Enquanto a CAN dá os primeiros passos, fica evidente uma triste mas inevitável realidade. África pagou o preço de querer ser igual aos outros, aos que ganham a partir do sistema, aos que valorizam o triunfo sobre o modelo. A péssima qualidade dos jogos iniciais, aliada sobretudo à ausência de algumas das melhores selecções do continente, deixa antever um torneio pobre que não entrará na galeria dos mais memoráveis da competição. Tudo porque o futebol africano esqueceu-se de quem é.
Quando os Camarões surpreenderam o mundo do futebol, no Mundial de Itália 90, ainda não vivíamos num mundo global.
Salvo alguns jornalistas franceses - a France Football criara em 1970 o Ballon D´Or só para o continente - na Europa ninguém sabia ou queria saber do que se passava no "continente negro". Ninguém se importava com a Champions League africana, com a CAN, com o aparecimento de grandes estrelas individuais, treinadores memoráveis e jogos que não ficavam atrás dos mais tensos Boca Juniores vs River Plate ou Barcelona vs Real Madrid. África vivia no seu mundo, ignorada pelos restantes habitantes do planeta, fiel às suas origens.
Não era uma anarquia táctica, como sempre se tentou vender. Os jogadores não tinham a mesma formação que os europeus, é certo, desde cedo focados muito mais no aspecto organizacional, mas os conjuntos estavam tacticamente adaptados à realidade do momento. Em 1986 os marroquinos tinham sido eliminados só por um golo no prolongamento de Lothar Mathaus. Quatro anos antes, a Argélia tinha sido uma das melhores equipas da primeira fase, eliminada pelo pacto germânico entre austríacos e alemães. E na Argentina, em 1978, o perfume do futebol tunisino impressionou todos quanto o viram. Eram potências magrebinas, da escola francesa, com vários jogadores que actuavam na Europa, mas eram também a base de muitos dos clubes mais importantes do continente. Era um dos modelos do futebol africano, perfumado, técnico e organizado, cujo expoente máximo, o Egipto, sempre se portou melhor dentro do que fora de portas.
Os Camarões representavam essa outra África, negra, selvagem, rebelde, anárquica quase ao olho europeu, mas que tinha sido habilmente treinada por europeus durante mais de duas décadas para preparar-se para os grandes momentos. As pessoas lembram-se das celebrações de Roger Milla, repescado com os seus 38 anos depois de ter sido ignorado pelo Mundo quando venceu na década de 70 dois Ballon D´Or, mas não da dureza com que os Camarões derrotaram a Argentina. Ou da segurança táctica do conjunto egípcio. A memória, como em tudo, é bastante selectiva e a imagem que ficou de África, apesar de não distante da real, pecou por incompleta.
A Nigéria herdou o papel dos Camarões e deslumbrou nos anos 90.
Em toda a sua anarquia, em todo o seu atraso, como se vendia na Europa, venceram o seu grupo no Mundial de 1994, e acabaram eliminados por uma Itália entregue a Baggio. Depois ganharam uns Jogos Olímpicos batendo o Brasil e a Argentina, antes de humilhar espanhóis e bulgaros e cair diante dos dinamarqueses, depois de uma noite sem dormir a discutir os prémios de jogo, esse sim um mal bem africano.
No final, os experts, chegaram à miraculosa conclusão de que África não tinha um campeão do Mundo porque não tinha processos tácticos avançados, não tinha segurança defensiva e não sabia competir de igual para igual. O problema foi que os africanos começaram a acreditar nisso. A Lei Bosman transformou os clubes em empresas de exportação. Em lugar de bananas, exportavam jogadores em contentores para a Europa. O ASEC Mimosas tornou-se na filial do clube belga Lokeren - que chegou a ter onze jogadores marfilenses nos seus quadros. E como toda a lei de exportação, produz-se o que o cliente pede. E os europeus, que inicialmente se apaixonaram por Milla, por Finidi, por Abedi Pelé ou por Weah (já nem vamos falar de Eusébio, Keita, Ben-Barak ou Fontaine), passaram a pedir Desaillys, Vieiras, Essiens, Drogbas jogadores fisicamente possantes e omnipresentes, mais preocupados no processo destrutivo do que na arte mágica da criação. África dedicou-se a renegar da sua própria natureza.
O seu futebol mudou, as ligas - melhor organizadas, mas mesmo assim a anos luz dos modelos europeus - passaram a estar sob a mira de olheiros de todo o Mundo e quando os seus artesões chegavam à Europa e eram devolvidos à procedência por serem incapazes de passar 90 minutos a correr e pressionar o defesa rival sem ter uma oportunidade de golo, chegou-se à conclusão que o futebol africano estava em crise. Que só produzia jogadores físicos, muitas vezes com idades adulteradas, e que todos os criativos se tinham perdido. Ironia das ironias.
