No futebol conta o talento, a intensidade, a disciplina e a dedicação. Mas, acima de tudo, a atitude. Portugal é um país de 8 e 80´s, de depressões incuráveis e de euforias sem controlo. Está no ADN luso. Frente aos melhores do Mundo Portugal foi muito melhor. Em talento, intensidade, disciplina, dedicação. Mas, sobretudo, em atitude. A mesma que falhou na depressão da África do Sul, a mesma que pinta a euforia do dia depois. Uma goleada para a memória. Futura.
Errar é humano, rectificar é de sábios. E Paulo Bento merece, hoje, uma rectificação.
Portugal humilhou a selecção espanhola, a meritória campeã do Mundo (afinal ganha sempre quem merece), graças a uma das melhores exibições da década. E tudo fruto de uma clara mudança de atitude do onze luso que não estava para homenagens, cerimónias e parcimónias. Fez o favor à La Roja de estrear o seu novo equipamento com estrelinha incluida apenas para dar-se o gosto de provocar a segunda derrota humilhante em coisa de dois meses para os espanhóis. Depois do 4-1 em Buenos Aires (onde a Espanha foi mais Espanha), nova goleada em Lisboa. Sem espinhas, como a giria popular bem aponta. E num jogo praticamente sem defeitos por parte do onze luso.
O talento e disciplina táctica que havia foi finalmente acompanhado por um jogo de intensidade e dedicação. O ferido onze luso engoliu a equipa espanhola desde o primeiro instante e passou os 90 minutos a digeri-lo com o prazer obrigatório para uma boa mesa. E a culpa não pode ser atribuida aos vizinhos. Vieram com o onze de gala, o mesmo que subiu ao relvado do Soccer City (com Silva no lugar do lesionado Pedro) e manteve a mesma estrutura e filosofia, a que fizeram da equipa espanhola a mais admirada do Mundo nos últimos dois anos. Inesqueciveis para o futebol do país vizinho. Mas o que Portugal fez foi o que nenhuma equipa ainda tinha conseguido. Com autoridade, pressão asfixiante e velocidade na transição ofensiva. A equipa das Quinas fez tudo aquilo que nunca foi feito na África do Sul (e na Áustria/Suiça também). Não empastelou o jogo no miolo, não recuou demasiado e não abdicou de ganhar. Todo o contrário. A mesma táctica, sensivelmente os mesmos interpretes, uma atitude diferente. Foi o que bastou para destroçar os melhores.
O trabalho de Paulo Bento começa também a dar nas vistas pela capacidade de recuperar jogadores dados como perdidos para a equipa das Quinas.
A maça podre de Alvalade, João Moutinho, é talvez hoje o jogador luso mais em forma (exceptuando o caso excepcional de um renascido Cristiano Ronaldo, e em muito aqui a labor é de Mourinho) e mais determinante no onze nacional. O pequeno hobbit que tem pautado o excelente jogo do Futebol Clube do Porto não deixou Xavi, ainda o melhor do Mundo apesar do jogo mais do que cinzento de ontem, pensar. Existir. Reagir. Sufocou o médio catalão e emperrou a máquina espanhola. Carlos Martins, outro recuperado, trouxe a garra que lhe é reconhecida para ajudar a destruir e começar o processo de construção que culminou no seu excelente primeiro golo. No sector mais recuado, Raul Meireles, no lugar onde Pepe nunca fez muito sentido, capaz de patrulhar as movimentações de Iniesta e Silva primeiro, e de Cesc e Cazorla depois. Nesse trio Portugal começou a ganhar o jogo. Anulou a máquina espanhola e deu asas ao jogo rápido e concreto dos lusos. O apoio de João Pereira (outro ressuscitado) e Bosingwa foi determinante para a supremacia no miolo, com Ricardo Carvalho (e depois Pepe) e Bruno Alves muito seguros, concedendo pouco espaço de manobra às movimentações do trio mais avançado dos espanhóis. A boa labor no miolo permitiu o uso da velocidade de um Nani em estado de grçaa e de um Cristiano Ronaldo hiper-motivado. O jogador do Man Utd deu o primeiro aviso antes do recital CR7. Primeiro apontou um dos golos do ano, mal anulado por um fora-de-jogo que existiria se a bola não tivesse já entrada, o que não foi o caso. Ronaldo destroçou Pique e Busquets antes de bater Casillas. Mal o árbitro, aí e sempre, claramente preocupado em evitar uma goleada que mancharia a noite onde se comemorava a boa nota da candidatura Ibérica e a glória dos campeões do Mundo.
Depois, nova maldade imensa ao médio centro do Barcelona, que tentou de tudo para lesionar o português com vista ao derby do próximo dia 29, o jogador do Real Madrid aplicou um remate indefensável que Casillas não podia agarrar e que Martins terminou com mais alma do que outra coisa. Portugal há muito que merecia estar a vencer (Pique tinha tirado já um golo feito na linha de golo) e os espanhóis, em clara inferioridade técnica, acusaram o golpe. Na segunda parte seriam presa fácil para o jogo de transições rápidas instaurado por Bento. Danny (no lugar de Ronaldo), Nani e Moutinho, imenso como sempre, pautaram a goleada. O último dos renascidos, Hélder Postiga, apontou os dois golos seguintes (o primeiro depois de um gesto técnico primoroso) e Hugo Almeida fechou a conta já aos 90, para desespero dos espanhóis que pensavam vir a uma festa de confraternização e que acabaram por sofrer a goleada das suas vidas. Nunca Portugal tinha ganho por tantas a Espanha. Nunca a Espanha tinha sido tão boa selecção. O que faz com que a selecção portuguesa seja, realmente, o quê?
Mais do que humilhar os campeões do Mundo (que começam a sentir o peso da responsabilidade nos ombros), o que ficou foi uma excelente imagem do conjunto luso que destoa dos jogos a sério que têm sido um verdadeiro problema nos últimos cinco anos. Portugal jogou com a atitude e eficácia de uma equipa campeã. Num jogo a feijões. O trabalho de Paulo Bento começa a dar frutos. O lote de selecionáveis tem-se alargado (apesar de continuar a haver algum défice de correcção urgente), as rotinas tácticas estão assimiladas e os problemas de egos parecem ter-se resolvido por magia. O fundamental é transportar essa atitude aos jogos com equipas sem o prestigio da Espanha. Jogos esses que são os que dão apuramentos e finais. Jogos que podem ser ganhos com a espectacularidade da noite passada, mas que têm de ser enfrentados com a mesma atitude e eficácia. Assim se moldam grandes equipas. A de ontem de Portugal foi uma das melhores da última década. Afinal, a esperança é mesmo a última a morrer.