A vitória do Sporting sobre o FC Porto levantou, pela enésima vez, a polémica sobre o circulo de poder nos meandros do futebol portugués. É um fenómeno cíclico e fácilmente explicavel. Quando tudo falha, é o pretexto perfeito para justificar uma derrota. De vez em quando tem razao. Mas como a fabula de Pedro e o Lobo, nesses momentos a credibilidade de quem se queixa está pelas ruas da amargura.
Entramos num fórum, numa página web, num blog.
Tanto faz a cor clubística. Podem ser verdes, vermelhos e azuis. O discurso é sempre o mesmo. Todos se queixam, todos apontam o dedo. O rival domina sempre o mundo da arbitragens, as instituições desportivas. Se todos se queixam do vizinho do mesmo é difícil que alguém tenha razão. No futebol português, raramente alguém a tem. A arbitragem é a desculpa número 1 para as derrotas em Portugal. Também é a desculpa número 100. Tudo o resto parece aleatório, inócuo. Golos falhados escandalosamente? Nao conta. Erros defensivos individuais? Irrelevante. Más decisões tácticas dos treinadores? Supérfluo. Péssimo planeamento de temporada pelos directores? Impossível.
Se um arbitro comete um erro, não é preciso procurar mais. Nao é um mal exclusivamente português. Todos os países são parecidos mas não todos são iguais. Em Itália os escândalos de arbitragem provocaram a despromoção de históricos em varias ocasiões. Mas os programas desportivos também debatem durante horas as decisões tácticas dos treinadores. Em Espanha podem estar cinco horas a debater sobre a intensidade de uma entrada com um painel pré-desenhado para defender as suas respectivas cores clubísticas. Ninguém espera imparcialidade. Esse é o show. Mas também se celebra o talento e se valorizam as ideias de jogo. Em Portugal não. Raramente o adepto português debate questões de gestão financeira do seu clube. Ou modelos tácticos utilizados pelo seu treinador. A preocupação com a formação é “para inglês ver”. Mas cometam um erro arbitral contra a sua equipa e durante uma época esse adepto tem argumentos suficientes para dar um sem numero de palestras. A partir desse pressuposto é fácil entender que esta situação nunca vai mudar. Para isso tinha de mudar a base, aqueles que fazem do futebol o que ele é. Os dirigentes, a imprensa e os protagonistas limitam-se a entrar no jogo, a alimenta-lo e a extrapola-lo. Os adeptos gostam desse circo. Não podem viver sem ele. São incoerentes a esmagadora maioria das vezes. Mas não se importam. O espectáculo tem de continuar.
As queixas recorrentes do Sporting durante esta temporada não são inocentes.
Os leões (como todos os clubes da liga, especialmente fora do grupo dos "grandes") foram prejudicados em alguns jogos de forma clara. Também foram beneficiados. Mas isso não importa. Fazem-se tabelas sobre quem foi mais, sobre consequencias inesperadas provocadas por a e b. Cria-se um campeonato pontual alternativo, como se um só lance, só por si, provocasse que o resto do jogo se transforma em algo imutável. Memoria selectiva chama-se. O Sporting sabe bem o que é estar no poder. E está farto da longa ausência nesse submundo. Quem pensa que os erros arbitrais são todos premeditados engana-se. Quem pensa que os erros arbitrais são todos inocentes, também. É difícil apitar. Muito difícil. Mas é mais difícil acreditar que um sector que move milhões (em alguns países move mais que o sector financeiro e económico) é imune a corrupção. Ela esta por todo o lado. Nos partidos, nas administrações publicas. Nas empresas e nos bancos. Como é que não estaria no futebol que é, precisamente ,uma constante esponja do mundo?
Há, houve e sempre haverá corrupção no futebol. No português também. O Sporting fez parte desse circuito. No seu período de hegemonia. Só que isso foi há muito tempo atrás. Sempre que um clube prolonga a sua hegemonia por mais do que uma geração é expectável crer que a sua influencia no submundo é proporcional ao seu talento em campo. Passou com o Sporting durante décadas. E com o Benfica naturalmente. A balança mudou a finais dos anos 70. Pedroto primeiro e Pinto da Costa depois perceberam que não bastava com ser melhor em campo. Era preciso ganhar importância institucional. Durante quinze anos batalharam para encontrar o seu espaço. O Sporting pagou o preço e foi afastado progressivamente, abrindo caminho a um duopolio Porto-Benfica a todos os níveis. Os títulos eram apenas a consequencia. A hegemonia absoluta dos Dragões começou com o descalabro financeiro (e emocional) do Benfica nas eras Damásio, Vale e Azevedo e Vilarinho.