Europa provocou a destruição progressiva da alma do futebol africano com a sua política de compra e venda. A necessidade de viajar para o continente europeu para sobreviver - já nem falamos em enriquecer - transformou a própria natureza do jogador africano, como diria Etoo, necessitado de "trabalhar como um negro para viver como um branco". Os avançados passaram a ser tanques, os médios perderam o toque vagabundo para ganhar porte de milicianos e os defesas deixaram de arrancar da sua posição para explorar o mundo para aprender onde dar sem que o árbitro estivesse atento. O futebol africano transformou-se em pouco mais uma década no que é hoje, a anos luz de distância do que significou, onde todas as equipas se parecem, onde falta ambição criativa e sobra a especulação táctica. Onde o resultado é só o que conta.
O problema de África, ao acreditar nos europeus - algo que os sul-americanos tiveram a inteligência de nunca fazer verdadeiramente - foi a sua total dependência. Enquanto as ligas sul-americanas permitem que muitos jogadores possam fazer carreira sem sair de lá, em África a emigração é o único destino possível. As escolas patrocinadas por clubes como o Ajax limitaram-se a recrutar os diamantes em bruto cedo para moldá-los à sua figura antes do tempo. Os restantes estão entregues a empresários que dizem aos treinadores como preparar a próxima leva de contentores. Depois, quando se liga a televisão, agora que o mundo global permite, a CAN parece pobre, parece despromovida de emoção e, sobretudo, de qualidade. E há quem pense que o que se pensou, lá no coração da década de 90, não passou de um enorme erro. Quando o erro esteve, precisamente, em ignorar os 40 anos de futebol africano que havia por detrás.
Apesar de ter passado desapercebido da maioria dos observadores, no último ano houve poucos jogadores que dessem um salto tão grande na sua carreira como o ganês Samuel Inkoom. A águia que domina o flanco direito de uma selecção recém-sagrada campeão do Mundo de sub-20 e dos suiços Basel FC tem todas as condições para se tornar numa estrela mundial.
O nome Inkoom significa "Rei Guerreiro". E acenta que nem uma luva no jovem lateral de 20 anos. Samuel Inkoom é um dos nomes próprios de 2009. E para ele o ano de 2010 anteve-se ainda mais risonho. Começou o ano passado como um desconhecido do histórico Kotoko No Verão convenceu os suiços do Basel FC a contratarem-no. A partir daí o conto de fadas foi tomando proporções impensáveis até para o mais optimista.
Nascido em Agosto de 1989, Inkoom é o equivalente africano ao estilo de jogo popularizado por Daniel Alves. Rápido, perfeito nas transições ofensivas, tem como ponto fraco algum atraso na recuperação de posição. Mesmo assim a sua velocidade nata ajuda-o muitas vezes num um contra um, tanto no processo ofensivo como no posicionamento defensivo. Começou a dar nas vistas ainda muito novo e chegou a estar na órbita do Barcelona. Acabou por não viajar até à Catalunha. Preferiu as montanhas geladas dos Alpes. No passado Verão juntou-se ao Basel FC, um dos candidatos ao titulo da liga suiça. E desde então a sua fama não parou. Dono absoluto do lado direito da defesa, Inkoom deu-se a conhecer ao Mundo em Outubro ao serviço da sua selecção.
No Mundial de sub-20 poucos acreditariam numa vitória africana. O Gana fez história graças a uma notável geração de talentos onde se encontram Ayew, Osei, Adiyhi e claro, Inkoom. O lateral direito foi uma das figuras da prova, acabou o torneio no onze ideal e as suas letais investidas pela ala direita tornaram-no num dos mais populares jogadores da prova. De tal forma que se abriu a possibilidade de deixar a Suiça no mercado de Inverno. O negócio com o Arsenal gorou-se, mas Inkoom recebeu um outro prémio. Chamado pela primeira vez à selecção principal do Gana esteve no onze titular do conjunto africano na última CAN. O Gana caiu mais cedo do que era previsto, mas a boa sensação dos seus jovens talentos deixou água na boca para o próximo Mundial. Onde se espera ver mais deste notável talento.
Com toda a época à sua frente, Samuel Inkoom tem de trabalhar mais a concentração defensiva. Ainda longe da sua maturidade desportiva, o ganês tem apresentado dados estatisticos esmagadores e Pep Guardiola está muito interessado na sua evolução. Pelas suas caracteristicas seria o substituto ideal do genial Alves.
