No futebol internacional estagnar é morrer. Talvez por isso se torne inevitável que depois de cada prova, a elite que saiu vergada por um rival mais poderoso insista na necessidade de começar do zero. Renascer, reconstruir, recomeçar. Sinónimos de uma realidade que não admite a ideia de que pode estar-se no caminho correcto perdendo. A finais de 2010 só duas equipas seguem à margem de revoluções. Espanha, porque ganhou e Alemanha, porque mereceu ganhar. Todos os outros continuam à procura de si mesmos num processo sem fim à vista...
Vicente del Bosque é um homem feliz. E com razões para sê-lo.
O afável seleccionador espanhol, homem impossíve de não admirar, confirmou esta sexta-feira que a sua Roja está para dar e durar. A ameaça de supremacia espanhola para a próxima década é real. Como era com a França de Zidane e companhia em 2000, quando juntaram a coroa europeia à mundial. Depois viu-se o que se passou. Mas na história tudo se repete e tudo está aberto à dúvida e no país vizinho há matéria prima para dar e vender. E, acima de tudo, há uma ideia de futebol, inatacável. Mas adaptável, a arma da sobrevivência. Contra a Lituânia a Espanha não tinha o seu maestro, Xavi Hernandez. O futebol rendilhado e estético não fazia muito sentido com uma defesa posicional perfeita. Funcionou o centro e remate, à inglesa, graças à presença de um homem de área que impõe respeito, Fernando Llorente. O plano B espanhol funcionou porque tem armas (centradores e cabeceadores) e atitude para que funcione. Saber jogar de maneira diferente é o primeiro passo para manter-se na elite. Del Bosque sabe-o e repete-o incessantemente. Por isso Espanha continua aí, inalcançável, no topo. Ele é o primordial constructor de catedrais moderno, o constructor de selecções.
Mas se é fácil ganhar e regenerar-se com tranquilidade (a última convocatória espanhol deu a entender isso mesmo), mais dificil é perder e manter-se fiel a si mesmo. Joachim Low é um homem coerente e é essa ideia que vem defendendo desde 2004, quando se juntou a Klinsmann no banco da Nationalmanschaft, que decidiu imprimir o seu cunho pessoal custe o que custar. Em seis anos conseguiu duas meias-finais de um Mundial e a final de um Europeu, sempre perdendo com o vencedor final. E a ideia não mudou. Em 2010 surgiram novos rostos e novas pernas. Mas a ideia ofensiva e atractiva é a mesma. Low vai trazendo a pouco e pouco as maravilhas que despontam no futebol germânico para render os veteranos. Mas o mais importante é transformar as jovens promessas em jogadores maduros e preparados para a alta competição. Foi essa a chave do sucesso espanhol. Espanha sempre teve jogadores e técnicos. Nunca teve foi um nivel competitivo capaz de aguentar até ao limite sem pestanejar. Esta nova Espanha é letal. Como o foi a Alemanha. Como Low quer que volte a ser. Que Ozil, Muller, Podolski, Kroos e companhia sejam autênticos matadores como os Villa, Xavi, Iniesta, Torres e companhia. Só assim poderão tirar a espinha espanhola da garganta.
Se a estabilidade é um bem precioso no futebol, mais o é no mundo das selecções.
Equipas feitas a retalhos, sem tempo para serem trabalhadas, as selecções são mais um case-study humano do que um fenómeno futebolistico. A função do seleccionador é mais a de gestor de grupo e mentor de uma ideia que funcione, seja quem for o jogador convocado. Foi isso que falhou nas grandes equipas nacionais que arrancam este ano um novo periodo de vida. Nenhum soube controlar o balneário, nenhum soube transmitir correctamente a sua ideia. A classe do atleta é algo que o técnico não pode controlar. Que Cristiano Ronaldo, Andrea Pirlo, Wayne Rooney e Frank Ribery desapareçam é mais culpa do jogador do que do técnico. Mas este tem de saber ter opções, planos B´s, alternativas. Não o teve nenhuma selecção da elite mundial. Algumas nem plano A realmente apresentaram. Agora toca recomeçar do zero, num contra-relógio angustiante.
Laurent Blanc teve um inicio pouco auspicioso. O treinador campeão no Girondins Bordeaux tem uma ideia. Futebol rápido, alegre e colectivo, acente numa estrutura defensiva forte e um ataque eficaz. Funcionou na Ligue 1. Tinha as armas certas. Em Clarefontaine terá algo pior, egos imensos que gerir. Benzema, Ribery, Evra, Gallas, Diarra são atletas problemáticos. O fantasma dos grandes da era do técnico ainda está aí, na cabeça dos franceses. Dar tempo e espaço a que os Remy, Briand, Mvila, Tremoulinas e afins assimilem essa ideia do técnico é a sua principal tarefa. Mais do que o 4-4-2 ou 4-3-3 por onde se movem no espaço, os jogadores terão de aprender a mover-se na mente do técnico. E a tornarem-se parte da engrenagem. Parte da solução. Nunca do problema.
Cesare Prandelli, o homem que recuperou a herança de Lippi, sabe como fazê-lo. Inverter tendência. A Itália campeã do Mundo jogava com a classe de um número 10 e o espirito colectivo reforçado. Quatro anos depois não havia nem fantasista, nem grupo. Os italianos nunca precisaram de goleadores (Toni quase que passou ao lado do Mundial da Alemanha), mas sempre tiveram um artista nas suas fileiras. Antonio Cassano foi resgatado do exilio e deu outro ar à azurra. Com ele a criar os operários desfrutam do jogo. São nomes pouco sonantes, jovens e com muito caminho que percorrer. Mas têm a quem admirar ao seu lado e isso ajuda-os a integrar-se numa equipa que vive da mesma ideia há cinquenta anos.
Mais complicada será a missão de Inglaterra e Holanda. Porque mantêm técnico e estrutura (leia-se jogadores), mas porque deixaram uma imagem agridoce. Estão no limbo. No perigoso limbo. Os ingleses tentaram ser continentais e perderam a sua fleuma e originalidade. Depois de Capello ter tentado convencer a Inglaterra a ser mais Itália agora são os ingleses a tentar convencer o italiano a ser mais inglês. Adam Johnson, Theo Walcott e Andy Carroll estão aí para recuperar o jogo de bandas com um killer na área. Na Holanda a final perdida foi uma ocasião flagrante para testemunhar o impalidecer do mais belo futebol da Europa. Uma tendência que já levava dez anos e que agora ficou a nú. Bert van Maarjwick sabe que tem de apresentar futebol, para lá dos resultados. Tem a matéria prima, tem os novos rostos, falta saber moldar a sua ideia ultra-competitiva a um modelo mais amigo do espectador. Ás vezes esse é o grande desafio. Aquele que Espanha e Alemanha superaram há muito e que todos os outros têm forçosamente de seguir. Para sobreviver a outro renascimento. Reconstrução. Recomeço. Chamem-lhe como quiserem. Os constructores de catedrais modernas nunca têm maus a medir.