O aparecimento de um contrapoder a norte, a Liga de Clubes, presidida por Pinto da Costa e Valentim Loureiro, confirmou essa mudança de guarda. Durante mais de uma década a bússola do poder apontou a norte. Até que o Benfica aprendeu a lição, passou a utilizar os mesmos métodos do rival e encontrou forma de utilizar a sua influencia social para recuperar parte do seu poder. As conversas expostas pelo Apito Dourado mostram, claramente, que não há diferenças entre a forma de actuar de Pinto da Costa e Luis Filipe Vieira. Cada um que saque as suas conclusões. O Sporting, que durante um breve período de tempo procurou ocupar o espaço deixado vazio pelo Benfica, entrou também no seu particular inferno financeiro. Se algum poder tinha recuperado, perdeu-o. O objectivo de Bruno de Carvalho é recupera-lo. Para isso vai procurar emular as políticas populistas (com os seus) e desafiantes (com os outros) de Pinto da Costa e Vieira. Se o modelo funcionou duas vezes, porque não uma terceira. O “choradinho” dos últimos meses obedece a essa estratégia, lógica para os que acreditam na Realpolitik.
O presidente dos Leões conhece o caso Cardinal. Sabe que a sua equipa está a fazer uma época maravilhosa dadas as circunstancias e o descalabro financeiro do clube. Sabe também que o titulo é algo que ainda não está (realmente) ao seu alcance. Mas lutar por ele e fazer barulho sobre um afastamento institucional dessa luta dá-lhe pontos. Em Alvalade, contra o FC Porto, ficou evidente. A estratégia é velha e já foi utilizada por todos. Que o FC Porto se queixe é só reflexo da fraca memoria dos adeptos. Um clube que, durante 30 anos, tem 2/3 dos campeonatos (nos últimos dez perdeu apenas 2), dificilmente pode fazer alguém acreditar que está contra o sistema. Há muito que o FC Porto é (também) esse sistema. Mas Pinto da Costa ganhou o coração dos portistas rebelando-se contra a autoridade (real) asfixiante do poder centralizador do país. Foi a época do “Lisboa a Arder”, dos “roubos de Igreja”, do “guarda Abel” e da “penhora das Antas”. Foi a sua forma de ocupar o seu espaço nos centros de poder e aumentar a influencia de um clube historicamente castigado pela sua localização a Norte. Manter o discurso agora é apenas o reflexo da falta de ideias de gestão da SAD do FC Porto, incapaz de preparar um plano de futuro. Já passou em 2000 e só a aparição de Mourinho deu um balão de oxigénio (e abriu as portas a um novo modelo de negocio) que durou uma década. Mas esse modelo esta, mais tarde ou mais cedo, caduco. A falta de ideias a nível de gestão desportiva é o pior que pode passar. Todos os períodos de hegemonia acabam. Passa em todas as ligas, durante longos períodos. O dos azuis-e-brancos chegara mais tarde ou mais cedo. O Sporting quer estar atento para entrar nesse espaço. É o sonho do novo presidente dos leões, o seu cavalo de batalha. O seu discurso vitimista só acabara quando chegar ao topo. Passou o mesmo nos anos prévios aos títulos do Benfica em 2004 e 2010. Subitamente, o sistema que estava podre, nesses dois anos, para os encarnados, funcionou perfeitamente. Para os dragões a questão é pior. O sistema está podre desde sempre, mesmo quando ganham. Curioso paradoxo. Em Itália houve um ano em que foi imposto ao clubes um novo modelo de gestão arbitral por sorteio puro nas vésperas dos jogos. O modesto Hellas Verona foi campeão num duelo contra equipas modestas como o Torino e a Sampdoria. A Juventus, Inter, AC Milan, Fiorentina ou Roma nem vê-los. Resultado? No final da época voltou-se ao modelo antigo e tudo ficou na mesma.
Esse é o destino do futebol português. As queixas dos dirigentes, os apupos dos adeptos e um ciclo rotativo de figuras no poder que vão condicionar sempre a competição a um pequeno circulo. A hegemonia do FC Porto acabara ao mesmo tempo que esse poder da mesma forma que sucedeu com o Sporting, nos anos 70, e com o Benfica, na década de 90. Quando assim for, alguém quererá começar uma nova dinastia. Terá de o fazer em campo. Mas haverá um jogo de xadrez paralelo que os adeptos não vão ver. Um jogo que não lhes importa moralmente. Estão dispostos a tudo para vencer. As queixas dos adeptos do Sporting seriam caladas com um titulo. É o preço da moral dos adeptos. É o suplicio de Tântalo do futebol em Portugal.