Aqueles capazes de fazer memória recordar-se-ão, certamente, do drama desportivo que resultou ser a estância portuguesa na pequena localidade mexicana de Saltillo. Uma memória fácil de evocar quando nos deparamos, quase 25 anos depois, com uma parte activa desse embróglio que destroçou a imagem internacional do futebol português na sua perseguição ao homem que, precisamente, mudou o curso da nau rumo ao abismo.
Haverá muitos portugueses que queiram ver Carlos Queiroz na rua.
Pelo seu futebol defensivo, dirão uns. Pela incapacidade de se impôr como um lider de balneário, preferirão outros. Ou, pura e simplesmente, por acharem que o seu perfil de erudito e estudioso do jogo e das suas variantes não é compatível com a selecção portuguesa, ainda patrocinada por uma Federação Portuguesa de Futebol a roçar o puro amadorismo. A questão central é que, todos os motivos poderiam ser válidos para substituir o seleccionador que logrou o apuramento para os Oitavos de Final do último Mundial, onde caiu diante dos futuros campeões do Mundo sob o olhar critico e dedo levantado de Deco, Cristiano Ronaldo, comentadores desportivos e mundo do futebol em geral.
O despedimento de Queiroz nessas circunstâncias seria igual ao de tantos outros técnicos, face ao poder do determinismo dos resultados, a performance que para muitos mede o real sucesso de um treinador. Os mesmos que se esquecem quem é, realmente, o técnico com mais titulos a nível de selecções com Portugal. Ou até daqueles que glorificam treinadores de muita prosápia e poucos troféus, mas que apostam no marketing apaixonante do jogo bonito, desse beautiful game mágico, que ajuda a esconder a decepção da derrota. Nem Queiroz é Arsene Wenger, nem nunca o poderá ser. Pelo menos em Portugal.
A sua suspensão por seis meses, a tornar-se efectivo, significa naturalmente o final do seu mandato como seleccionador. É impensável que um candidato ao ceptro europeu, a disputar daqui a ano e meio na Polónia e Ucrânia, esteja inabilitado de gerir a sua própria equipa nacional. Especialmente no arranque da fase de qualificação. A sua ausência do duplo encontro desta semana abre já a ideia de que este Portugal será mais um projecto interrompido antes de tempo, depois de suceder a um outro que se eternizou tempo demais.
Os insultos que Carlos Queiroz dirigiu aos responsáveis por um controlo anti-doping durante o estágio da Covilhã nunca deveriam colocar em causa a imagem da selecção de Portugal, dentro e fora de portas. Um seleccionador nacional - Luiz Felipe Scolari - agrediu um jogador em pleno desafio, e o máximo que sofreu na pele foram quatro jogos de suspensão, calculados ao milimetro. Nunca o seu posto foi colocado em causa. E, no entanto, a sua agressão fisica, visivel por tudo e tudos, incluindo FIFA e UEFA, parece desvalorizada face à atitude compreensivel de um treinador que vê o seu trabalho - gestor de homens - interrompido sem sentido por uma brigada vampirica que se preparava para antecipar o despertar da comitiva lusa sem qualquer aviso prévio ou noção do ridiculo. Palavras leva-os o vento, lá diz o dito, mas em Portugal a coisa é bem diferente. Uma palavra só pode valer mais que uma agressão? Pode, se atrás do palco se estiver a mover o imenso polvo que é, ainda, a FPF.
Amândio Carvalho foi rotulado como a cabeça do polvo pelo próprio seleccionador, numa entrevista enraivecida e algo inocente. O mesmo homem que ajudou a tornar Saltillo no pesadelo que acabou com as aspirações dos Patricios em 1986, volta agora à carga. O homem que então foi incapaz de coordenar um estágio pré-Mundial, com uma equipa nacional isolada no meio do deserto mexicano, num hotel sem condições, sem ter rivais com que treinar e com uma estância de quase um mês face à curta semana que outros rivais, directos, tiveram de suportar. O mesmo homem que se revelou inapto para coordenar com o então presidente federativo, Silva Resende, a questão dos prémios de jogo, acusando posteriomente o seleccionador de então, José Torres, e o grupo de jogadores - que justamente se rebelou durante um ano - de serem os responsáveis pelo descalabro em que se tornou a precoce eliminação dos lusos. O homem que se tem mantido na sombra de três presidentes da FPF, mantendo sempre o seu posto, misterioso como poucos, e a sua influência. O homem que, em véspera de um play-off decisivo, teve o despeito de dizer ao próprio Queiroz - já contestado - e a quem quisesse ouvir que ele, "não é o meu seleccionador". O homem que lançou os cães e agora se prepara para recolher os dividendos. O homem que encarna na perfeição, o futebol português.
Carlos Queiroz, inevitavelmente, está de mãos atadas.
Se é suspenso, finalmente, o seu mandato chegará ao fim, com ou sem indmenização, por muito que recorra à FIFA e UEFA como justamente ameaçou. Se não o é, o seu lugar acabará por ser constantemente contestado por todos aqueles que têm pactado com a campanha mais desprestigiante do futebol luso desde a suspensão muda, surda e inexplicavel de Vitor Baía e João Vieira Pinto da selecção lusa, após o Mundial de 2002. O seu prestigio está já pelas ruas da amargura. O respeito dos jogadores e staff técnico visivelmente afectado. E a necessidade de ter de trabalhar diariamente com as mesmas pessoas agora preparadas para assistir à sua queda, será um verdadeiro suplicio de Tântalo.
E mesmo que o técnico tenha já dado sinais de que quer seguir em frente, lançando a anunciada renovação que Scolari foi incapaz de fazer e que uma classificação a quente para o Mundial da África do Sul inabilitou, a situação parece estar fadada para um final infeliz. Os Silvio, Varela, Ruben Micael, Beto, Eduardo, Yannick, Paulo Machado, Duda, Fábio Coentrão, Ruben Amorim ou Nuno André Coelho com que Queiroz quer começar a construir o futuro luso, poderão ter de esperar. O quase anunciado regresso de Scolari - ou pior, a inversão de uma aliança espanhola com Luis Aragonés - será também um rude golpe para os que aspiram a uma renovação séria do futebol internacional luso, abandonado durante anos nas camadas mais jovens - que começam a ressurgir, a pouco e pouco - e que deixou uma selecção A esgotada e sem futuro. Um futuro que se vai preparando, sem os Deco, Simão, Paulo Ferreira e afins do passado e com os rostos que se quer do agora e do amanhã. A mesma mudança para a qual o seleccionador foi contratado e que um resultado menos bom para os seguidores das campanhas de Scolari (curiosamente, também ele, eliminado à primeira em 2008) poderá precipitar num final agónico.
Poucos confiam que Queiroz siga no seu posto. O sonho de um José Mourinho a orientar Portugal depende exclusivamente da vontade, já anunciada para um futuro longinquo (seis anos, talvez) pelo próprio. Entretanto, Portugal continua a manifestar uma incapacidade crónica para lidar com as altas expectativas que a imprensa, o público e a própria FPF criam. Queiroz não será o treinador mais popular, capaz e talentoso da história do futebol luso. Mas, ao contrário daqueles que navegam ao sabor do vento, tem uma ideia muito clara do presente e futuro da selecção portuguesa. Só isso deveria ser suficiente. Evitar as guerras civis do passado longinquo ou os regimes ditatoriais de um passado bem mais presente na mente de qualquer adepto deveria ser suficiente. Mas, também por isso, há sempre um polvo por detrás a mover as marionetas. As que continuam a ser o corpo e rosto do futebol luso.