Quinta-feira, 05.06.14

Hoje é habitual a cada Mundial que apareça um novo videojogo. Nos anos oitenta não havia nada mais original. Antes da Electronic Arts tomar conta do mercado, antes das consolas modernas, World Cup Carnival foi o primeiro videojogo inspirado num Mundial. O México 86 foi um clássico também por culpa deste jogo que se tornou no alvo preferido de critica dos primeiros gamers.

A meados dos anos oitenta as consolas começavam finalmente a encontrar o seu espaço na indústria do entretenimento. A guerra entre Spectrum, Commodoro e Atari estava ao rubro. Nomes como Sega, Nintendo ou Sony ainda estavam a anos-luz de aparecer em disputa e os PC´s de casa eram luxos de poucos. Nessa dimensão, quase paralela, começou a forjar-se a primeira cultura de gamers especializados. E a nascer os primeiros titulos de jogos dedicados a grandes eventos. Nenhum maior que um Mundial de futebol.

Desde 1998 que a Electronic Arts canadiana tem os direitos da FIFA para realizar o seu habitual update da saga FIFA com as selecções oficiais, os estádios, a bola do torneio e toda a parafernália habitual. São quase vinte anos que parecem deixar a entender que não houve passado antes desta era. Mas houve. Uma época em que a US Gold reinava sobre os torneios de selecções. Antes do World Cup Usa 94 e do mitico Itália 90. A época do World Cup Carnival, um dos jogos mais criticados e inovadores da história.

 

Em 1986 a empresa US Gold conseguiu da FIFA os direitos para comercializar um jogo de consola dedicado ao Mundial que se ia disputar no México. O jogo contava com as licenças autorizadas de todas as selecções participantes na competição, algo totalmente inédito. Parecia uma mina de ouro. Ironicamente o projecto foi um fracasso junto dos jogadores.

A empresa foi incapaz de produzir o jogo que tinham pensado em tempo útil. Os sucessivos atrasos e correcção de bugs colocaram a companhia num apuro. A pouco mais de um mês de arrancar o Mundial, a US Gold decidiu recuperar um titulo com mais de um ano, World Cup Football, desenvolvido pela Artic, acrescentando apenas as respectivas autorizadas licenças. Quando o jogo chegou ao mercado foi recebido debaixo de um enorme coro de criticas. A jogabilidade de um produto com mais de um ano e meio no mercado não tinha sido alterada e consoante a consola disponível - Commodore, Spectrum, Atari - os jogadores só podiam utilizar um número restrito de selecções. Lá se ia o sonho de ter um jogo à altura dos acontecimentos.

Durante semanas a produtora do jogo recebeu milhares de cartas de jogadores que tinham pensado que o jogo em que tinham investido era um produto novo no mercado e não uma re-adaptação de um jogo antigo. A indústria de revistas especializadas que começava a nascer utilizou World Cup Carnival como o exemplo perfeito daquilo que o mundo dos videojogos não podia permitir. As vendas caíram em picado e a US Gold esteve perto de perder a licença da FIFA.

Finalmente, depois da promessa de apostar num produto radical para o seguinte torneio, a empresa começou a trabalhar no que seria o Itália 90. O jogo foi um sucesso total nas várias plataformas e entrou de cheio no novo mercado consolas tornando-se num dos produtos mais vendidos com a nova Sega Megadrive. Quatro anos depois a empresa deu outro passo em frente com a produção do popular World Cup 94. Foi a sua última aventura. Em 98 a EA Sports tinha já tomado controlo total do mercado e dado inicio à sua hegemonia.

 

Para a memória fica um dos jogos mais criticados de sempre pela simplicidade da sua jogabilidade, a reutilização de um produto previamente comercializado e até uma capa mal desenhada. Num Campeonato do Mundo disputado no México ninguém imaginaria uma capa com uma foto da claque do Fluminense brasileiro. Uma anedocta, entre tantas outras, que condenaram ao esquecimento um jogo histórico. Pode ter sido um estrepitoso fracasso, mas World Cup Carnival marcou um antes e um depois na indústria dos videojogos.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 12:44 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Segunda-feira, 19.05.14

"Era uma vez uma irredutível aldeia gaulesa"... Invariavelmente assim começavam as sagas animadas de Asterix e companhia. O pequeno herói de banda desenhada pode ter sucessor real. Numa pequena aldeia dos Pirineus com apenas 650 habitantes desenha-se o sonho de alcançar a Ligue 1. Seria um feito único na história do futebol europeu.

Poucas cidades contam com estádios onde cabem mais pessoas que habitantes. Se falamos de aldeias então é mais difícil ainda encontrar algo parecido ao que sucede em Luzenac. Na minúscula localidade encostada aos Pirenéus, a poucos quilómetros da fronteira com a Catalunha, vivem 650 habitantes. 650. Nem mais, nem menos segundo o último censo. O estádio local - melhor dito, o campo local - tem espaço para 1200 espectadores. E invariavelmente está cheio.

Num domingo qualquer os habitantes das aldeias vizinhas vão até Luzenac passar a tarde e ver a equipa local jogar. A modesta formação que nunca passou dos campeonatos distritais é a nova sensação do futebol europeu. Acaba de vencer o Campeonato de Seniores do futebol gaulês de forma categórica e carimbou assim o passaporte para a Ligue2, a segunda divisão do país. Um clube de amadores num meio profissional. Muitos auguram uma queda tão rápida quanto a subida mas o sonho dos habitantes de Luzenac e dos dirigentes do clube é outro. Querem ser o mais pequeno clube da história do futebol europeu a alcançar a primeira divisão de uma das grandes ligas do "Velho Continente". Nunca se deu o caso de um clube de uma localidade com menos de mil habitantes ter chegado tão longe. Estes irredutíveis gauleses querem ser os primeiros e assim fazer história.

 

O US Luzenac foi fundado em 1936. Poucos anos depois esteve perto de desaparecer por culpa da II Guerra Mundial. Teria sido uma existência curta e anónima. Não foi. O clube sobreviveu e durante décadas viveu debaixo do radar futebolístico francês. Nunca formou um futuro grande jogador, nunca recebeu um treinador de renome em horas baixas. Sempre foi uma equipa absolutamente modesta. Até agora. Tudo por culpa de um campeão do Mundo.

Fabian Barthez não é natural de Luzenac mas de uma aldeia igualmente pequena a trinta quilómetros de distância. O extravagante guarda-redes, vencedor de todas as competições a que um futebolista de elite pode aspirar, transformou-se num empresário de sucesso depois de ter terminado com a sua carreira. Entre as corridas de protótipos e os seus negócios, Barthez encontrou tempo para associar-se à empresa JD Promotion e adquirir o modesto clube. O objectivo, a médio prazo, era o de criar um clube com uma forte identidade futebolística na região do Midi gaulês, no espaço ocupado entre Bordeaux e Toulouse, duas históricas regiões do futebol gaulês. A ambição dos investidores no clube passava por aglutinar adeptos de aldeias e pequenas cidades vizinhas e propulsar assim o Luzenac rumo à Ligue1.

Com a ajuda de Barthez, o clube começou a contratar vários jogadores com presença habitual nos planteis da Ligue 1 e 2 com a promessa de um substancial aumento salarial a cada promoção. No plantel do clube há espaço para futebolistas norte-americanos, georgianos, camaroneses, marfilenses ou togoleses. Três anos depois de ter abandonado os campeonatos distritais, a formação orientada por Christophe Pelissier passeou literalmente pelo Campeonato Nacional, carimbando a subida de divisão de forma categórica bem antes do suspiro final. Os triunfos cumpriram o seu papel e atraíram espectadores das redondezas. O estádio da pequena aldeia tornou-se pequeno e o clube mudou-se para uma localidade vizinha onde mais de 1400 pessoas por jogo acompanham a gesta do Luzenac. No jogo decisivo, contra o histórico Boulogne, estavam 3000 adeptos nas bancadas, cinco vezes mais do que os que habitam a pequena aldeia pirenaica.

