A espantosa e quase invisível mutação táctica do futebol inglês acabou definitivamente com o histórico kick and rush. A natural superioridade britânica diante dos rivais continentais espelha apenas a progressiva evolução de mentalidade de jogo que durante 15 anos transformou a esmagadora maioria das equipas inglesas. Do histórico 4-4-2 já há pouco mais do que lembranças. A Premier League agora joga-se num 4-5-1.
Depois do 2-3-5 veio WM. E anos depois nasceu o 4-4-2.
É o "b-a-b-a" do futebol. Um variação táctica que o resto do Mundo rapidamente adaptou à sua realidade. Daí partiu o 4-3-3 inventado por Zagallo, ainda como jogador. Ou o Futebol Total que se limitou a seguir a receita do futebol centro-europeu de austriacos e hungaros. E também o 3-5-2, tão popular entre sul-americanos e italianos. Por outro lado, em Inglaterra, o conservadorismo táctico pautou o estilo de jogo das equipas britânicas durante largos 50 anos. Até ao novo século não havia nenhum conjunto inglês que abdicasse de utilizar o histórico dispositivo. Com dois alas abertos. Com um falso avançado. Com um losango. Com dois médios box-to-box. Não interessa. O sistema era de tal forma básico que nenhum jogador tinha dificuldade em mudar-se de equipa a equipa. A "biblia" táctica era comum a todos. As ligeiras variações eram rapidamente copiadas e vulgarizadas. Mas ninguém se atrevia a arriscar. Durante os anos 70 o modelo de jogo funcionou. O kick and rush estava então na sua época áurea. O Liverpool de Shankly, Paisley e Fagan apostava em extremos abertos, dois médios de combate e um falso avançado. Brian Clough, mais amante do futebol de toque, preferia uma linha fixa de 4 atrás da dupla ofensiva. Busby e Ramsey foram os primeiros a ensair o que hoje se chama de 4-2-3-1, utilizando para tal o talento de Bobby Charlton. E Don Reevie apostava num modelo de losango. O impacto foi tal que, vinte anos depois, todos os clubes continuavam a utilizar a mesma dinâmica de jogo. Até que chegou a invasão estrangeira e o novo formato da Premier League. O futebol inglês começava a mudar. A ritmo avassalador.
Podem ter sido os técnicos estrangeiros como Wenger, Gullit, Vialli, Mourinho ou Benitez. Ou simplesmente, os jogadores estrangeiros. mais técnicos que possantes, que provocaram as sucessivas mutações tácticas que foram revolucionando a Premier League. A verdade é que no virar do século o futebol inglês foi, progressivamente, deixando para trás o histórico 4-4-2. Um upgrade táctico cujo o exemplo perfeito está em Old Trafford.
Sir Alex Ferguson é habitualmente acusado de um excessivo conservadorismo. Mas o Manchester United há dez anos era uma equipa totalmente diferente da de hoje. Na final de Barcelona, frente ao Bayern Munchen, o técnico escocês viveu o último momento de glória do 4-4-2 britânico. Com o passar dos anos o técnico foi percebendo que, para triunfar na Europa, era preciso encontrar forma de neutralizar o estilo de jogo mais técnico dos rivais continentais. Uma licção duramente aprendida numa derrota, na época seguinte, com o Real Madrid. Progressivamente os Red Devils foram passando a um mais flexível 4-3-3. A chegada de Cristiano Ronaldo, mais vertical e fisico que Beckham, permitiu ao técnico operar a sua mutação táctica. E foi assim que o Man Utd venceu a sua terceira Champions. Mas, mesmo aí, Ferguson percebeu que havia falhas no seu modelo de jogo. A perda de velocidade nas laterais - com os progressivos problemas para ocupar o carril direito - levava a um constante desequilibrio a meio-campo. Progressivamente o técnico foi recuando os extremos, apostando num modelo móvel. Com um veloz Cristiano Ronaldo preferia um 4-2-3-1. Agora, sem o português, a aposta é num claro 4-5-1. Foi assim que, há poucas semanas, trucidou o ingénuo Arsenal, talvez a única equipa imune a esta mutação.
