Faltam menos de dois meses para o arranque do primeiro Mundial africano e a dura realidade é que a cada dia que passa se questiona com mais razão a popular escolha da FIFA. Problemas logisticos graves e uma autêntica revolução na venda de entradas deixam a sempre exigente FIFA em cheque. O profissionalismo da organização-mãe do jogo contraste com os constantes tropeções de um país pouco habituado ao mais alto nível.
Não é por acaso que os europeus esfregam as mãos de contentes. Depois do choque que significou a perda da organização do Mundial 2010 (e 2014) para África do Sul e Brasil, agora começam a apontar o dedo à FIFA pela sua escolha populista. Precipitada para muitos. Irreflectida para outros. Optimista em excesso para a maioria. Na ânsia de levar o Mundial a África (a partir de Julho só a Oceânia constará na lista dos continentes sem um Mundial organizado), a FIFA deixou de lado o seu elevado padrão de exigência. Mudou posturas que elevaram o profissionalismo da organização ao seu nível actual. E colocou em risco a realização de um torneio que tinha todos os condimentos para tornar-se memorável. Se a prova se revelar um fiasco a FIFA perderá toda a credibilidade para organizar uma nova aventura e deixar de lado as sempre sólidas candidaturas europeias. Um piscar de olhos também à UEFA que preferiu arriscar com a Polónia e Ucrânia e agora vive na incerteza de que se há realmente condições para que o Euro 2012 seja o primeiro na Europa de Leste desde a queda do Muro de Berlim. Porque uma coisa é a democracia institucional e o optimismo. Outra é a crua realidade.
A FIFA (e por arrastro, a UEFA) especializou-se na última década em eliminar a venda de bilhetes para grandes eventos fora do circuito electrónico.
Qualquer final de prova da FIFA, qualquer competição europeia de clubes e claro, qualquer Mundial, desde 2002, só pode ser visto se o espectador comprar o bilhete através da página oficial da organização. Isso garante, segundo a FIFA, uma dupla segurança. Por um lado permite filtrar a entrada de hooligans e controlar o número de adeptos afectos a cada nação em todos os encontros. Por outro permite centralizar de forma eficaz todas as receitas, prende o espectador ao bilhete e controla o mercado de revenda. Manobras úteis que se tornaram prática corrente. Até agora. Se a FIFA manteve a sua politica de venda até esta semana os números assustadoramente baixos de gente interessada em atravessar o Mundo até um dos países mais perigosos do hemisfério sul fizeram a direcção reflectir. Os europeus - mesmo os alemães e ingleses, as maiores hostes de adeptos migrantes - pensarão duas vezes nos gastos e na segurança. A situação economica mundial servirá também para reduzir o impacto das equipas da América Latina ou Ásia. E claro, para os adeptos locais, a compra online ainda é uma doce ilusão. Até ao dia de hoje só a final tinha já todos os bilhetes vendidos. Muito pouco comparada com 2006 mas que faz lembrar o fenómeno de 2002, onde na distante Coreia do Sul, os organizadores foram obrigados a vestir locais com as cores de cada equipa para dar a ilusão de estádios cheios de adeptos quando as vendas andaram muito por baixo da média. É um facto, os adeptos que realmente vão a provas como esta concentram-se na Europa Ocidental. A ausência de grandes equipas ou as longas distâncias colocam em xeque a alfuência de público. Foi um choque para muitos ver pessoas a comprar bilhetes para o Mundial em supermercados. Mas esse é o modelo sul-africano. E a FIFA teve de ceder. Abdicar dos seus principios para garantir que os estádios têm uma moldura humana significativa. Mesmo que isso comprometa todos os ideias. Money obliges.
No entanto não é só a polémica questão dos bilhetes (o elevado preço e a inevitável revenda faz esperar que muitos jogos tenham uma assistência a roçar minimos históricos, até porque estima-se que não superem os 30 mil, os visitantes estrangeiros) que tem colocado a FIFA num embróglio complicado. A organização presidida por Sepp Blatter concentrou-se largos meses nos estádios, muitos deles construidos sem motivo e apenas para dar negócio a empresas de construção civil locais. E esqueceu-se, muitas vezes, nas infra-estruturas fundamentais num país onde muitas selecções terão de fazer largas horas de avião, experimentar climas distintos no espaço de dias e cuja massa de adeptos terá de os acompanhar nas mais incriveis condições. Não é só a problemática hoteleira que assusta a FIFA. A confissão de um iminente médico que colabora com a organização de que nenhum hospital da África do Sul está preparado para uma circunstância excepcional deixa o aviso. Serão só os hospitais. Haverá algum plano B? Haverá sequer, a preocupação em que existam planos de contingência para proteger adeptos, equipas, organização e autoctones de um problema que pode ir de um atentado terrorista a uma larga intempérie de Inverno frio e chuvoso sul-africano? Afinal, em 2001 morreram 40 pessoas em Joanesburgo ao sair precipitadamente de um jogo. Não é assim tanto tempo.
A questão ganha um contorno especial se atentarmos à dualidade de critérios. A países como Inglaterra, Alemanha, Espanha, França ou Itália a FIFA nunca permitiria esta politica desastrosa. Pelo contrário, seria motivo suficiente para multar ou até mesmo, alterar o organizador. Mas estamos em África e voltar atrás agora é impossível. Não só por problemas logisticos. Porque estes existem há muito. Acima de tudo, é um braço de ferro entre a FIFA e o Mundo. Um braço de ferro que coloca em entre-dito a própria essência desportiva e gestora da milionário organização.
Tudo pode ainda suceder e a organização do Mundial pode passar por um mês imaculado e entrar na história como um caso de sucesso. Mas as probabilidades jogam em contra da FIFA e dos sul-africanos. Inverno, problemas logisticos, falta de organização, ausência de público, problemas de segurança, longas distâncias, horários complexos. Ingredientes pouco atractivos para uma prova que faz parar o relógio do Mundo de quatro em quatro anos.