O sucesso do Luzenac transformou-se num dos mais emotivos contos de fadas recentes do futebol europeu. Numa altura em que os milhões de investidores russos e qataris invadem a Ligue1 e mudam a escala de poderes da competição, os franceses encontraram no clube de Barthez o símbolo do desporto mais puro e humilde. De um momento para o outro o US Luzenac transformou-se no clube alternativo do futebol francês.

O objectivo de Barthez e dos seus parceiros de negócios é reproduzir o sucesso recente do Evian. O clube alpino foi refundado em 2003 graças ao patrocínio do grupo Danone - detentor dos direitos da célebre água Evian - e ao apoio de vários futebolistas internacionais como Zinedine Zidane Florent Malouda, Alain Boghossian e Bixente Lizarazou. Tal como o Luzenac era um clube de uma localidade sem expressão desportiva, mais associada ao futebol suíço que francês. Em cinco anos o clube saltou do campeonato nacional para a Ligue 1 onde se mantém contra todas as expectativas.

 

Enquanto históricos clubes como o Nantes, Metz, Lens, Auxerre ou Strasbourg militam em divisões secundárias o Evian é a prova de que o modelo de gestão local francês pode ser bem sucedido. É o espelho onde o modestissimo Luzenac se vê reflectido. Na próxima temporada o principal objectivo do projecto desportivo passa pela estabilização mas Barthez e companhia já fizeram saber que os irredutíveis aldeões querem fazer história quanto antes. França está à sua espera.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 12:35 | link do post | comentar

Quarta-feira, 04.12.13

O caso Ghilas nem é novo, nem é mais ou menos grave do que se tem vivido em Portugal. É apenas o sintoma mais claro que a situação não mudou uma só virgula. Portugal continua a ser pasto de corrupção, negócios paralelos, administrações mais interessadas no lucro pessoal que no sucesso colectivo. Um circo controlado por uma oligarquia de poder que arrancou a alma do jogo em Portugal.

 

Ghilas é um avançado muito interessante.

Chegou sem fazer ruído ao modesto Moreirense. Durante dois anos apresentou-se como uma alternativa real aos dianteiros mais populares da liga. Marcava, dava a marcava e fazia trinta por uma linha para evitar o inevitável. Não o conseguiu. O Moreirense acabou despromovido e o argelino, internacional pelo seu país, condenado a continuar a sua carreira no futebol secundário ou noutras paragens. Em Moreira de Cónegos marcou 15 golos em 45 jogos, uma média de 1 golo por cada 3 jogos, nada absolutamente brilhante. Mas o seu nome estava na lista de várias direcções desportivas. Quando chegaram à pequena localidade nortenha, esbarraram com uma cláusula de 3 milhões de euros que o clube não estava disposto a baixar. Curioso. Afinal, o orçamento anual da equipa axadrezada ronda esse valor, o clube ia ser despromovido e precisava de dinheiro como de pão para a boca. Nestes casos negoceia-se, regateia-se. Nunca se paga a cláusula. Nem em Portugal nem em nenhum outro país do Mundo. Mas de certa forma os dirigentes do Moreirense fizeram-se fortes e bateram o pé. Tinham um ás na manga. E que ás.

No Verão apareceu em cena o FC Porto.

A equipa azul-e-branca, com novo treinador e nova filosofia, queria uma alternativa ao colombiano Jackson Martinez. Tinham passado dois anos sem ter um avançado suplente de nível (nem Kléber nem Liedson o foram) e face à tranquila evolução do paraguaio Mauro Caballero e do português André Silva, era preciso ter um nome com alguns créditos firmados para render o "cafetero" e, talvez, preparar a sua sucessão. A escolha parecia perfeita, os adeptos aplaudiram, o negócio concretizou-se. Mas não se falaram em números e todos assumiram que o preço do jogador tinha andado à volta dos valores da sua cláusula. Provavelmente o mastodonte dragão tinha feito os dirigentes do pequeno Moreirense entrar em razão. Estavam tão enganados.

O Relatório de Contas oficial do clube, divulgado esta semana, conta uma história bem diferente. O FC Porto não rebaixou as pretensões do clube nortenho. Ultrapassou-as. Em lugar dos 3 milhões de euros, decidiu pagar 3,8 milhões. Um valor que, como aparece detalhado, nem sequer inclui as famosas comissões e direitos de imagem - esses aparecem num apartado à parte que ronda os 2 milhões, misturados com o negócio de Quintero. O mais grave, talvez, foi que esses 3,8 milhões - que já de por si ultrapassam largamente o máximo legal que o clube teria de pagar - são apenas por metade do passe do franco-argelino. 50% de Ghilas vale 4 milhões de euros. O avançado do modesto Moreirense é o avançado mais caro de todos os tempos do futebol em Portugal num clube fora dos três grandes. Vale 8 milhões de euros. Um valor que empalidece os de Éder, Lima, Hugo Almeida e que se aproxima mais aos de Jackson e Cardozo. Espantoso!

 

Este é o retrato do futebol português.

Parece mais do que evidente - basta ver como está o clube nortenho - que o Moreirense não recebeu 3,8 milhões por Ghilas.

O dinheiro pode nem sequer ter sido movido. Entre agentes, dirigentes e fundos desportivos montou-se nos últimos anos uma teia de negócios onde os números publicados raramente se aproximam dos que estão sobre a mesa. Muito desse dinheiro move-se por debaixo da mesma. Outro, pura e simplesmente, permanece no sitio para maquilhar contas. Os clubes devem-se uns aos outros, os agentes e fundos alimentam o jogo de especulação e os adeptos limitam-se a baixar a cabeça em resignação. No Porto, trinta anos de sucesso desportivo de Pinto da Costa serviu para amordaçar a consciência de muitos adeptos e sócios do clube perante situações como esta. Ghilas nem é o primeiro caso nem será seguramente o último. Faz parte de uma linhagem de negócios tão mal explicados que surpreende como é que há tão pouca gente a colocar o dedo na ferida. Em Lisboa, o cenário não é diferente.

O Benfica tem-se especializado em imitar a gestão do FC Porto nesse sentido e a sua associação com um fundo especial tem ajudado a maquilhar contas com compras e vendas fantásticas, jogadores que aparecem e desaparecem dos quadros do clube conforme dá jeito e compras que se transformam em empréstimos para acabar em dispensas sem que os adeptos encarnados entendam como é que todos os anos o plantel muda, o dinheiro é gasto e a falência técnica ainda não é uma realidade.

Ghilas ou Roberto, nomes próprios para casos concretos mas generalizáveis. Movem-se cifras impossíveis para a realidade social do futebol português. E por jogadores cujo valor em campo está a anos-luz dessa etiqueta que clubes e agentes decidiram colar. Aos adeptos vende-se a obrigatoriedade de ceder moralidade face aos tempos modernos para sobreviver. Mas sobreviver onde?

Nos últimos anos têm sido várias as vozes que sancionam o uso de fundos e de agentes como a única ferramenta que Portugal tem para se manter competitivo na Europa do futebol. Seguramente que essa noção de competitividade é discutível. Afinal as exibições desta temporada (e da do ano passado) na Champions League dão sinal de tudo menos de competitividade. Clubes de ligas periféricas como a Bélgica, Grécia, Áustria, Chipre ou Escócia têm sido capazes de vencer ou roubar pontos aos dois grandes portugueses. Na Europa League a situação é exactamente a mesma. Portanto, seja para o que for, o uso recorrente de fundos para inflacionar transferências, salários e comissões não é o que o futebol português precisa para ser competitivo. Porque o modelo não está a funcionar. Qual é a alternativa se os resultados já são maus suficientes assim?

