O futebol é um jogo de cavalheiros. Ou deveria sê-lo, pelo menos. Um jogo limpo, aberto, sem golpes-baixos. No meio da confusão o árbitro apita. Aponta para um pequeno circulo. Chamam-lhe penalty, na lingua original do jogo. O guarda-redes está só frente à bola. Frente ao avançado. É um mano a mano desigual, já o sabemos. E quando ele avança e subitamente para, o jogo recebe uma facada mais no seu orgulho. No futebol não há nada mais imoral que uma paradinha.
Kaká tem razão. Nesse mundo novo de tecnologias muitos já se renderem ao minimalismo do serviço Twitter. Um deles foi o médio brasileiro. Ainda a anos-luz do que já foi e talvez nunca mais volte a ser, Kaká aproveitou a popular ferramenta para criticar uma jovem shooting-star do Brasileirão. Acusou-o de falta de elegância ao apontar um penalty de paradinha ao seu ex-colega Rogério Ceni. E tem razão. Apesar de se perceber que o faz por apoio ao seu velho amigo e colega do São Paulo, Kaká toca num dos pontos mais sensiveis do jogo brasileiro. A honestidade frente a frente com o chicoespertismo. E não há quem ganhe ao Brasil em chicos-espertos. A paradinha é um movimento popular. No Brasil é marca da casa. Um penalty já de si é um duelo desigual. O guarda-redes está só, preso à linha com um fio invisivel que o cose ao relvado. Só se pode mover para os lados. E a baliza é grande. Demasiado grande. O avançado tem a pressão nos ombros. É verdade. Mas tem o tempo. Tem o olhar de falcão que lhe permite decidir. E o timing é seu. Quando entra em corrida o guarda-redes tem de tomar uma decisão. Para cima, para baixo. Direita, esquerda. Parado ou para a frente. São esses breves segundos que o vento não conta que o inclinam a jogar a sua última ficha. Quando ele já está no ar, mãos de gigante a apontar ao céu, o avançado pára. Olha para o rosto do guarda-redes, impotente, enganado. Sorri, volta a acelarar. Dá um toque suave. É golo. É inevitável. É injusto.
Neymar, essa brilhante promessa do Santos como tantas outras que por lá andam e que ainda nem o nome conhecemos, é filho dessa cultura de rua. Desse Brasil do antes esperto que justo. Foi nas ruas brasileiras que nasceu o fenómeno da paradinha. O resto do mundo era incapaz de imaginar que se podia marcar assim uma grande penalidade. Em Inglaterra, o país dos gentlemans por excelência, era impensável enganar assim um guardão. O remate tinha de ser frontal, forte e directo. Como uma estocada. Um golo envenenado num embrulho de honra. Very british.
Ninguém sabe quem inventou a paradinha. Nem se saberá provavelmente. É daqueles movimentos que dispensam inventor. Mas que estão aí, no vocabulário do mundo. Há quem diga que foi Pelé. Soa sempre melhor quando é um grande nome por trás de um golpe tão sujo. E numa era sem televisão o Mundo só o viu a ele, naquele México 70 do seu encanto. Apesar disso o mágico brasileiro sempre rejeitou a invenção. O maestro, dizia, era Didi. Mas realmente interessa? Não. Nessa época já o Brasil abraçara o gesto. Tinha o seu estilo escrito por todos os lados. No país onde só vai para a baliza quem não se salva nem a lateral, que importa se o guarda-redes é duplamente enganado? O que conta é o espectáculo. Oba Brasil.
Meio segundo pode decidir um jogo. Um remate enganador pode ser acreditado ao génio de um jogador. Lembramo-nos de Panenka, Totti, Postiga e Zidane que souberam dar um suave beijo à bola. E ela agradeceu o toque suave. Mas Neymar não respeitou a bola. Nem o relvado. Nem o guarda-redes. Nem a si mesmo. Rematou desprezando os principios básicos do jogo. Rematou sem pensar, apenas encantado com as capas de jornais que o seu gesto matreiro daria. Talvez por isso só num país onde todos estão habituados a jogar no limite do risco a paradinha poderia ser tão popular. Na Europa ainda existe esse sentimento de honra. Ou será medo de falhar? Perdoa-se a um avançado que falhe uma paradinha? O espectáculo vale tudo. Os guarda-redes protestam. Mas são cada vez menos. Os brasileiros que emigraram para a Europa trouxeram com eles o gesto técnico. Mas também aprenderam uma licções de moral. No Brasil o futebol é amoral. Como a rua. É livre, sem condicionantes ou espartilhos de consciência. Nos relvados empapados do Velho Continente ainda há um código ético. Invisivel. Ineligivel. Mas que está aí. Djalminha, que como Kaká viveu os seus melhores dias na Europa, e que era um dos grandes especialistas na marcação de penaltys chamou "cobardes" aos compatriotas que mantêm a prática da paradinha. E se quando Pelé - ou quem quer que fosse o artista - inventou a paradinha, esta consistia apenas em mudar a mudança da caixa de velocidades do avançado, hoje a paradinha significa que o avançado realmente pára. E logo arranca. Perguntem a Cristiano Ronaldo. E já agora, a Petr Cech.
A FIFA quer banir de forma definitiva o gesto. Puni-lo com um amarelo e ordenar a repetição do penalty. Haverá sempre vozes em contra, contra a pureza do jogo de rua. Mas até a rua tem valores. Aliás, hoje em dia, a rua guarda poucos dos valores que os estádios vendidos ao negócio expulsaram. Defender o eterno guerreiro solitário pode parecer impopular. O guarda-redes já o é, na sua essência. Mas a se a sua solidão é inevitável, a imoral paradinha é algo perfeitamente dispensável. Especialmente quando vemos o avançado arrancar, colocar a bola e cair sobre os colegas. No chão, o guardião sabe que não tinha hipóteses. Mas pode levantar-se com a honra dos vencidos. Isso é o beautiful game!