Não é por acaso que o Real Madrid tem sentido cada vez mais dificuldades em jogar no Camp Nou. Neste tipo de duelos, em que a camisola se sente com paixão, é fundamental ter uma equipa mentalmente preparada. A táctica funciona muito pouco se não a acompanha a atitude. Barcelona e Real Madrid apresentaram o seu desenho e o seu onze de gala (salvo Higuain, por lesão). Mas diferenciaram-se totalmente no empenho que puseram no terreno do jogo. Aí, como no resultado final, a diferença foi abismal. Os números, inevitáveis.
Quando uma equipa tem oito jogadores formados desde pequenos no seu centro de formação, jogadores que sentem a camisola até ao tutano, é de esperar que num duelo como este dêm tudo por tudo.
Este Barcelona pode perder com o modesto Hércules numa tarde de despistes mas contra o eterno rival ninguém admite a minima falha. Mais do que o talento inato desta inesquecível geração blaugrana, o tapete molhado do Camp Nou sentiu a diferença do pisar com querer dos catalães contra as amedrontadas hostes merengues. Mourinho nunca ganhou no terreno do seu rival particular. Também nunca tinha sofrido tanto. Para ele, e para os mais cínicos, o jogo foi um duelo desigual. Um David contra Golias sem happy-ending. Não havia nada a fazer. A impotência do luso no banco, sem alternativas para mudar o rosto a um conjunto desfigurado, dictou o volume do resultado. O conjunto da capital espanhola chegou ao intervalo a perder 2-0, mas com uma leve reação. Voltou ainda mais descrente e descaracterizado e postulou-se diante de um pelotão de fuzilamento sem piedade. A morte foi agónica e lenta. Durou 90 minutos certos. Enquanto os cristãos caíam sob os golpes de gladiadores sedentos de sangue, a galeria aplaudia como nunca. Era a sua noite.
Xavi Hernandez, Andrés Iniesta, Pedro Rodriguez, Sergi Busquets e Leo Messi. O quinteto da Masia definiu o ritmo e espirito do jogo com uma mobilidade inalcançável por quem encarou o encontro com um desleixo pouco comum nas equipas de Mourinho. O técnico português quis usar o seu sistema habitual no desenho, mas no terreno o posicionamento foi bem diferente. O 4-2-3-1, com Marcelo muitas vezes a tornar-se num terceiro interior, desapareceu com o primeiro suspiro. Di Maria foi forçado por Dani Alves a actuar de falso defesa esquerdo (mas não tem o caracter de Etoo para o lograr com mestria) enquanto que Cristiano Ronaldo e Karim Benzema estavam isolados num oceano de jogadores azulgrana que controlaram sempre com a precisão de um relógio suiço as movimentações ofensivas dos merengues. Com o progressivo desaparecimento de Mezut Ozil, que continua a não aparecer nos jogos importantes (como em Bremen e como na semi-final da África do Sul), a equipa branca quebrou-se num 7-3 desorientado, perdido, knockeado. Os golos foram apenas a conclusão de um grave problema de posicionamento e atitude. Os catalães trocavam a bola com naturalidade, sem pressão, e tinham tempo para ler, pensar e executar com mestria. Os cinco golos surgiram assim, de lances ponderados e executados com precisão e aproveitando os erros posicionais dos rivais.
Guardiola venceu o duelo de xadrez sem inovar ou mexer nenhuma peça. Mantendo-se igual a si mesmo.