Para clubes com passivos na ordem dos 200 ou 400 milhões de euros, gastar todos os anos entre 30 a 40 milhões em jogadores é algo incomportável e impossível de entender. A não ser que os dirigentes dos clubes não se preocupem com o futuro e consigam encontrar algo de rentabilidade no momento. Muitos deles podem até estar associados, indirectamente, aos mesmos agentes que movem jogadores a valores que não se praticam em mais nenhuma liga europeia a não ser por clubes que são detidos por grandes fortunas. Herrera, Reyes, Quintero, Ghilas, Markovic, Djuricic, Fejsa e Lisandro só podiam ter sido pagos pelos valores que são pagos em Portugal. Analisando jogadores do mesmo perfil noutras ligas - financeiramente mais fortes, sociedades mais desenvolvidas - e ninguém encontra essa soma de quase 60 milhões de euros em oito jogadores quase adolescentes sem nada demonstrado.

Claro que há outro caminho. Mas os comentadores, dirigentes e alguns opinion-makers colocados pelos clubes em espaços de reflexão dirão que não. Que o futebol português precisa destes fundos, destes agentes e destes jogadores se quer seguir no caminho certo. Fazem lembrar as empresas que nos dizem que sem um GPS não podemos conduzir, esquecendo-se de que o prazer da condução muitas vezes está em seguir pela estrada fora sem ter um "grilo falante" a dizer-nos o que fazer. Esse grilo afastou o futebol português da sua essência e entregou-o a uma meia dúzia de personagens que tem sido responsável directa pela sua decadência e que enquanto se encontrar em situações de poder perpetuará as suas acções. O dinheiro gasto (mal) nestes e noutros negócios (e o que desaparece, sobretudo) poderia ter abatido passivos, reforçado a formação, servido para baixar o preço de entradas para levar adeptos ao estádio ou para pagar museus sem recorrer a financiamentos de empresas estrangeiras. Poderia ter sido utilizado em reduzir o custo do merchandising, para criar iniciativas de conexão com a sociedade local ou para reforçar a massa salarial dos melhores jogadores para evitar a sua venda. Mas sem venda não há comissões. Sem preços de entradas altas os adeptos nos estádios poderiam ser mais humildes e mais exigentes do que os que encaram hoje o futebol como uma ópera a céu aberto. E poderiam começar a fazer-se mais perguntas para as quais as respostas são como as salsichas. O FC Porto gastou 30 milhões em quatro jogadores que não ofereceram nada à equipa mas deram muito a quem a gere. O Benfica e a sua armada sérvia (e algum sul-americano que chega e parte sem dizer olá) está na mesma situação. Começa a ser hora que as rivalidades desportivas entre adeptos sejam postas de parte e que alguém pare o jogo e comece a indagar e a fazer as perguntas que alguns têm medo de ouvir!



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 11:21 | link do post | comentar | ver comentários (6)

Quarta-feira, 23.01.13

Enquanto a CAN dá os primeiros passos, fica evidente uma triste mas inevitável realidade. África pagou o preço de querer ser igual aos outros, aos que ganham a partir do sistema, aos que valorizam o triunfo sobre o modelo. A péssima qualidade dos jogos iniciais, aliada sobretudo à ausência de algumas das melhores selecções do continente, deixa antever um torneio pobre que não entrará na galeria dos mais memoráveis da competição. Tudo porque o futebol africano esqueceu-se de quem é.

Quando os Camarões surpreenderam o mundo do futebol, no Mundial de Itália 90, ainda não vivíamos num mundo global.

Salvo alguns jornalistas franceses - a France Football criara em 1970 o Ballon D´Or só para o continente - na Europa ninguém sabia ou queria saber do que se passava no "continente negro". Ninguém se importava com a Champions League africana, com a CAN, com o aparecimento de grandes estrelas individuais, treinadores memoráveis e jogos que não ficavam atrás dos mais tensos Boca Juniores vs River Plate ou Barcelona vs Real Madrid. África vivia no seu mundo, ignorada pelos restantes habitantes do planeta, fiel às suas origens.

Não era uma anarquia táctica, como sempre se tentou vender. Os jogadores não tinham a mesma formação que os europeus, é certo, desde cedo focados muito mais no aspecto organizacional, mas os conjuntos estavam tacticamente adaptados à realidade do momento. Em 1986 os marroquinos tinham sido eliminados só por um golo no prolongamento de Lothar Mathaus. Quatro anos antes, a Argélia tinha sido uma das melhores equipas da primeira fase, eliminada pelo pacto germânico entre austríacos e alemães. E na Argentina, em 1978, o perfume do futebol tunisino impressionou todos quanto o viram. Eram potências magrebinas, da escola francesa, com vários jogadores que actuavam na Europa, mas eram também a base de muitos dos clubes mais importantes do continente. Era um dos modelos do futebol africano, perfumado, técnico e organizado, cujo expoente máximo, o Egipto, sempre se portou melhor dentro do que fora de portas.

Os Camarões representavam essa outra África, negra, selvagem, rebelde, anárquica quase ao olho europeu, mas que tinha sido habilmente treinada por europeus durante mais de duas décadas para preparar-se para os grandes momentos. As pessoas lembram-se das celebrações de Roger Milla, repescado com os seus 38 anos depois de ter sido ignorado pelo Mundo quando venceu na década de 70 dois Ballon D´Or, mas não da dureza com que os Camarões derrotaram a Argentina. Ou da segurança táctica do conjunto egípcio. A memória, como em tudo, é bastante selectiva e a imagem que ficou de África, apesar de não distante da real, pecou por incompleta.

 

A Nigéria herdou o papel dos Camarões e deslumbrou nos anos 90.

Em toda a sua anarquia, em todo o seu atraso, como se vendia na Europa, venceram o seu grupo no Mundial de 1994, e acabaram eliminados por uma Itália entregue a Baggio. Depois ganharam uns Jogos Olímpicos batendo o Brasil e a Argentina, antes de humilhar espanhóis e bulgaros e cair diante dos dinamarqueses, depois de uma noite sem dormir a discutir os prémios de jogo, esse sim um mal bem africano.

No final, os experts, chegaram à miraculosa conclusão de que África não tinha um campeão do Mundo porque não tinha processos tácticos avançados, não tinha segurança defensiva e não sabia competir de igual para igual. O problema foi que os africanos começaram a acreditar nisso. A Lei Bosman transformou os clubes em empresas de exportação. Em lugar de bananas, exportavam jogadores em contentores para a Europa. O ASEC Mimosas tornou-se na filial do clube belga Lokeren - que chegou a ter onze jogadores marfilenses nos seus quadros. E como toda a lei de exportação, produz-se o que o cliente pede. E os europeus, que inicialmente se apaixonaram por Milla, por Finidi, por Abedi Pelé ou por Weah (já nem vamos falar de Eusébio, Keita, Ben-Barak ou Fontaine), passaram a pedir Desaillys, Vieiras, Essiens, Drogbas jogadores fisicamente possantes e omnipresentes, mais preocupados no processo destrutivo do que na arte mágica da criação. África dedicou-se a renegar da sua própria natureza.

O seu futebol mudou, as ligas - melhor organizadas, mas mesmo assim a anos luz dos modelos europeus - passaram a estar sob a mira de olheiros de todo o Mundo e quando os seus artesões chegavam à Europa e eram devolvidos à procedência por serem incapazes de passar 90 minutos a correr e pressionar o defesa rival sem ter uma oportunidade de golo, chegou-se à conclusão que o futebol africano estava em crise. Que só produzia jogadores físicos, muitas vezes com idades adulteradas, e que todos os criativos se tinham perdido. Ironia das ironias.

