Houve grandes jogadores antes de Alfredo di Stefano. E houve grandes jogadores depois. Mas o argentino que se converteu em espanhol marcou o equador da história do jogo. Tudo mudou com ele, tudo mudou graças a ele. O futebol de hoje deve muito a um jogador que não cabia na mitica linha de ataque conhecida como La Maquina mas que marcou o padrão futuro de todos os grandes jogadores desde a sua chegada a Madrid. Alfredo di Stefano pode não ter tido o marketing e o poder mediático de vários astros. Mas pode perfeitamente ter sido o jogador mais importante da história do futebol.
Os recordes de Di Stefano são ridiculamente insultantes. Nunca ninguém marcou (e ganhou) em cinco finais consecutivas da Taça dos Campeões Europeus. É o homem que deu importância a uma competição que era um enigma quando foi criada. As Noites Europeias cresceram à sua sombra. O mesmo se pode dizer do Real Madrid. Clube importante mas ao mesmo nível do seu vizinho Atlético e dos rivais de Bilbau e Barcelona, o Madrid tornou-se Real com a presença do génio argentino. Depois de uma vitória pouco limpa num duelo na secretaria com o Barcelona, os “merengues” desfrutaram de quase uma década de momentos fantásticos de La Saeta.
Com ele ganharam tudo o que havia para ganhar vezes sem conta. E isso que DI Stefano chegou em Madrid, em teoria, no ocaso de uma carreira que teimava em arrancar. Apesar de admirar o astro paraguaio do Independiente, Arsénio De Erico, o jovem Alfredo queria realmente triunfar na linha de ataque de outro gigante de Buenos Aires, o River Plate. Mas apesar de ser já um grande jogador, o seu talento inato era insuficiente para romper a mítica linha conhecida como La Maquina. Durante anos o génio de Lostau, Pedernera e Labruna barraram-lhe a titularidade. Desesperado, experimentou jogar noutras paragens, do modesto Huracan ao Millionarios de Bogota, tomando parte na liga rebelde colombiana que agitou o futebol mundial nos anos cinquenta. Foi aí que o Real Madrid o conheceu, num amigável em Chamartin em que o jogador encandilou a Santiago Bernabeu.
O Barcelona já tinha feito a primeira jogada e enviado um emissário a negociar com o River Plate – clube ao qual oficialmente ainda pertencia – mas com a intervenç4ao habilidosa do General Moscardo, ministro dos desportos do governo franquista, Di Stefano acabou em Madrid. Durante oito anos foi o Madrid. Ao clube a quem tanto deu voltou como treinador. Pelo caminho tinha ficado uma saida pouco gratificante, um ultimo capitulo em Barcelona mas com a camisola do Espanyol e um trabalho como treinador notável no Valência. Foi ele que abriu caminho para a segunda reencarnação do Real Madrid, a “Quinta del Buitre”.
Di Stefano foi talvez o jogador mais importante de sempre.
Mas não o foi só por aquilo que ganhou. Cinco Taças dos Campeões Europeus, marcando em todas as finais (perderia a de 1963 contra o Benfica de um Eusébio que só queria a sua camisola), varias títulos nacionais, a primeira Taça Intercontinental. Tudo podia ser suficiente para o elevar aos altares do futebol. Nem sequer o facto de nunca ter disputado um Mundial (a Argentina não entrou em prova entre 1950 e 1958, altura em que já tinha a nacionalidade espanhola, com quem falhou esse torneio, eliminados na qualificação, e o seguinte, por lesão) merma a sua reputação. Di Stefano fez história por ser o paradigma por excelência do jogador moderno.
Em Buenos Aires foi superado pelos últimos grandes interpretes românticos do futebol rioplatense. Na mesma altura brilhavam na Europa génios como Mazzola, Mathews, Walter, Peyroteo, Kubala ou Puskas. Mas todos eles eram fieis reflexos do jogador da época. Poucos cuidavam o físico, tinham capacidade física para aguentar um jogo de noventa minutos em perpétuo movimento. A maioria jogava sempre na mesma zona de influencia e esquecia-se de que o jogo seguia quando a bola passava a linha do seu meio-campo. Eram mitos, todos eles por direito próprio, e actuavam como tinham aprendido e como era prática. Mas Alfredo foi mais longe. Desafiou as convenções e estabeleceu as bases do jogador do futuro.
Não tinha posição fixa em campo. Partia, no velho WM, da posição de nove, para ocupar todo o campo. Era habitual vê-lo a começar jogadas no seu meio-campo e acaba-las mais tarde. Jogava como avançado, extremo, lateral e médio organizador. Tinha um pulmão que nunca se cansava, fruto do seu exigente treino e elevado profissionalismo. Era um goleador feroz, um assistente privilegiado e um conhecedor profundo da dinâmica táctica de um jogo em evolução. Era um líder em campo e um autêntico ditador no balneário. Foi o primeiro jogador a ter poder suficiente para eleger e descartar colegas. Foi o responsável pela promoção de Gento e pelo afastamento de Didi. Com Puskas estabeleceu uma longa amizade e parceria apenas depois do húngaro – mais velho e fora de forma – ter entendido que teria de trabalhar para ele em campo. Num torneio da liga espanhola, com os dois jogadores empatados a golos na última jornada e a lutar pelo Pichichi, Puskas assistiu duas vezes o argentino que levou o premio e a glória, ainda estando em melhor posição para marcar. Foi o primeiro futebolista a entender que valia o seu peso em ouro e que era por ele que os adeptos acudiam em massa ao Chamartin. Graças ao seu peso mediático o Real Madrid transformou-se de um clube sem expressão europeia num mito do futebol mundial. Sem ele, provavelmente, os merengues seriam uma figura secundária ainda hoje.
Di Stefano pode não ter tido a brilhantes técnica de Pelé, a sagacidade intelectual de Cruyff ou o carácter indómito de Maradona, mas foi o precursor de todos eles como estrela global. Foi o primeiro mito vivo do jogo a ser conhecido universalmente, o primeiro herói de multidões consagrado pela televisão. O aparecimento da “Caixa mágica” coincidiu com o seu ocaso mas também com as suas vitórias com os Blancos. Tivesse sido filmado mais vezes e talvez hoje ninguém discutisse o facto de ser o melhor de todos os tempos. Mas as câmaras preferiram prolongar a magia de um jovem brasileiro chamado Pelé e Di Stefano passou para a história como o último herói de uma era em vez de ser, merecidamente, reconhecido como o primeiro de um novo mundo. Equador da história, foi o fiel reflexo de dois mundos em múltiplos sentidos. Nunca nenhum futebolista foi, alguma vez, mais completo ou fundamental em definir o futuro do jogo como ele. Os heróis de hoje, ainda que brilhantes, empalidecem em comparação com a sua lenda. Os que o antecederam, empequenecem debaixo da sombra de um jogador total. Essa é a grande verdade da vida de um homem que foi mais do que um futebolista. Alfredo di Stefano foi, na realidade, o Futebol.