Todos os golos que não entraram contra o Inter em Maio chegaram ontem às redes de Casillas. A diferença não está tanto em Mourinho, que teve uma abordagem similar a ambos os encontros, mas sim na atitude dos jogadores. Se os cracks do Barcelona são de outra galáxia, Xavi Hernandez mais maestro do que nunca, a maturidade e garra dos neruazurri é ainda uma ilusão para um conjunto madrileño sem eira nem beira. Uma equipa demasiado jovem (Marcelo, Khedira, Ozil, Benzema, Di Maria), ou demasiado displicente (Ramos, Pepe, Xabi Alonso, Cristiano) acaba por ser presa fácil de um predador nato como é o conjunto azulgrana. Guardiola manteve-s fiel à filosofia cruyffiana e jogou como sabe, ao ataque declarado, mas controlando sempre os espaços. Busquets, Pique, Xavi e Iniesta cercaram o meio-campo do Madrid. E asfixiaram-no lentamente. Messi deambulava pelo centro, arrastando consigo marcações e ritmo de jogo e abriu o jogo para as penetrações letais de Pedro e Villa. O erro do Madrid foi querer jogar num campo curto quando o Barça aproveitou ao máximo cada centimetro do relvado imenso do Camp Nou. Villa e Pedro partiam sempre, encostados às linhas, enquanto o quarteto defensivo do rival actuava muito junto, basculando de um lado ao outro, deixando sempre um sector lateral sem marcação. E quando o rival tem passadores do nível de Iniesta, Xavi e Messi, está tudo dito. Os dois primeiros golos resultaram da paciência do futebol de toque blaugrana. O primeiro conclui-o Xavi, com destreza. O segundo foi apontado por Pedro. Em ambos os casos Marcelo, o pior da defesa do Madrid, viu-se superado pela velocidade do jogo rival. Os golos de Villa, já na segunda parte, significaram o culminar do oportunismo posicional dos jogadores azulgrana. No limite do fora de jogo, com uma defesa mal posicionada, o avançado asturiano beneficiou de duas assistências magistrais de um Leo Messi mais centrocampista do que nunca. O argentino não marcou (apesar do primoroso gesto técnico nos instantes iniciais), mas foi determinante no centro do terreno de jogo. Puxou e encurtou a defesa rival para si e abriu espaço para os demais. Tudo aquilo que Cristiano Ronaldo, que continua a desaparecer nos jogos a sério, foi incapaz de fazer. Messi tem-no mais fácil, joga numa equipa feita e pensada à sua medida, com a mesma filosofia e modelo de jogo. A Ronaldo faltam parceiros de baile. Tinha-os em Old Trafford e a cada dia que passa paga o preço de ter abandonado uma equipa feita à sua medida por querer jogar num clube que já foi o da moda mas que agora é mais um entre tantos. Ao português para ser Di Stefano separam-no 60 anos. Hoje, para ser estrela global, ser admirado e respeitado, é preciso ser-se jogador do clube azulgrana como sucedeu ao revés com o argentino nos anos 50. CR7 ainda não entendeu o seu erro e a inevitabilidade do mesmo, algo que o próprio Zidane sofreu na pele com a comparação directa com Ronaldinho no ocaso da sua carreira. E assim, uma vez mais, a força e o querer do português são algo insignificante quando do outro lado está uma escola de dança da qualidade dos blaugrana. Nem o penalty por assinalar, nem o teatro do bom, primeiro de Guardiola (indisculpável e desnecessária atitude) e depois de Messi, borraram a exibição perfeita, culminada com o golo de Jeffren, depois de mais um lance largo onde Sérgio Ramos, desastrado como quase sempre, desistiu do lance para depois procurar a cara de Puyol e as pernas de Messi. Era mais fácil.
A diferença de dois projectos futebolisticos paralelos mas em estádios de evolução bem distintos ficou patente. Não é de 5-0, todos sabem-no bem. Mas é ainda imensa. O Barcelona de hoje é o culminar do Barcelona que arrancou em 1988 e que há 20 anos que tem recuperado o atraso histórico com respeito ao eterno rival em titulos, prestigio e qualidade de jogo. Producto de uma filosofia própria que funciona e vive a sua idade de ouro e que merece todos os elogios do mundo. É a equipa dos estetas, dos amantes do futebol de toque e da precisão. Do outro lado Mourinho chegou com a pressão dos resultados e a necessidade de resgatar da depressão um histórico que há muito vive do passado glorioso. É uma equipa jovem com grande margem de progressão mas a que lhe faltam os veteranos e o caracter que habitualmente imprimem os conjuntos do português que terá de se medir com o rival ideal. Em Inglaterra Mourinho derrotou o "Invencible" Arsenal, já na sua fase descendente e em Itália não teve real competição. O mano a mano com o Barcelona só terminará em Maio e o português sabe até que pode perder os dois jogos e mesmo assim ser campeão. É o seu objectivo pessoal mas não o dos adeptos e da direcção merengue, assombrados pelo jogo do rival, que procuram algo mais. Talvez seja justo conceder que, agora mesmo, esse algo mais é demasiado utópico. Não se pode resolver em cinco meses uma equação para a qual o rival demorou 20 anos a encontrar a resposta. O Madrid de Mourinho, como o dos anteriores técnicos, paga o preço de uma ausência de politica desportiva em prol do marketing. Pode vencer no final, como venceu Schuster, Capello ou Del Bosque, mas o Mundo já sabe por quem se vai decantar. E essa, mais do que a goleada de ontem, é a grande vitória do Barça. Ser a equipa global de hoje como o rival foi nos anos 50. Sem contestação!