Europa provocou a destruição progressiva da alma do futebol africano com a sua política de compra e venda. A necessidade de viajar para o continente europeu para sobreviver - já nem falamos em enriquecer - transformou a própria natureza do jogador africano, como diria Etoo, necessitado de "trabalhar como um negro para viver como um branco". Os avançados passaram a ser tanques, os médios perderam o toque vagabundo para ganhar porte de milicianos e os defesas deixaram de arrancar da sua posição para explorar o mundo para aprender onde dar sem que o árbitro estivesse atento. O futebol africano transformou-se em pouco mais uma década no que é hoje, a anos luz de distância do que significou, onde todas as equipas se parecem, onde falta ambição criativa e sobra a especulação táctica. Onde o resultado é só o que conta.

 

O problema de África, ao acreditar nos europeus - algo que os sul-americanos tiveram a inteligência de nunca fazer verdadeiramente - foi a sua total dependência. Enquanto as ligas sul-americanas permitem que muitos jogadores possam fazer carreira sem sair de lá, em África a emigração é o único destino possível. As escolas patrocinadas por clubes como o Ajax limitaram-se a recrutar os diamantes em bruto cedo para moldá-los à sua figura antes do tempo. Os restantes estão entregues a empresários que dizem aos treinadores como preparar a próxima leva de contentores. Depois, quando se liga a televisão, agora que o mundo global permite, a CAN parece pobre, parece despromovida de emoção e, sobretudo, de qualidade. E há quem pense que o que se pensou, lá no coração da década de 90, não passou de um enorme erro. Quando o erro esteve, precisamente, em ignorar os 40 anos de futebol africano que havia por detrás.


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publicado por Miguel Lourenço Pereira às 19:55 | link do post | comentar | ver comentários (2)

Quarta-feira, 21.11.12

O que significa, no desporto, o fair play. O que significa, realmente, num desporto de competição que move milhões, o conceito quase amador de respeitar o rival acima de todas as coisas? A FIFA e as confederações, com a UEFA à cabeça, defendem o conceito como algo moralmente único mas na prática o fair play vai desaparecendo dos relvados. O acto de Luiz Adriano, pobre reflexo do estado actual do futebol, devia ser para a UEFA a oportunidade de ouro para demonstrar que as palavras também se podem transformar em actos.

 

Se a lógica imperasse, o Shaktar Donetsk teria perdido os três pontos conquistados na Dinamarca.

Mesmo vencendo por 2-5, mesmo tendo sido a melhor equipa no terreno de jogo. Tudo porque cuspiu num dos conceitos mais importantes do futebol como desporto. Do futebol como alma de um espirito competitivo justo e imparcial onde os principios de cavalheirismo ainda fazem sentido. No entanto ninguém espera que isso se torne realidade. Uma multa económica, para engordar o jantar de Michel Platini durante o próximo mês, e pouco mais. Uma reprimenda verbal, um raspanete a meninos mal comportados. A imagem, essa, ficou manchada para a posteridade. Chegue onde chegar o Shaktar Donetsk, que já está matematicamente apurado para os Oitavos de Final, confirmando o que dissemos, todos se vão lembrar antes deste gesto do que da imensa qualidade demonstrada nos cinco jogos pelos homens de Lucescu.

Lucescu, ai Lucescu. O homem que interrompeu a entrevista de Pep Guardiola depois de um 1-2 em que Messi marcou um golo parecido ao de hoje de Adriano, para criticar a falta de desportividade dos blaugrana tem agora um problema nas mãos. Diga o que disser, é fácil perceber que da sua boca não veio nenhuma ordem para permitir o golo dos dinamarqueses. O Nordsjallen vencia por 1-0 e depois do empate de Adriano marcou o 2-1. Mas foi mérito seu, nada mais. Não há nenhum gesto que indique que os ucranianos se deixaram bater. Depois, talvez espicaçados pelas celebrações dos dinamarqueses, marcaram diferenças com a sua superior qualidade. Mas o futebol já tinha perdido.

 

O lance é simples. Fácil de entender e explicar.

Uma bola ao ar no meio-campo que o árbitro indica, como é hábito, ao jogador do Shaktar que devolva à defesa dinamarquesa. Os homens da casa venciam por 1-0, estavam a ser melhores e os ucranianos sentiam-se nervosos. O remate foi sem convicção, é certo, mas Luiz Adriano apanhou a bola em jogo, sem estar em fora de jogo, e correu para a baliza onde o guarda-redes local, incrédulo, nem esboçou uma defesa. Foi o empate e a confusão. O árbitro validou o golo - poderia não fazê-lo? - e os jogadores dinamarqueses cercaram o brasileiro. Os homens de laranja olharam para o banco e encontraram silêncio. Quando a bola arranca, os avançados afastam-se mas o meio-campo fecha a muralha e recupera a bola. Não ia haver devolução de golo concedido, não ia haver desportividade. Muitos milhões em jogo provocam estas atitudes.

E no entanto Arsene Wenger solicitou um jogo repetido numa eliminatória da FA Cup quando Nwanknu Kanu marcou um golo nas mesmas circunstâncias, depois de receber uma bola que não era mais que a devolução desportiva do Arsenal à defesa do Southampton depois de uma bola ao ar. E Paolo di Canio, vendo os rivais no chão, lesionados, não hesitou em atirar a bola para fora e evitar marcar um golo fácil, com a baliza descoberta. Dois gestos que indicam que é possível esquecer que o futebol é uma indústria de milhões e, acima de tudo, um desporto. 

Se o golo pode acontecer, o que é inadmissível é a reacção dos jogadores do Shaktar depois do golo. Essa é a atitude que a UEFA e todos aqueles que acreditam no futebol como algo mais do que uma indústria jamais poderão perdoar. Esquecer e deixar passar.

Os ucranianos deviam ser punidos da forma mais exemplar por representarem, com este gesto, o cúmulo da falta de escrupulos que no futebol tem muitas formas, desde perdas de tempo propositadas, apanha bolas que desaparecem, lesões e expulsões fingidas, agressões imaginárias...

O futebol perde-se um pouco mais em gestos como o de Adriano e dos seus colegas e a UEFA, como organizador do torneio, não pode limitar-se a anúncios televisivos e directivas a adeptos e clubes. A UEFA tem a responsabilidade absoluta de fazer valer o mesmo ideário que está na base do próprio jogo que se chama futebol.

 

Infelizmente este episódio passará os próximos dias por todos os telejornais para acabar no anedoctário do futebol, numa sequência de videos de Youtube e uma piada entre os mais cínicos do jogo contra aqueles que acreditam que o futebol representa realmente algo mais. O Shaktar tem equipa, já o dissemos, para ser uma das surpresas da prova. Adriano, com este hat-trick, pode acabar o torneio como máximo goleador e Lucescu seguramente pensará duas vezes antes de acusar outros técnicos de falta de desportividade. No final, uma modesta equipa dinamarquesa sentirá na pele o cinismo de um jogo que desaparece diante dos nossos olhos e a máquina que é responsável pela sua gestão profissional calará e guardará no bolso o dinheiro pago pelo Shaktar - se é que alguma multa se pagará - para anunciar aos quatro cantos no Mundo a importância do Fair Play. Em vez de Collina no próximo anúncio poderiam colocar Luiz Adriano. Ninguém daria pela diferença!



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 12:05 | link do post | comentar | ver comentários (2)

Sexta-feira, 28.09.12

Até aos anos 90 a FIFA tinha claro onde estava o verdadeiro poder nas estruturas directivas do mundo do futebol. Por isso os Mundiais, a sua prova rainha, o evento máximo do beautiful game, oscilava entre Europa e América, sem nenhuma discussão aparente. Mas os tempos mudaram, o dinheiro começou a faltar e Joseph Blatter teve de piscar o olho às restantes confederações e criou o critério de rotação continental. Mas conhecendo os novos horários do próximo Campeonato do Mundo, fica claro que, apesar de minoritário, o mercado europeu continua a ser a grande preocupação dos homens da FIFA.

 

Na África do Sul, a entrar em pleno Outono, os horários dos jogos eram os mesmos do que os espectadores europeus.