A influência de José Mourinho, adepto inicial do 4-3-3 que rapidamente se transformou num 4-4-2 continental, levou a maioria das equipas inglesas a mudar de registo. O Manchester United acabou por ser uma delas. Mas não foi a única.
Progressivamente os distintos Managers da Premier - onde os ingleses começam a desaparecer progressivamente - foram abdicando do segundo ponta-de-lança. A marcação à zona - e não ao homem - anulava mais facilmente o avançado de apoio e criava perigosos desequilibrios no contra-golpe. Progressivamente esse avançado foi recuando no terreno, tal como os extremos. E do 4-4-2 passou a fazer parte de um 4-5-1.
A diferença é que este sistema táctico, habitualmente acusado de defensivo, é extremamente móvel e dinâmico. O futebol defensivo é algo que, em terras de Sua Majestade, é olhado de soslaio. E a mutação táctica deve-se menos ao desejo de defender a baliza e mais ao de controlar o jogo a meio-campo. Com esta variação táctica equipas que actuam num clássico 4-4-2 tornam-se presa fácil pela teia montada de médios centro no miolo. Assim o Chelsea de Scolari e mais tarde, de Hiddink, foi perdendo pontos em campos proibitivos. Equipas como o Fulham, Blackburn Rovers, Portsmouth ou Stoke City manobram bem a variação táctica e espalham os jogadores pelo terreno de jogo de uma forma eficaz. Hoje o Tottenham de Harry Redknapp e o Aston Villa de Martin O´Neil, são exemplos perfeitos dessa mutação. Habitualmente arrancam o jogo em 4-3-3, com extremos rápidos (Lennon, Young e Aghonbalor) e progressivamente vão recuando até formar um compacto 4-5-1. Garantem solidez defensiva e um ataque em bloco com 4 a 5 elementos, mantendo um pivot de segurança.
Dentro do espectro que é a Premier League há muitas realidades distintas. As mais particulares são as de Liverpool e Arsenal.
O espanhol Rafa Benitez é claramente da escola do 4-5-1 continental. Torres, como ponta de lança solitário, e Steven Gerrard no apoio. Atrás um quarteto de médios, com dois alas capazes de subir nos lances ofensivos e fechar nos momentos de contenção. A ausência de jogadores desta caracteristica (ao contrário do Utd que conta com operários como Fletcher, Park, Valencia ou o próprio Rooney) é uma das justificações para os constantes tropeções dos Reds. Já o francês Arsene Wenger professa outra religião. Pai do futebol de toque, o técnico do Arsenal foi provavelmente o primeiro a romper a hegemonia do 4-4-2, do qual, curiosamente, os gunners eram profetas. Com a sua equipa, apelidade em 2004 de "Invencibles", começou a construir a base do actual 4-3-3 que é, em realidade, um 4-2-3-1 disfarçado. Na época jogavam Vieira-Petit-Ljunberg-Pires-Bergkamp e Henry. Hoje são Song-Diaby-Fabregas-Nasri-Arshavin e van Persie. Os jogadores mudam, mas a filosofia mantém-se. Talvez por isso o conjunto londrino tenha sobrevivido à constante razia de jogadores. A mecanização de processos tapa as falhas de continuidade fulcrais para o sucesso a longo prazo de um projecto desportivo.
Hoje é fácil ligar a televisão e descobrir este 4-5-1 em quase todos os jogos da Premier League. Poderá vir disfarçado de muitas formas. Extremos mais avançados num enganoso 4-3-3. Dois médios mais de contenção que podem acabar por se revelar num 4-2-3-1. Mas no fundo, mudem-se os emblemas, mudem-se os protagonistas, mudem-se os mestres do bloco de notas, é indisfarçável que o 4-5-1 é o espelho tácito da evolução de mentalidade de jogo nas ilhas. O regresso ao dominio do futebol europeu - trinta anos depois - é o mais evidente resultado dessa progressiva adaptação que permite hoje às equipas britânicas estarem sempre, um passo à frente.