Depois de um 2009 inesquecível, Samuel Inkoom prepara-se para um 2010 memorável. A sua transferência para um grande é quase certa e a presença no primeiro Mundial em terras africanas é um aliciante único. Resta saber se a evolução táctica do jovem lateral o levará a um patamar onde poucos atletas realmente logram atingir. Porque a realidade é que a águia ganesa tem todas as condições para brilhar bem alto nos céus.
Quando se olha para trás a selecção do Egipto desta década entrará nos registos como um dos maiores case-studies da história do jogo. Dominadora absoluta do continente africano sem nunca ter pisado os pés de um Mundial. Os que pensavam que a eliminação diante da Argélia tinha terminado com o reino dos faraós estavam bem enganados. O implacável Egipto voltou a mostrar o seu rosto mais temível e trucidou a Argélia. A coroa de África espera-os. Outra vez...
Será a terceira final consecutiva dos egipcios. Pode significar também um tri histórico. Nunca nenhuma equipa venceu tantas vezes seguidas a prova. E merecidamente. Ainda falta um jogo mas parece um trâmite. Nenhuma equipa se exibiu ao nivel do Egipto neste torneio angolano. Nenhuma equipa esteve perto, sequer, de roçar o nível dos Faraós. Seguros a defender, controladores a meio-campo, letais no ataque. Frente à Árgelia voltaram a ser iguais a si próprios e libertos de velhos fantasmas fizeram o que em três jogos não lograram na fase de qualificação: impor-se claramente diante dos Fenecs.
É extremamente curioso que o onze argelino, que voltou a mostrar todas as suas debilidades, tenha garantido precisamente o passaporte mundialista à custa dos egipcios. Como sucedeu há quatro anos com a Costa do Marfim e há oito com o onze do Senegal. Equipas mais débeis que na hora da verdade deram a estocada final. E sempre que cairam os egipcios ergueram-se. E fizeram do torneio continental o seu feudo inexpugnável.
Sem Aboutrika e Mido, duas figuras nucleares da selecção egipcio dos últimos dez anos, o Egipto manteve-se fiel à sua filosofia. Rápidos laterais - o genial Moawab é, claramente, um dos melhores laterais-esquerdos do futebol mundial - e avançados móveis e contundentes. Se os Quartos-de-Final foram totalmente de Hassan, hoje o jogador mais internacional da história, as Meias-Finais pertenceram a Zidan. O médio O jogo arrancou extremamente equilibrado, com El Hadary a voltar a brilhar para a história. Os remates venenosos dos argelinos não perturbaram os egipcios que continuaram a sua série de ataques à área argelina. Num desses lançamentos rápidos o demoniaco Motaeb isolou-se diante de Chaouchi antes de ser derrubado por trás por Halliche. O central do Nacional viu o segundo amarelo e acabou expulso. O penalty de Hosny fez justiça ao marcador e a primeira-parte acabava com a superioridade egipcia no terreno e no marcador.
O quadrado mágico egipcio a meio campo de Hassan Shehata, o grande maestro dos bancos africanos, voltou a encantar. A rápida circulação de bola e o apoio dos laterais-ofensivos desnorteou por completo os dez argelinos que começaram a perder a cabeça. Zidan pautou o jogo ofensivo do Egipto e pouco passados os 60 minutos matou o jogo com um golo repleto de oportunismo e talento. Um golo que matou o jogo e levou a Argélia a actuar, precisamente, como queriam os egipcios. Em vez de tentarem reduzir os argelinos passaram a última meia-hora em entradas violentas que levou o árbitro a expulsar mais dois jogadores. O Egipto agradeceu, marcou mais dois tentos, e consumou a doce humilhação. Nunca numa meia-final da CAN os egipcios tinham sentido tantas facilidades para marcar o bilhete da final. E se o Gana se está a revelar uma equipa mais europeizada - com um sólido sector defensivo e um bom aproveitamento do contra-golpe - a verdade é que a CAN 2010 voltou a provar que em África quem continua a mandar são os egipcios. Por muito que estranhe ao mundo.
A selecção dos Faraós é, provavelmente, junto com a Rússia, a melhor selecção que não irá ao Mundial da África do Sul. Duas selecções magnificas e eliminadas num duro play-off que explica muito a incerteza mágica de que se reveste o jogo. Mas um dominio como o que têm imposto os egipcios ao longo da última década não é habitual. E para a história ficarão sempre Hassan, Zidan, Aboutricka, Motaeb, Moawab, El Hadady, Abdelshafi, Gedo, Hosny e companhia. Uma geração magica que por razões que a própria razão desconhece nunca conhecerá o palco de um Mundial.