A diferença horária de uma hora permitia adequar os horários reais aos horários televisivos do público europeu e não houve demasiada polémica. Todos estavam contentes. Todos menos todos os adeptos fora do Velho Continente, habituados, mas cansados, de ter de ver todos os grandes torneios fora de horas. As polémicas na Europa à volta do conceito de rotação de continentes doeram à FIFA. Durante cinquenta anos a organização sempre teve predilecção pelos palcos e pelo público da Europa, mas a globalização e a necessidade de agradar a asiáticos e africanos como se agradava a europeus e americanos obrigou Blatter a dar o braço a torcer. Com os respectivos efeitos colaterais.

Na Europa não está o principal mercado do Mundial. Está o mais antigo e prestigiado, seja lá o que isso signifique em contexto de mercado de audiências, mas não é difícil ver mais pessoas a seguir o torneio na Ásia, na América Latina e até mesmo em África do que na Europa. E no entanto tudo ainda é feito à sua medida. Depois das criticas dos horários do Mundial de 1994, nos Estados Unidos, com jogos em horários de altas temperaturas para não desagradar os europeus, a FIFA capitulou e o Mundial da Ásia, no Japão e Coreia do Sul, viu-se essencialmente pelas manhãs para respeitar o horário local e a saúde dos jogadores, por muito que os Europeus tenham tido sérios problemas em conciliar a vida laboral e o seguimento da prova. A péssima performance dos países favoritos não ajudou e na Europa o torneio foi um relativo fracasso o que deixou o aviso para edições futuras. Como a do Brasil 2014.

 

A FIFA anunciou hoje os horários do próximo Mundial e assustam.

Num país que em Junho vive um Outono tropical, que oscilará entre uma humidade e calor asfixiante especialmente nos jogos a norte, e chuvas e temporais, nas zonas costeiras, é importante ter em consideração tanto os horários como as condições em que se vão disputar os encontros. Pelos jogadores, pela qualidade do jogo e pelos próprios espectadores que vão estar fisicamente presentes na prova. Mas para a FIFA esses conceitos são superficiais quando se trata de discutir os horários televisivos, a salsa do futebol actual.

A prova arranca a 12 de Junho e o jogo inaugural será disputado às 21h00 portuguesas (mais uma no horário central europeu) - 17h00 - em claro prime time. A final, a 13 de Julho, um mês depois, será uma hora antes, 20h00 horas portuguesas (21h00 europeias) e, inevitavelmente, às 16h00 brasileiras. A final de um Mundial no calor de uma tarde brasileira é um cenário, no mínimo, surrealista. 

Na fase de grupos, onde haverá uma média de três jogos diários, vão-se usar vários cenários, desde jogos às 13h00 da tarde (hora de máximo calor) até às 21h00, também do Brasil, o que permite uma oscilação no mercado europeu das 17h00 e 01h00 da madrugada. No continente asiático, onde está o verdadeiro core de audiências, os jogos serão essencialmente transmitidos durante a madrugada, sem qualquer consideração pelos seus espectadores enquanto que o continente africano seguirá o torneio com horários similares ao Europeu. 

Na fase a eliminar, os jogos serão disputados durante a tarde brasileira e prime-time europeu. Sem qualquer respeito pelos jogadores e pelos adeptos locais. 

Para uma organização que diz que gere o jogo para o seu próprio bem, o Mundial é a verdadeira prova de fogo de como gere os destinos do seu jogo. E este Mundial prova, de uma vez por todas, que há muito que os senhores de Zurique se esqueceram do futebol para concentrar-se nos seus rendimentos. Enquanto se equaciona um Mundial no Inverno europeu para não coincidir com o calor asfixiante dos horários de Junho no Qatar, o último torneio americano nos próximos 14 anos deveria ter em consideração os próprios sul-americanos, que não recebem uma prova desde o longínquo 1978. Em vez disso, a FIFA aposta sobretudo pelo mercado europeu, talvez pensando em contentar os seus associados quando cheguem as próximas eleições - onde a UEFA terá um papel fundamental - e nos contratos com as multinacionais que fazem da Europa o seu mercado preferencial, pelo maior poder de consumo que ainda ostenta. O Brasil, mercado emergente como será a Rússia em 2020, recebe o torneio mas continua a ser forçado a adaptar-se à vida diária dos seus antigos conquistadores.

 

Para um adepto europeu estes horários são boas noticias. Mantém-se a tradição absoluta de seguir a prova rainha na comodidade dos horários pós-laborais, sem grande ginástica logística. Para o resto do mundo a situação continua a parecer-se com a asfixia de longas décadas de autoritarismo eurocêntrico. Os sul-americanos terão de decidir entre trabalhar e ver os jogos no seu torneio. Os asiáticos terão de esquecer-se de dormir durante um mês tudo para que na Europa o jantar seja acompanhado dos pratos fortes da jornada. Sepp Blatter fecha o ciclo que abriu João Havelange. Dar ao Mundo uma mão assegurando-se de que na outra fica com as suas carteiras, a sua moral, o seu futuro!



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 12:38 | link do post | comentar | ver comentários (6)

Terça-feira, 25.09.12

A lamentável imagem da noite de domingo em Vallecas deixa a nú a realidade do futebol espanhol. O país que conta com a melhor selecção do mundo e as duas equipas com o maior número de estrelas por metro quadrado, é também o país onde clubes de primeiro nível sobrevivem de esmolas, vivem à beira da ilegalidade, pagam tarde e a más horas e deixam as suas instalações definhar progressivamente. Vallecas é o estado real do futebol de um país que se esconde atrás do seu pódio de protagonistas para tapar as suas misérias.

 

Martin Presas não é um presidente qualquer.

O homem responsável pelos destinos do Rayo comprou o clube à familia Ruiz de Mateos, que sempre andou em conflito com a justiça - e segue - para fazer dele a sua coutada pessoal. Mas encontrou-se com uma das massas adeptas mais fanáticas, no bom sentido, de um país onde a maioria dos adeptos preocupa-se primeiro com o resultado de Madrid ou Barcelona, antes de pensar nas suas próprias cores. No decorrer do jogo de ontem, o segundo jogo, o que nunca devia ter sido realizado, foi apupado pelos seus. Não lhe valeu as desculpas de mau pagador, as acusações de sabotagem, de atentado terrorista futebolistico que lançou quando na noite de domingo as luzes do estádio de Vallecas ficaram por acender.

O Real Madrid tinha de jogar nessa noite no campo do pequeno clube de bairro da capital.

Era um jogo fundamental. Em dois jogos fora, o Madrid não tinha vencido nenhum e com quatro pontos caminhava já a onze do líder absoluto da prova, o Barcelona. Um jogo de tensão, especialmente porque Vallecas não é um campo fácil, como se demonstrou pela vitória sofrida do ano anterior. Um jogo de expectativa, para saber se a polémica entre Mourinho e o plantel, em particular Sérgio Ramos, estava definitivamente ultrapassada. Enfim, um jogo debaixo dos focos mediáticos. E um jogo que nunca se disputou.

Uma hora antes do arranque do encontro caiu uma tempestade sobre a capital espanhola. Os jornalistas presentes no estádio viram um clarão de luz e de repente, a escuridão. Quando as luzes voltaram a ser acesas, os interruptores não responderam e o estádio ficou sem iluminação. A uma hora do arranque do encontro os adeptos, cerca de 15 mil, foram deixados à porta, as equipas no relvado, desorientadas, e no telhado das bancadas, operários improvisados, sem condições, tentavam perceber o porquê. À hora oficial do arranque do jogo começou a surgir o rumor de uma sabotagem, entrada a noite o Rayo Vallecano disponibilizou fotos na sua conta de twitter em que mostrava uma caixa de luz com cabos cortados e o jogo foi adiado por 24 horas. Deixando a nú todas as misérias do futebol espanhol.

