Há pessoas que marcam épocas. Definem filosofias. No Maciço Central francês a pequena cidade rocosa de Auxerre cresceu desportivamente à sombra de um abade filho de um anarquista que cedo percebeu que o futebol era a melhor forma para captivar a juventude gaulesa. A história de um clube de futebol muitas vezes une-se à de uma personagem. Em Auxerre isso não poderia ser mais certo.
Ernest-Théodore Deschamps.
Um nome que hoje é desconhecido por tudo e todos. Mas este homem, religoso convicto, apaixonado pela vida, foi uma das grandes figuras paternais do futebol francês. Durante a primeira metade do século XX a sua imagem tornou-se no espelho da rectidão humana e desportiva. Um abade num país laico, como poucos, dificilmente teria ganho o respeito do público se não tivesse entendido que o novo ópio do povo, quando o século XX se prepara para arrancar, era já então o futebol.
Filho de um anarquista, Ernest Dechamps nasceu em 1868 em Villiers sur Tholon, pequena cidade da Borgonha, em pleno rebulíço politico. O pai, um activista radical e anti-clerical, escondia por detrás do seu trabalho como carniceiro o rosto de uma organização anárquica de implantação nacional. O jovem Ernest seguiu o caminho oposto e decidiu seguir a via religiosa, rompendo com a familia. Rumou para sul, para Auxerre, onde se formou em Filosofia e tomou os hábitos. Se não herdou o ódio pela igreja do seu pai, certamente que a sua infância lhe fez perceber o valor da acção social já que durante anos se tornou num dos grandes benfeitores dos mais desfavorecidos da zona. Em 1900, depois da morte do pai, que muito o afectou, e de passagens pontuais por outras cidades, é nomeado definitivamente como Abade de Saint-Etienne de Auxerre. O século tinha virado e com ele muitos aspectos da sociedade gaulesa. O futebol emergia de forma inesperada e, rapidamente percebendo o seu potencial, o abade Deschamps abraçou-o e decidiu fazer dele a base do seu trabalho social.
Em 1905, depois de largas negociações com a Igreja e com o Municipio da pequena cidade, finalmente fundou a Association Pour La Jeunesse Auxerrois. O nome foi reduzido a AJ Auxerre (Associacion Jeuness Auxerre) e tornou-se num caso único de uma equipa desportiva suportada por uma instituição religiosa, ainda que oficiosamente.
O clube arrancou com mais secções para lá do futebol (ginástica, tiro e uma secção musical) e o seu afã era menos competitivo e mais de formação juvenil. Depois de vários problemas para inscrever-se na Federation Française du Foot, numa década em que a questão da separação entre Estado e Igreja estava constantemente na ordem do dia, finalmente a equipa logrou estrear-se num encontro oficial. Foi em 1906 contra uma formação modesta de Migennes. A partir desse momento, e até ao inicio da I Guerra Mundial, a AJA venceu todos os campeonatos regionais da Borgonha. Por uma vez, em 1909, chegou à final do Campeonato Nacional, num duelo contra o Bons Gard de Bordeaux, perdida por 5-1. A morte da maioria dos jogadores da equipa, na guerra das trincheiras, coloca em causa o próprio projecto. Uma vez mais, o presidente Deschamps, pega no projecto e mantém-no vivo, mesmo quando em anos de grandes dificuldades económicas a equipa é forçada a não participar na prova nacional, remetendo-se aos duelos regionais. No pós-guerra, a semi-profissionalização do clube começa a ganhar forma. A chegada do primeiro treinador oficial, Pierre Grosjean, escolhido pelo próprio presidente depois de uma conversa filosófica numa mesa de chá, é o ponto de partida para a nova etapa da vida do clube. Um periodo que Ernest-Theodore já não vai viver. Com 81 anos, o eterno presidente e inspirador da AJ Auxerre, falece a 1 de Dezembro de 1949, deixando consternado todo o futebol gaulês. O clube rapidamente substituiu o nome do velho estádio pelo seu e começa as obras de melhoramento que terminaram com o recinto que ainda recebe os jogos da AJA. Dez anos depois entra pela porta de entrada do estádio um jovem de nome Guy Roux. Tornar-se-á treinador do clube durante meio século. Sempre respeitando os mesmos ideais que levaram um determinado abade a mudar a face do futebol do imenso massiço central francês.
Ainda hoje há poucos clubes com o espirito do Auxerre. Especializado na formação, hoje como sempre, é um clube modesto mas com um historial de respeito. Em França é venerado pelos românticos e respeitado até pelos mais cinicos, como um clube diferente. O próprio Eric Cantona, que por lá passou nos principios da sua carreira, declarou que França não merecia uma instituição como a AJA. Um trabalho de décadas que brotou da mente de um homem, que viu para lá do hábito, a necessidade de utilizar o jogo como tábua de salvação para os mais desfavorecidos. A sua aura ainda ilumina o estádio com o seu nome, sempre que a sua equipa sobe ao relvado para recordar dias tão distantes.