E sucedeu o inevitável. Em ano de Mundial todas as esperanças estavam postas sobre as nações africanas. A CAN, pensava-se, seria o balão de ensaio ideal para o grande torneio de Junho. Mas as indicações que vão ficando desarmam os mais optimistas. A África do Magrebe continua a ditar as cartas na mesa e a África Negra que todos temiam volta a levantar muitas, muitas dúvidas.
A fase de Grupos já tinha deixado no ar que o Egipto - do que falaremos mais em detalhe noutra ocasião porque continua a ser um verdadeiro case-study - era a única selecção ao melhor nível. Os quartos-de-final comprovaram essa ideia. A África Negra até conta com um finalista assegurado. Mas não tem deslumbrado. E a cinco meses do Mundial fica no ar a sensação de que o sonho daqueles que querem ver uma equipa africana a levantar o troféu ficará, uma vez mais, adiado. Pode ser uma conclusão precipitada, mas contra factos dificilmente há argumentos. E o jogo de Camarões, Costa do Marfim - já eliminados - e Gana e Nigéria - semi-finalistas - deixa muito a desejar. A queda ontem dos Leões Indomáveis e a eliminação surpresa da Costa do Marfim, confirmam que o futebol africano continua a estar bem dividido entre os nomes e a força e o talento e a táctica. O futebol magrebino da Argélia e Egipto pode não dispor de estrelas do gabarito de Drogba e Etoo - desaparecidos ao largo de toda a prova - mas há naquelas selecções uma sensação de colectivo e disciplina que o futebol da África central e sul não conhece. Ver a teia montada por egipcios e argelinos é recuar décadas até à época da inocência do jogo. E houve realmente jogadores muito inocentes. Num duelo com uma equipa europeia ou sul-americana, mais matreiros do que qualquer onze africano, esses são erros que se pagam.
Se a Angola já tinha demonstrado que era fogo de vista, a tipica ilusão do anfitrião, já o jovem Gana desiludiu. O seleccionador ganês apostou na equipa que venceu o Mundial de sub20 e vários dos jovens dessa equipa mostraram-se a bom nível. Mas pareceram ainda muito verdes. Os ganeses marcaram e passaram o resto do jogo a defender, num exercicio de calculismo utilizado para esconder as deficiencias gritantes do conjunto que está na lista dos favoritos para o Mundial. A jogar assim é fácil antever que o Gana será uma presa fácil para a Alemanha e Sérvia, muito mais incisivos e metódicos. E letais na hora H. Também a Nigéria, a última a qualificar-se, exibiu o seu pior rosto em largos anos. Depois de uma fase de grupo deprimente, as águias verdes tinham oportunidade de se redimir frente à surpresa chamada Zâmbia. Não conseguiram. Foram lentos, previsiveis e sem chama. A defesa nigeriana errou de forma constante e ao rival faltou aquele sentido de oportunidade que falta às grandes equipas. O apuramento no sofrimento dos penaltys depois de um agonizante empate a 0 em 120 minutos diz muito da inoperância dos nigerianos que no próximo Mundial terão mais sorte que outros. Argentina, Grécia e Coreia do Sul são rivais acessiveis mas o nível futebolistico dos nigerianos terá de subir uns bons degraus.
Para o fim deixamos os casos mais claros. Os favoritos.
Camarões e Costa do Marfim continuam a sua particular via sacra na CAN. As duas formações apresentam-se como as mais emblemáticas do continente e muitos depositam neles grandes esperanças. E o seu jogo também se assemelha. Tal como os seus defeitos. Treinados por europeus experientes, tanto os camaroneses como os marfilenhos vivem da desordem. São equipas que apostam na velocidade e pressão no ataque mas que carecem de miolo, de cultura táctica na defesa. Facilmente surpreendidos no contra-golpe, manobráveis no meio campo e superáveis com uma defesa capaz de anular as suas peças-chave, o futebol de Camarões e Costa do Marfim foi, durante os jogos disputados, absolutamente previsível. A vitória do Egipto ontem, apesar de lograda no prolongamento, resultou de um trabalho de analise metódico pelos egipcios. Os camaroneses nunca estiveram cómodos sobre o relvado. Já a Costa do Marfim mostrou ter um bom ataque mas uma defesa de papel. Em cinco minutos sofreu dois golos impossíveis. Desses que matam. Portugal que tome nota. Defender bem, circular a bola no miolo e ataques incisivos. É só o que é preciso para dobrar uma equipa que teima em não vencer a CAN e que agora se apresenta na mó de baixo para um Mundial que muitos queriam que fosse seu.
