascimento de um clube que tinha caído em segundo plano desportivo após a era dourada de Nereo Rocco. Mas à medida que a politica se tornou no palco central da vida de Berlusconi, o AC Milan foi perdendo gás e classe.
O homem que deu a Sacchi e Capello alguns dos melhores jogadores da história do futebol europeu, há muito que se esqueceu do clube, entregando-o ao seu braço direito, o servil Galliani, uma especie de Gattuso dos escritórios. Gente sem memória, sem classe e sem saber estar que tornaram os rossonero num bicho raro no futebol europeu deste século. O AC Milan até ganha (menos do que imaginamos) mas já não sabe como. Perdeu a estrutura que tinha e tentou prolongar até idades incompreensiveis a carreira dos seus últimos simbolos. Mesmo a chegada de Allegri, um técnico novo e com novas ideias sobre o jogo, perdeu força à medida que as incorporações foram dando ao clube a forma de um grupo instável, sem preparação e sem classe. Cassano, outro troublemaker profissional do Calcio, alia-se a Robinho e Ibrahimovic, jogadores pouco conhecidos pela sua graciosidade, num tridente ofensivo futebolisticamente atractivo mas institucionalmente desastroso. A carta branca dada a Gattuso e Ambrosini (particularmente quando não está, como ontem, Pirlo) faz o resto. O jogo com o Tottenham só foi mais um num longo historial de bocejos desportivos. Mesmo sendo lider da Serie A, ninguém reconhece esta equipa como uma potência futebolistica. E ninguém a respeita. Como a Gattuso. Como a Berlusconi. Como ao Calcio.
O futebol italiano viveu nos últimos anos momentos de glória, da vitória ao Mundial da Alemanha aos triunfos europeus dos dois clubes de Milão num espaço de quatro anos. E no entanto os estádio continuam vazios, os melhores jogadores continuam longe da "Bota", as arbitragens continuam sobre suspeita e a qualidade de jogo vai diminuindo à medida que os trequartistas e os fantasistas dão lugar ao músculo e à força. AC Milan, Napoli, AS Lazio e Inter - o quarteto da frente da liga - jogam todos de uma forma agressiva, dura até, e sem grande espaço para a criatividade. Vitórias in extremis, dois ou três talentos individuais escudados por exércitos pretorianos, é essa a dura realidade de um campeonato que vive tão de cabeça perdida como o capitão do AC Milan. Gattuso é o que é e o que sempre foi e como ele a história conta pelas centenas os bons jogadores que souberam ser, acima de tudo, destruidores. Mas não é Berlusconi, sabe reconhecer erros e pedir perdão. E também sabe, certamente, que a imagem que dá é a imagem que dá o seu clube e o seu país no mundo do futebol.
Um Tottenham esforçado, dinamico e veloz representa o que de melhor tem o futebol inglês. Um Milan desinspirado, violento e oportunista espelha tudo o que de mau se encontra no Calcio. A mão de Gattuso no pescoço de Jordan é a mão de Berlusconi no pescoço do povo italiano. E é a mão do Calcio no pescoço dos adeptos. Sem controlo, desorientados, sem saber como reagir, todos perdem a cabeça, soltam a mãos e mergulham nas páginas mais deprimentes da história de um país que não se pode compreender sem uma bola nos pés.