 

Apesar da polémica poucos acreditam que em poucas horas uma equipa especializada fosse capaz de surgir no coração do estádio de Vallecas, cortar 25 cabos e assim boicotar um jogo de máxima intensidade. O estádio do Rayo Vallecano é reconhecido por ser um desastre de gestão e manutenção e se o clube se apurasse para as provas da UEFA nunca receberia o selo de aprovação para os jogos em casa. 

Mas não é o único. A crise económica espanhola tem levado muitos clubes a baixar a guarda no que diz respeito à manutenção e cuidado com os seus estádios e centros de estágio. Em Valencia e Madrid, tanto o Atlético como o Valencia têm as novas casas paralizadas, à espera de financiamento, e o estado actual do Nuevo Mestalla e do Vicente Calderon deixam muito que desejar. O caso de Vallecas é apenas a ponto do iceberg do que pode surgir no futuro num país onde quase nenhum clube paga os salários a tempo e horas. Um país onde a maioria dos clubes deve dinheiro mais do que é capaz de gerar e é forçado a vender para manter-se vivo. Uma liga das estrelas que vive, sobretudo, do imãn mediático que Real Madrid e Barcelona provocam, e do sucesso de uma política desportiva de formação que garante que a selecção principal continuará a dar cartas no panorama internacional.

Os problemas financeiros de clubes históricos, as acusações de compra e venda de jogos no final da temporada, os horários televisivos escolhidos a dedo por uma empresa de televisão que tem contribuido activamente, em conjunto com os clubes e os seus preços exorbitados de bilhetes, para que a assistência média caia de ano para ano, são apenas alguns dos espinhos da rosa que é o futebol do país vizinho.

 

A crise económica que assola Espanha não deixará, seguramente, que a situação mude nos próximos anos. O fosso entre grandes e pequenos é cada vez maior e só o prestigio das vitórias internacionais mantém a ilusão que a liga espanhola é ainda uma liga de estrelas e campeões. No entanto a gestão dos clubes e dos directivos federativos tem contribuido para piorar a cada temporada que passa o producto final e as consequências no futuro podem ser devastadoras para os que não se prepararam para a tempestade.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 16:50 | link do post | comentar | ver comentários (3)

Domingo, 29.04.12

poucos paises no Mundo como a Itália. Uma mistura sublime de beleza natural, humana, de gentes afáveis e história a cada pedra que se calca. É também um dos países mais sujos, desorganizados, inseguros e irrespiráveis que conheço. O Calcio italiano não dista, como tudo no "belle paise", desde o seu capuccino ás suas voluptuosas mulheres, dessa realidade bipolar. Mas como a politica, a justiça e a económia, o futebol italiano também há muito que vive numa terra de ninguém, anárquica, corrupta e sem amor próprio. A decadência da Serie A é evidente e já não apenas nos números. O triste número montado pelos Ultras do Genoa exemplifica perfeitamente o estado de sitio moral em que senta o futebol no país da bota.

 

Os jogadores choram. De vergonha, de medo. Sabem o que lhes irá acontecer. Em Itália ninguém, nem mesmo o mais carismático idolo, se atreve a contrariar os Ultra.

É uma triste realidade que se vive em poucos países, talvez só a italianizada Argentina sinta a mesma dor, o mesmo buraco na alma, com o triste mas real fenómeno dos Barras Bravas. A violência no Calcio não é tão evidente, não é tão intensa, mas está lá, no mais brutal dos gestos, no mais ensurdecedor dos silencios. Os jogadores sabem-no, os directivos sabem-no e os adeptos neutrais também. Mas como sempre o italiano assobia para o lado, lança um piropo e continua a sua vida. Aqui não passa nada, nada que seja com ele.

Imagino os adeptos neutrais, pelo menos os adeptos que não roçam a loucura facciosa e suicida que compõe o complexo fenómeno dos Ultra. Quando os anos 80 radicalizou a figura dos grupos de apoio organizados, quando o dinheiro das mafias locais e o compadrio das directivas familiares lhes deram uma fatia do poder, o Ultra deixou de ser um sinónimo de apoio incondicional à inglesa para passar a ser mais um braço armado e corrupto, pronto a ficar com uma fatia do bolo em nome do amor ao clube. Em Roma a Lázio há anos que não consegue um acordo publicitário digno do seu valor de mercado porque preferiu entregar o monopólio da comercialização do seu merchandising à directiva dos seus temidos Ultras. Todos sabem isso, poucos querem falar disso e ninguém se queixa. Porque, caso contrário, há muito que os péssimos resultados desportivos da era pós-Cragnotti teriam provocado lutas, invasões de campo e ataques directivos aos directivos e jogadores. O dinheiro paga o silêncio. Em Roma, em Milão, em Turim, em Napoles, em Palermo, de norte a sul o futebol italiano há muito que se tornou alvo de escárnio. A péssima qualidade de jogo, as fracas performances das equipas, a falta de estrelas e os problemas relacionados com o doping e as apostas são apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo e assustador. Há largos anos que o Calcio sobrevive na anarquia. Como a que levou à suspensão do Genoa-Siena.

 

Os homens da Toscânia venciam por 0-4, um triunfo categórico, indiscutivel e perfeitamente evitável tal era a superioridade teórica inicial do onze genovês. Mas o futebol é assim, cheio de rasteiras e tardes de bruxas e num duelo de rivais directos tudo pode suceder. Tudo ocorreu depressa demais para a habitual lentidão italiana. Ao minuto 54 Alberto Malesani lançou o georgiano Kaladze para o relvado. Um defesa por um avançado, com um 0-4 no marcador e a linha de água no pescoço. O grupo de Ultras sentiu que tinha a legitimidade moral para fazer-se ouvir mais do que manifestar-se nas bancadas. À boa maneira italiana, pressentiu correctamente que, fizessem o que fizessem, sairiam impunes. Lembrando-me de um Roma-Lazio de há largos anos, onde o rumor falso da morte de um adepto levou o próprio Totti a servir de correio com o árbitro face às exigências dos Ultras da AS Roma, é fácil perceber porquê.

Os lideres do movimento, os que mais lucram com os negócios paralelos feitos ás escondidas com a directiva, entraram no relvado e num gesto de humilhação moral exigiram a camisola dos jogadores. Estes sabiam a que se arriscavam se negassem. Provavelmente ataques ás suas casas, ás suas familias, aos seus carros, uma transferência apressada e pela porta pequena em Junho e o medo no corpo para sempre. É assim que funciona o Calcio e foi esse fantasma bem real que levou a que o capitão genovês, Marco Rossi, a recolher as camisolas e entregá-las como despojos. Claro que as barreiras das bancadas foram abertas com a autorização da directiva e que a pantomina montada entre lágrimas e suspiros pareceu mais assustadora para fora do que realmente foi dentro do relvado. Os jogadores do Siena sairam imaculados do relvado, tal como a equipa arbitral e o jogo prosseguiu, 40 minutos depois, com os Ultras, esses apoiantes incondicionais, de costas para o relvado. O resultado, 1-4, condenou o Genoa a cair mais dois postos na tabela, a ser ultrapassado pelo próprio Siena e a dormir no 17º lugar, apenas dois pontos à frente do Lecce com cinco jogos para o final. Foi o pretexto ideal para Alberto Malesani ser despedido, de novo, nesse habitual circo italiano de treinadores que orientam a equipa mais do que uma vez ao ano. Na Serie A os casos como o de Malesani são o pão nosso de cada dia do norte ao sul e ninguém acredita que o homem que os Ultras juraram expulsar do clube não volte algum dia a sentir-se no Luigi Ferrari. Noutro tempo, noutra época, na mesma crua e triste realidade.