O norte de África será representado pela Argélia. Uma equipa muito organizada atrás mas pouco incisiva no ataque. Dos argelinos pouco se espera e agora resta ver como lidarão com a pressão dos egipcios nas meias-finais, onde se discute mais do que um lugar no último desafio. O Egipto quer limpar a honra ferida. Com a África do Sul como organizador-fantoche, as esperanças dos adeptos africanas ficam resumidas a quatro equipas que continuam a anos-luz dos grandes. Apesar dos imensos talentos que vão brotando do continente, o dominio da técnica e táctica continua a ser, em muitos casos, um quebra-cabeças. Resta ver o que nos reserva Junho nesse Inverno africano que a tantos tem deixado com uma interrogação na mente.
Por momentos Kafka vestiu-se de negro e viajou de dimensão. Aterrou num relvado africano e esperou. A lei das probabilidades no futebol não existem. Esfumam-se como a erva mal tratado dos imensos relvados que despertam o adepto do sono profundo. Ou será sonho. Depende para quem. No Gabão ainda ninguém quis despertar do sono confundo. Drama oblige. Na Zâmbia o tempo é de festa. O futebol é assim, mais imprevísivel que a própria vida.
Três equipas, quatro pontos. Três festejos. Que fazer?
Um final de infarto, desses que dá razão de ser àqueles que dizem que na CAN se vive mais perto da essência do jogo. Depois do vergonhoso calculismo dos angolanos e argelinos - que provavelmente pagarão a sua insolência mais cedo do que prevêm - chegou a magia da incerteza. Da dúvida. Do imprevisível. O Grupo D revelou-se o mais democraticamente possível num continente onde esse conceito ainda é desenhado de forma túrbia. Ignorou a condição de favoritismos e virou as contas do avesso dos mais previsiveis. Que se os Camarões eram os favoritos ao titulo. Que a Tunísia queria lavar a má imagem deixada na qualificação para o Mundial. E que no Gabão e Zâmbia nada sabiam de futebol. Enfim, frases feitas como só o futebol domina. No minuto 93 ambos árbitros terminaram os respectivos encontros. E todos se lançaram a festejar. Camaroneses, zambianos e gaboneses. Mas não há só duas vagas para os Quartos? Afinal há metamorfoses que só o beautiful game sabe explorar.
O Gabão foi a sensação da primeira ronda. Chegou ao último jogo lider e com um empate como resultado mais do que suficiente para seguir em frente. E fazer história em largos anos. Os gaboneses nem queriam acreditar depois da vitória frente aos Leões Indomáveis (e adormecidos) e o nem o empate com a Tunísia parecia arrefecer os ânimos. A Zâmbia era um trâmite, e pouco mais. Do outro lado uma formação humilde que empatara a abrir com os debéis tunisinos mas que não resistiram a Etoo e companhia. Um ponto e poucas esperanças. A longos quilómetros da savana angolana Etoo queria ressuscitar - e evitar se possível o Egipto, carrasco há dois anos dos camaroneses - enquanto que o onze tunisino procurava lavar a cara de uma prestação para esquecer. Os dias anteriores tinham confirmado o estatuto dos favoritos. Exceptuando o Mali - que caiu diante de Angola - todos os outros favoritos tinham passado o trâmite inicial. Ninguém esperava grandes mudanças. Mas o futebol continua a ser mais do que um jogo de 90 minutos. E a magia que envolve o jogo move-se entre forças indecifráveis. Aos poucos segundos de jogo a Tunisia marca. Com este resultado está apurada, junto com o Gabão. Sem Geremi e com Etoo adormecido, os Camarões desesperavam. Aos trinta minutos Kalaba, que o Braga emprestou ao Leiria, marca. Silêncio absoluto. A Zâmbia surge na liderança do grupo. Ao intervalo o mundo estava de pernas para o ar. A realidade transformou-se e Etoo empatou, no reatar do desafio. Minutos depois os zambianos voltam a marcar. E subitamente lideravam o grupo em goal-avarege frente aos camaroneses e gaboneses. Até que os tunisinos voltam a marcar e a colocar-se nos Quartos. Um sonho de um minuto até novo empate. Ainda havia folha livre para fechar o capitulo. O golo do Gabão. E a dúvida no ar. Quem se apurava realmente?
A CAF foi obrigada a recorrer ao terceiro critério de desempate. Zâmbia, Gabão e Camarões tinham os mesmos pontos e a mesma série de resultados: vitória, empate e derrota. E o mesmo goal-average. Foi nos golos entre si que se encontraram os felizardos. Mas todos sairam a festejar. Os camaroneses abraçados aos zambianos. Os gaboneses a celebrar solos no relvado. Até que um homem de fato e gravata, como desses que passeavam pelas ruas cinzentas de Praga, lhes disse que era hora de acordar. E voltar a casa. O futebol continua a ser assim, mágico como um continente. À Zâmbia esperam-lhe os nigerianos. Os camaroneses terão de se haver com a sua história mais recente. Os angolanos acreditam no seu poder mistico sobre os ganeses e a Costa do Marfim prepara-se para o embate frente à Argélia. O surrealismo africano é impar. A festa continua até que o último copo se esvazie.
Em 1982 o Mundo ganhou um despeito particular pelas selecções da Áustria e RF Alemanha. Estavamos no quente mês de Junho, sob o sol tórrido de Espanha e os dois países vizinhos combinaram um empate que interessava a ambos. E que ditava a eliminação da Argélia. 28 anos depois as "vitimas" argelinas tornaram-se em carrascos. A história tem destas coisas...
Era triste olhar para dois ecrãs e seguir os esforços de um lado face à tranquilidade de outro. No duelo que os opunha ao Malawi, o Mali dava tudo por tudo para ir desfeiteando o guardião rival. O sonho do apuramento estava vivo para ambos depois de chegarem à última ronda com opções de qualificação. Se o Malawi pontuasse, tanto Angola como Argélia teriam de vencer para garantirem o apuramento. No entanto, se fosse o Mali a vencer o desafio, o empate entre ambas as selecções tornava-se suficiente. E assim foi.Numa das jornadas mais vergonhosas da história da CAN, o Mali arrancou o seu jogo de forma demolidora. Apontou dois golos nos primeiros minutos - dois tentos diabólicos de Kanoute e Keita - e ficou à espera do resultado do campo rival. Alertados para a situação os jogadores argelinos e angolanos puseram em prática o seu pacto particular. As imagens mostravam os jogadores em relaxadas conversas e a bola a deambular pelo meio campo sem que nunca tenha existido uma real clara oportunidade de golo. Nem o ataque do onze comandado por Manuel José nem a equipa que se qualificou para o Mundial. Em campo estavam apenas jogadores mentalizados em não sofrer golos. Manter o status quo.
Do outro lado o Mali desesperava e continuava o seu massacre às redes do Malawi, esperando que, de um momento para o outro, um golo fizesse justiça à sua exibição. O terceiro tento confirmou a vitória dos malianos e deu outro tom ao jogo disputado em Luanda. Se Angola e Argélia ainda tinham esboçado, no final da primeira parte, um simulacro de desafio, na segunda parte nenhum dos ataques se moveu. A bola era trocado no próprio meio-campo de cada equipa face ao claro desconforto dos técnicos nos bancos.
E quando os adeptos argelinos começaram a festejar o apuramento - em casa de empate eram eles os eliminados - o Mundo começou a lembrar-se daquela triste tarde no Mundial de Espanha. Numa era onde a FIFA ainda não tinha criado o conceito da última jornada ser disputada à mesma hora, os argelinos venceram o último jogo face aos chilenos, esperando que uma vitória da Áustria ou da RF Alemanha fizesse história e os tornasse no primeiro onze africano a apurar-se da fase de grupos. Só que a amizade entre austriacos e alemães vinha de longa data. Antes do jogo, como confessaria mais tarde o guardião Harald Schumacher, os jogadores fizeram um pacto de não-agressão. Uma vitória no El Molinon nesse 25 de Junho, garantia o apuramento de ambos, inclusive da Alemanha que tinha perdido o jogo inaugural com os argelinos. Um empate ou vitória austriaca eliminava os germânicos. Aos 10 minutos Hrubesch marcou com a ajuda da defesa rival. E a partir daí o jogo acabou. O espectáculo foi vergonhoso durante 80 minutos e no final o objectivo cumprido. A Áustria caía na fase seguinte mas a Alemanha chegaria até à final.
Á época a reclamação da selecção argelina conquistou a opinião público. O onze liderado por Rabath Madjer entrou para a história por forçar a FIFA a mudar as regras, obrigando todos os seus torneios a serem decididos, na última ronda, à mesma hora. Agora, os mesmos adeptos que queimaram nas ruas de Argel as bandeiras da Austria e Alemanha, voltam para casa satisfeitos depois de aplicar a mesma fórmula. Ironias do futebol, quando o resultado importa os valores ficam fora do relvado. Ontem, como hoje!
Pode até ser irónico que tenha sido um português a causar os primeiros calafrios à máxima potência africana. Depois do empate a 0 de ontem a Costa do Marfim está mais perto do que nunca de cair na Fase de Grupos da CAN. O temido rival de Portugal, um dos favoritos de Platini para o Mundial, tem um lado escuro que é oportuno decifrar. Para evitar cair na mitologia bem portuguesa da desgraça.