O fenómeno Ultra em Itália é mais perigoso que alguma vez foi o hooliganismo em Inglaterra. Os mais selvagens e animalesco adeptos ingleses formavam-se fora do circulo do clube, existiam á sua margem e acabaram por ser facilmente domados porque nunca exerceram posições de poder real. Em Itália a situação é bem mais complexa. Não há tanta violência exterior mas por dentro os grupos Ultras minam os seus clubes, a liga e o futebol italiano em geral. Estão por detrás do fenómeno das apostas ilegais, alguns são os principais fornecedores de drogas aos jogadores e fazem cair técnicos e estrelas com um estalar de dedos. São eles quem melhor sabe manejar estes dias crueis de anarquia e também são eles em grande parte os responsáveis pelo atraso desportivo e moral em que vive aquela que foi, não há tanto tempo assim, a melhor liga do Mundo. A impunidade dos adeptos do Genoa não é nova nem sequer um exclusivo do clube. Funciona melhor como um espelho da arrogância e da impotência, da impunidade e da injustiça, da falta de escrupulos e do interesse financeiro, nomes dignos dos muitos coveiros que atiram a terra para cima do caixão podre da Serie A.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 00:43 | link do post | comentar | ver comentários (4)

Segunda-feira, 09.04.12

Portugal é um país de hipócritas. Um país de falsos liberais, de complexados revolucionários, de amargados sociais e de brandos costumes onde a aparência vale sempre mais que o conteúdo. Um país de faz-de-conta que continua a acreditar, na era de abertura social em que vivemos, que é possível manter os espartilhos sociais e morais de outros tempos não tão distantes. O futebol português sofre, em demasia, desses condicionantes que servem como um dos muitos entraves para um genuino desenvolvimento estrutural que termine, de uma vez por todas, com a profunda incapacidade que existe no país de se olhar no espelho e ver-se tal e qual como é.

O país gosta de ser imaginar como uma virgem de outras eras, incapaz de pronunciar certos nomes e ideias sob pena de aparentar ser menos pura do que é. Na realidade é uma velha rancorosa, incapaz de se assumir como é, com rugas, estrias e pecados escondidos que utiliza a falsa moral social para esconder tudo o que lhe vai por dentro. O futebol nacional, como reflexo perfeito do país, é exactamente igual. Não só no terreno de jogo mas em todos os meios que o fazem, popularizam e internacionalizam.

Esta semana o país que ainda não se decidiu se vai ficar sem subsidios de férias, se aceita manter-se acorrentado por mais anos do que o inicialmente previsto escandalizou-se com mais dois eventos ligados ao universo futebolistico. Fait-divers, como se diz na giria jornalistica, que ganham importância social precisamente por essa clara e preocupante falta de maturidade social e desportiva de quem vive de e para o meio. Primeiro foi a celebração de um comentador desportivo da RTP ao golo de Bruno César, nos instantes finais do Benfica-Braga, que suponha a ultrapassagem do clube encarnado na tabela classificativa aos arsenalistas. Dias depois foi o Telejornal da RTP a ser acusado de fazer propaganda ao mesmo clube, utilizando os jogos europeus da passada semana como exemplo de porquê apostar numa agência de controlo de audiências em detrimento de outra, escolhida por um canal da concorrência. Em nenhum dos casos, como diria Maradona, "se ha manchado la pelota". Mas o grito social, essa imaturidade crónica, transformou o futebol no pretexto para resolver contas pendentes.

Noutros países europeus, para fechar o circulo á volta do mesmo espaço social, politico, económico e histórico onde se move Portugal, há muito que esses pruridos sociais deixaram de fazer sentido. Há uma abertura social, no aspecto desportivo e não só, que em lugar de criar guettos sociais contribuiu para uma crescente e factável pluralidade. Se a imprensa como orgão independente continua a ser o elemento fundamental, o posicionamento ideológico, base do jornalisto do século XIX, é cada vez mais uma nova realidade. É fácil distinguir em Espanha, Itália, França, Alemanha ou Inglaterra a jornais de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, nacionalistas ou regionalistas, apoiantes deste ou daquele clube, deste ou daquele politico, deste ou daquele personagem. Esse posicionamento não só é mais transparante, honesto e frontal, sem medos, como deixa claro uma coisa ao público: aqui não se engana ninguém.

 

Portugal é o país dos enganos e dos desenganos mais do que do desassossego que tanto preocupava o génio Pessoa.

João Gobern era comentador do programa Zona Mixta há cinco anos. Durante cinco anos foi o que tinha sido nos anos anteriores e o que continuará a ser, adepto de um clube. Qualquer pessoa, seja um árbitro, jornalistas, técnico, jogador ou opinion-maker que escreva sobre futebol tem uma orientação clubistica da mesma forma que qualquer pessoa que se dedique á politica tem uma ideologia, que qualquer escritor tem uma corrente literária que mais o influencia e qualquer cineasta um autor que lhe serviu de inspiração e admiração durante o seu periodo formativo. Negar essa realidade, como só se faz em Portugal, é acima de tudo brincar com o público.

Mais, em todos esses países que citei há programas desportivos, como os há de tertúlias politicas, onde os convidados são-no, precisamente, pela sua filiação. João Gobern, com o qual raramente estou de acuerdo quando o leio ou ouço, limitou-se a fazer o que qualquer adepto de futebol faz, um gesto contido de celebração num momento importante para o seu clube. Não fez nenhuma declaração, não gritou, não interrompeu o colega de mesa. E não teve consciência de que o director, nesse instante, tinha optado por um plano largo em vez de um grande plano, como é habitual na maioria das intervenções tertulianas. Em lugar de aceitar essa reação com normalidade, como sempre, caiu o Carmo e a Trindade e o comentador foi despedido pela mesma estação que o contratou sabendo da sua orientação futebolistica. A hipocrisia é perigosa porque a questão não está no clube e na pessoa afectadas mas sim na falta de sentimento democrático que ainda vive á volta do futebol português onde um jogador, um treinador e um jornalista não podem ainda assumir as suas preferências clubisticas com medo a que sejam crucificados para sempre. 

O FC Porto cresceu nos anos 80 a galopar contra esta tendência, com jornalistas que rodeavam a equipa e que se assumiam como tal, muitos deles ainda no activo e com corpos técnicos, directivos e jogadores que faziam do seu "portismo", uma arma de união e comunhão com os adeptos. Hoje o clube detém uma percentagem maioritária num canal televisivo mas fá-lo a medo, sem assumir o canal como seu e com pézinhos de lã, para não ofender as virgens ofendidas. As mesmas que criticam que no canal do clube rival existam tertulias onde os adeptos desse clube defendem o seu posicionamento lógico num contexto de rivalidade desportiva. Os mesmos que criticam que a RTP, a mesma que despede um adepto de um clube por celebrar um golo em silência agora é acusada de propaganda ao mesmo clube quando utiliza um exemplo de dois jogos para provar que a companhia a quem contrata a medição de audiência é mais fiável. A hiprocrisia é tal que mesmo os adeptos mais racionais que sabem que, sem dúvida alguma, o clube com mais simpatizantes em Portugal continua a ser o SL Benfica - ainda que longe dessa mitologia dos 6 milhões que tanto se proclamou - e a competição de clubes mais popular do Mundo têm maior probabilidade de ter mais audiência que o jogo de um clube rival, o Sporting CP, também com uma franja significativa de adeptos mais em clara decadência face à sua época de esplendor social, e uma competição onde Portugal se tem dado muito bem nos últimos anos mas que mediaticamente não possuiu o mesmo peso.

É intelectualmente desonento fazer destes dois casos uma arma de arremesso porque o pior está no posicionamento dúbio e interesseiro dos jornais desportivos, de canais de televisão privados e de vários nomes da praça que falam dando a impressão que nada devem, nem a Deus nem ao Diabo. Em Espanha, um país que viveu também uma ditadura politica e um dominio futebolistico de um clube durante grandes periodos dessa ditadura, hoje a abertura social é evidente. A imprensa da capital, afecta aos clubes da capital, exerce de facto como uma imprensa nacional e a imprensa regional reforça o caracter independentista dos seus clubes, sejam galegos, valencianos, euskeras ou catalães. As tertulias televisivas são transparentes, os jornais claros e ninguém se atreveria sequer a tomar uma posição de virgem ofendida em casos similares aos que tanto têm preocupado os adeptos lusos. 