Antes de mais é verdade que a cabeça dos marfilenhos tivesse estado fora do lugar. O ataque ao Togo era fresco, a zona a mesma e as ameaças de morte que alguns elementos da selecção receberam foram bem reais. Mas isso não explica o empate a zero contra o Burkina Faso. Nem a sensação de que a equipa das estrelas de África deixou em 90 minutos. Nervosismo, incapacidade de reagir perante a adversidade e muitos, muitos problemas de tomar o controlo ao jogo. Notas importantes para Queiroz e companhia.
Para os que acreditam na natural superioridade do Brasil - que também é algo que merece uma análise bem mais profunda do que se parece fazer - a Costa do Marfim seria a inevitável besta-negra portuguesa no próximo Mundial. Afinal é a selecção da moda de África - há meia década concretamente - e uma das selecções melhor armadas do certame. Mas que continua a mostrar um desiquilibrio que pode ser-lhes fatal. Ter Didier Drogba, Kalou, os irmãos Touré, Zokora, Eboué ou Koné é o sonho de qualquer seleccionador. Mas o bósnio Vahid Hallidodzic parece ter problemas bem mais complexos. E que pouco têm que ver com os nomes no terreno.
Os Elefantes apenas venceram a prova uma vez, no longinquo 1992.
As duas últimas tentativas - já com Drogba como estrela absoluta - esbarraram no muro egipcio. As ambições para esta edição eram legitimas mas o empate diante do Burkina Fase de Paulo Duarte deixou claro que são ainda significativas as debilidades do conjunto marfilenho. A defesa de quatro com Eboué, Boka, Touré e Demel é sólida mas joga demasiado atrás, deixando um grande espaço de manobra para uma ataque móvel como o português. Se Touré é excelente na marcação homem a homem, a ausência de um ponta-de-lança fixo pode ser um verdadeiro quebra-cabeças, particularmente para Eboué, longe da boa forma que mostrou em Highbury Park há uns anos. Touré, Zokora e Romaric são os carros de combate e trazem o espirito competitivo da liga espanhola. Os sevillistas são excelentes nas transições e Touré é dotado de um nível táctico e técnico soberbos.Mas parecem jogar muito compactados no eixo central, deixando as alas sempre a descuberto. Por aí atacou o Burkina Faso e por aí deve ferir o ataque luso.
Porque no ataque as armas falam por si. Drogba, Kalou e Koné são os habituais titulares. Doumbia, Gervinho e Keita suplentes de luxo. E no entanto são jogadores que preferem grandes espaços, jogar em velocidade e em contra-ataque. Defesas bem povoadas e distribuidas são o seu antidoto natural. Viu-se durante a qualificação africana. Viu-se ontem. Jogar com uma defesa avançada é suícidio. Utilizar um bloco sólido é o primeiro caminho para neutralizar o ataque da mais temida selecção africana. A Costa do Marfim não deixa de ser uma belíssima selecção, que tem os seus dias. Melhores ou piores. Como qualquer outra equipa. Tem jogadores que decidem um jogo. E um sistema de jogo fluído e que procura a velocidade e o toque antes do calculismo e a força pura. Mas a sua grandeza também se torna facilmente na sua ligeira perdição. E é com essas armas que terá de ser encarada.
A Costa do Marfim pode acabar por vencer a CAN. Precisa de ganhar ao Gana - outro dos favoritos - ou esperar que o Burkina Faso não consiga melhor resultado que eles frente aos ganeses. Mas também pode cair à primeira. Isso pouco interessa a Portugal. O fundamental ficou a nu e é uma base de trabalho útil para Queiroz. Decifrar o código marfilenho é a chave para determinar o futuro de Portugal no Mundial. Encarar o rival nos olhos e feri-lo nos pontos débeis é o que faz uma equipa vencedora. Portugal vai ainda bem a tempo de deixar a débil teoria e tornar-se num perfeito exemplo de mutação prática e competitiva. O futuro o dirá.
Entre a crueza das armas e a inocência dos anfitriões arrancou a CAN. No ano em que o futebol e África se assumem como sinónimos insperáveis o arranque da prova mostrou ao mundo que o Continente Negro continua a ser um caso sui generis nisto da globalização. A bola já arrancou mas poucos parecem importar-se muito.
África está de parabens. Pelo menos, devia.
No ano em que arranca o seu primeiro Mundial de Futebol, a CAN serve de antecamara perfeita para tomar o pulso ao futebol mágico do imenso continente. Ou melhor, servia. Ainda nem a prova tem dois dias e já o sangue, o luto e a inocência mancharam de forma inevitável o torneio. A segurança - assunto tão criticado quando Sepp Blatter optou por apoiar a África do Sul em lugar das potências europeias - pode não ser a mesma na África do Sul e em Angola. Mas a verdade é que o ataque à equipa do Togo, que provocou duas mortes e vários feridos, incluindo o guardião titular, deixa a nu o calcanhar de Aquiles do continente. Que o facto tenha sucedido em Angola, um dos países que quer juntar-se à África do Sul como economias emergentes, tem um travo ainda mais amargo. Para muitos o ataque da FLEC coloca o futuro Mundial em cheque. De momento, pelo menos, destroçou o espectáculo futebolistico que é a CAN.
Depois do Europeu de Futebol talvez não exista nenhuma competição desportiva tão atractiva como a Cup of African Nations. Mais excitante que a Copa América, muitos furos acima da Golden Cup ou Asean Cup, o torneio em que medem forças as dezasseis mais fortes selecções africanas é o tubo de ensaio perfeito para analisar a evolução do futebol africano. A alternância entre as selecções da "África Negra" com a "África do Magrebe" espelha bem a dinamica desportiva: o futebol de força e táctica contra o futebol de pura técnica. As últimas vitórias do Egipto - bicampeão em titulo, apesar de ter falhado, uma vez mais a qualificação para o Mundial - são, no entanto, enganadoras. O futebol de Aboutrika e companhia é sedutor mas, hoje em dia, também se tornou num oásis. Nunca a África setentrional se mostrou tão fascinante. Da histórica vitória do Gana no último Mundial de sub-20 à afirmação definitiva da Costa do Marfim e Camarões, passando pelas intermitentes Nigéria e Mali. Tudo serve para espelhar esse futebol de raça que tem vindo a evoluir de forma sustentada. E implacável. A migração da esmagadora maioria dos jogadores africanos para as melhores ligas europeias significou uma profunda mudança de mentalidades. A chegada de seleccionadores europeus capazes completou a formação. Hoje as selecções africanas são tacticamente coerentes, fisicamente imponentes e tecnicamente fascinantes. Um producto capaz de ombrear com qualquer equipa europeia. Portugal está avisado.
A FIFA investiu muito em África nos últimos 20 anos.
Havelange e Blatter - principalmente este - foram os mentores de vários projectos de formação e de criação de infra-estruturas para preparar o continente para provas deste calibre. Se a evolução na formação tem sido notória, também é verdade que em campos relvados e condições de treino os países africanos começam a aproximar-se do nivel dos rivais sul-americanos e asiáticos. Mas o grande salto foi desportivo, pelo que é legitima a aspiração da organização da FIFA em sonhar com uma equipa africana nos melhores lugares possíveis em Junho. Com um pequeno aparte. As suas melhores formações formam parte dos dois "Grupos da Morte".
No entanto é fáicl perceber que a maturidade não chegou a todos os cantos de África ao mesmo tempo. No continente com mais países do mundo há selecções que ainda estão numa fase pós-amadora e cometem erros de palmatória. É o outro lado do futebol africano. É essa dicotomia que faz esta prova algo fascinante. Se a Copa América é bastante igualada, com dois favoritos destacados, e se o Europeu é a prova mais disputada do Mundo - mais ainda que o Mundial - na CAN há os dois rostos do continente bem presentes. E ontem cruzaram-se para demonstrar que há cada vez menos lugar para a ingenuidade numa prova de alta competição. Mesmo em África. Que uma equipa, motivada por jogar em casa, esteja 4-0 à frente no marcador não é novidade. Que a 10 minutos do fim lidere a contagem por 4-1 também não. Que conceda o empate a 4 nos instantes finais é o espelho claro de que há ainda muito a fazer. Angola ontem foi o espelho da ingenuidade desportiva. Mali, o resultado do oportunismo, da dedicação e do querer de quem tem um trio de ases com o peso dos grandes europeus nas costas.
Os próximos dias prometem muita polémica à volta da equipa do Togo - que até contava com algum favoritismo - e muito futebol. Bom futebol. Pelos relvados angolanos andarão alguns dos melhores jogadores do Mundo. De hoje e de amanhã. Essien, Drogba, Kanouté, Keita, Toure, Obi Mikel, Etoo, Belhadj, Diarra, Inkoom são apenas alguns exemplos. A realidade é que África é um continente cada vez mais consolidado. Já não é só a liga francesa que recebe os melhores productos da sua infinita formação. Mais completos que o jogador brasileiro, os africanos querem fazer deste o seu século. A festa começa agora. Apesar dos tiros. Apesar das lágrimas. Apesar da ingenuidade, não há nada como o fresco cheiro do relvado africano...