 

Os fantasmas dos portugueses são mais profundos e traumáticos do que se possa pensar e a forma como o futebol ainda é visto pela maioria da população é apenas um espelho. O país mais centralista da Europa é incapaz de conviver com os distintos sentimentos regionais e vive debaixo do espartilho das aparências que têm moldado todos os governos democráticos dos últimos 35 anos. Todos sabem que jornal X, jornalista Y e jogador Z são aficionados de um clube mas é preciso manter o silêncio, o medo continua a ser mais importante que a honestidade. As proprias instituições, sejam clubes ou empresas de comunicação gostam de jogar ao esconde esconde, confundir o público, emitir notas criticas, levantar polémica, para depois á mesa, como fazem os deputados da nação, resolver tudo com um sorriso e um vinho de colheita vintage. Não me preocupa que a RTP tenha despedido um comentador ou que haja na internet plataformas a acusar o canal público de servilismo clubistico. O que realmente me incomoda é que o futebol português seja ainda, mentalmente, uma criança.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 13:12 | link do post | comentar

Sexta-feira, 09.03.12

Está claro que no futebol os títulos não são tudo. Para os adeptos do APOEL o triunfo sobre o Olympique Lyon vale muito mais que os cinquenta troféus acumulados nos últimos setenta anos. Num país que sonha acordado com a enosis com a mãe pátria, o sentimento de orgulho nacional encontrou na bola de futebol o pretexto mais lógico e genuino. Para muitos cipriotas a noite de 7 de Março entra directamente na galeria dos momentos mais significativos da história do país. O futebol faz esquecer um país dividido, desencontrado e que procura afirmar-se como algo mais que um destino turistico de sonho.

 

Pode-se explicar a magnitude do feito logrado pelo APOEL por números ou por sensações.

Mas em nenhum dos casos teremos uma ideia aproximada do que significa estar, agora mesmo, em Nicósia. O futebol transformou-se no Século XX numa das mais eficazes formas de reinvindação dos povos. O sucesso nos terrenos de jogo várias vezes espelha a própria evolução de um país ou cidade no plano económico, politico e social. No caso cipriota é preciso ir mais além. Na Europa pós-Guerra Fria só ficaram sequelas de meio século de tensões politicas num país europeu. Precisamente, o Chipre.

O país continua dividido de forma não-oficial (só a Turquia reconhece a República separatista do norte), os muros continuam a relembrar dias pretéritos e apesar dos valores de qualidade de vida serem dos mais elevados da Europa – e definitivamente da zona mediterrânica – esse fantasma de desunião teima em não largar a memória dos cipriotas. Se a esse karma politico juntamos o eterno desejo de uma imensa maioria em unir-se, de forma definitiva, à Grécia (algo planteado por inúmeras vezes nos últimos duzentos anos), torna-se fácil entender que para os cipriotas não há muitos motivos para sacar à janela a bandeira do país e celebrar um feito capaz de capitalizar a nação. No Chipre vive-se relativamente bem, a integração europeia entre 2004 e 2008 foi rápida e sustentada e depois há o imenso nada, o tremendo vazio de momentos capazes de quebrar a rotina de um centro cada vez mais atractivo para o turismo e para a gestão de recursos naturais nas águas quentes e apaixonantes de onde brotou Afrodite. Quando a bola disparada por Gomis encontrou as mãos de Chiotis, tudo fez sentido.

Nunca na história da competição rainha da UEFA uma equipa representante de um pais fora dos 20 primeiros do coeficiente UEFA chegou aos Oitavos de Final. Muito menos aos Quartos. Nos últimos oito anos é preciso recuar a 2003-04 – um ano atipico na história da prova – para encontrar um clube de um país fora do top 15 da UEFA nos Oitavos. Naquela altura o Sparta de Praga caiu de pé, mas mesmo esse feito não deixa de ser bem distinto ao que vivemos hoje. Afinal a República Checa sempre foi uma referência absoluta na evolução do futebol europeu. O Chipre, um imenso desconhecido.

 

Dentro da ilha mediterrânica poucos podem contestar a hegemonia do APOEL.

Clube fundado por gregos desejosos de unir a ilha aos destinos da sua pátria de origem, sempre foi utilizado como mecanismo de propaganda nacional para os entusiastas da enosis greco-cipriota. Há uma longa tradição de jogadores gregos no clube. Que Chiotis, o histórico guarda-redes helénico, tenha sido o herói do apuramento só reforça ainda mais o momento legendário de um clube reencontrado. O sucesso recente do APOEL espelha igualmente o crescimento de um país que só em 1960 se libertou do jugo imperial britânico, mas que quatorze anos depois se viu dividido entre a ambição turca e grega.

A indefininação nacional significou também uma crónica incapacidade de afirmar-se no terreno desportivo. A partir de 2000 o rápido crescimento económico e social do país, prévia à sua entrada na UE, começou a mudar a dinamica social. Os clubes cipriotas pagavam bem e a tempo e muitos jogadores de perfil médio de várias ligas decidiram emigrar. Kennedy e Ricardo Fernandes foram os primeiros portugueses e hoje o clube conta com quatro jogadores lusos que em Portugal nunca tiveram oportunidades e que ao comando de Ivan Jovanovic se tornaram em peças fundamentais do apuramento. A maioria dos jogadores do clube são internacionais cipriotas mas há nove nacionalidades representadas no balneário. Tudo cartas fora do baralho nas grandes ligas que, em conjunto, se metamorfosearam numa legião de invenciveis.

O APOEL, que já tinha surpreendido na sua primeira aparição em 2010 na prova, teve de passar por três Pré-Eliminatórias para chegar à fase de grupos. Eliminou albaneses (Skenderbeu), eslovacos (Slovan) e polacos (Wisla), tudo clubes de nações com perfil similar. A improbabilidade de marcar presença no top 8 do Velho Continente era tal que nem sequer surgia nas casas de apostas no inicio da competição. A sorte esteve do lado dos heróis de Nicósia. Ao contrário de outros pequenos clubes europeus como o Viktoria Pilzen, BATE Borisov ou Dinamo Zagreb, o grupo onde foi enquadrado era bastante equilibrado. Um Shaktar decadente face ao ano prévio, um FC Porto desencontrado e um Zenith irregular permitiram somar pontos importantes que garantiram um apuramento inesperado e precoce. O sorteio dos Oitavos também abria as portas ao sonho. Afinal este Olympique Lyon está longe de ser a “besta negra” dos gigantes europeus. Mas a diferença brutal de orçamentos, massa salarial, expectativas e plantel era tal que nem os homens de laranja da PAN.SY.FI, a claque oficial do clube fundada em 1979, se atreviam a sonhar com tamanha audácia. Mas o futebol, como a poesia, permite sempre fintar o brutal realismo do dia a dia.

 

Mesmo com todos estes atenuantes, imaginar uma equipa de um país que nunca esteve sequer perto de apurar-se para um evento internacional é um logro tremendo. A vitória do APOEL é também uma vitória para Platini e a sua Champions League mais plural. Uma vitória para o futebol europeu que não pode cair no jugo de uma asfixiante Euroliga. E uma vitória para o futebol do Chipre, uma nação que se tem reencontrado a pouco e pouco com a sua essência. Se nas ruas de Nicósia e nas praias de Larnaca a bola sempre fez parte da herança cultural do país, o som do hino europeu no GSP Stadium é também uma forma de agarrar pelos braços um país que navega a contracorrente e procura não perder de vista as margens de uma Europa onde se integra com a mesma certeza com que se deixa levar pelos ventos quentes do sul que roçam os ciprestes do monte Olimpus.



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