O caso Ghilas nem é novo, nem é mais ou menos grave do que se tem vivido em Portugal. É apenas o sintoma mais claro que a situação não mudou uma só virgula. Portugal continua a ser pasto de corrupção, negócios paralelos, administrações mais interessadas no lucro pessoal que no sucesso colectivo. Um circo controlado por uma oligarquia de poder que arrancou a alma do jogo em Portugal.
Ghilas é um avançado muito interessante.
Chegou sem fazer ruído ao modesto Moreirense. Durante dois anos apresentou-se como uma alternativa real aos dianteiros mais populares da liga. Marcava, dava a marcava e fazia trinta por uma linha para evitar o inevitável. Não o conseguiu. O Moreirense acabou despromovido e o argelino, internacional pelo seu país, condenado a continuar a sua carreira no futebol secundário ou noutras paragens. Em Moreira de Cónegos marcou 15 golos em 45 jogos, uma média de 1 golo por cada 3 jogos, nada absolutamente brilhante. Mas o seu nome estava na lista de várias direcções desportivas. Quando chegaram à pequena localidade nortenha, esbarraram com uma cláusula de 3 milhões de euros que o clube não estava disposto a baixar. Curioso. Afinal, o orçamento anual da equipa axadrezada ronda esse valor, o clube ia ser despromovido e precisava de dinheiro como de pão para a boca. Nestes casos negoceia-se, regateia-se. Nunca se paga a cláusula. Nem em Portugal nem em nenhum outro país do Mundo. Mas de certa forma os dirigentes do Moreirense fizeram-se fortes e bateram o pé. Tinham um ás na manga. E que ás.
No Verão apareceu em cena o FC Porto.
A equipa azul-e-branca, com novo treinador e nova filosofia, queria uma alternativa ao colombiano Jackson Martinez. Tinham passado dois anos sem ter um avançado suplente de nível (nem Kléber nem Liedson o foram) e face à tranquila evolução do paraguaio Mauro Caballero e do português André Silva, era preciso ter um nome com alguns créditos firmados para render o "cafetero" e, talvez, preparar a sua sucessão. A escolha parecia perfeita, os adeptos aplaudiram, o negócio concretizou-se. Mas não se falaram em números e todos assumiram que o preço do jogador tinha andado à volta dos valores da sua cláusula. Provavelmente o mastodonte dragão tinha feito os dirigentes do pequeno Moreirense entrar em razão. Estavam tão enganados.
O Relatório de Contas oficial do clube, divulgado esta semana, conta uma história bem diferente. O FC Porto não rebaixou as pretensões do clube nortenho. Ultrapassou-as. Em lugar dos 3 milhões de euros, decidiu pagar 3,8 milhões. Um valor que, como aparece detalhado, nem sequer inclui as famosas comissões e direitos de imagem - esses aparecem num apartado à parte que ronda os 2 milhões, misturados com o negócio de Quintero. O mais grave, talvez, foi que esses 3,8 milhões - que já de por si ultrapassam largamente o máximo legal que o clube teria de pagar - são apenas por metade do passe do franco-argelino. 50% de Ghilas vale 4 milhões de euros. O avançado do modesto Moreirense é o avançado mais caro de todos os tempos do futebol em Portugal num clube fora dos três grandes. Vale 8 milhões de euros. Um valor que empalidece os de Éder, Lima, Hugo Almeida e que se aproxima mais aos de Jackson e Cardozo. Espantoso!
Este é o retrato do futebol português.
Parece mais do que evidente - basta ver como está o clube nortenho - que o Moreirense não recebeu 3,8 milhões por Ghilas.
O dinheiro pode nem sequer ter sido movido. Entre agentes, dirigentes e fundos desportivos montou-se nos últimos anos uma teia de negócios onde os números publicados raramente se aproximam dos que estão sobre a mesa. Muito desse dinheiro move-se por debaixo da mesma. Outro, pura e simplesmente, permanece no sitio para maquilhar contas. Os clubes devem-se uns aos outros, os agentes e fundos alimentam o jogo de especulação e os adeptos limitam-se a baixar a cabeça em resignação. No Porto, trinta anos de sucesso desportivo de Pinto da Costa serviu para amordaçar a consciência de muitos adeptos e sócios do clube perante situações como esta. Ghilas nem é o primeiro caso nem será seguramente o último. Faz parte de uma linhagem de negócios tão mal explicados que surpreende como é que há tão pouca gente a colocar o dedo na ferida. Em Lisboa, o cenário não é diferente.
O Benfica tem-se especializado em imitar a gestão do FC Porto nesse sentido e a sua associação com um fundo especial tem ajudado a maquilhar contas com compras e vendas fantásticas, jogadores que aparecem e desaparecem dos quadros do clube conforme dá jeito e compras que se transformam em empréstimos para acabar em dispensas sem que os adeptos encarnados entendam como é que todos os anos o plantel muda, o dinheiro é gasto e a falência técnica ainda não é uma realidade.
Ghilas ou Roberto, nomes próprios para casos concretos mas generalizáveis. Movem-se cifras impossíveis para a realidade social do futebol português. E por jogadores cujo valor em campo está a anos-luz dessa etiqueta que clubes e agentes decidiram colar. Aos adeptos vende-se a obrigatoriedade de ceder moralidade face aos tempos modernos para sobreviver. Mas sobreviver onde?
Nos últimos anos têm sido várias as vozes que sancionam o uso de fundos e de agentes como a única ferramenta que Portugal tem para se manter competitivo na Europa do futebol. Seguramente que essa noção de competitividade é discutível. Afinal as exibições desta temporada (e da do ano passado) na Champions League dão sinal de tudo menos de competitividade. Clubes de ligas periféricas como a Bélgica, Grécia, Áustria, Chipre ou Escócia têm sido capazes de vencer ou roubar pontos aos dois grandes portugueses. Na Europa League a situação é exactamente a mesma. Portanto, seja para o que for, o uso recorrente de fundos para inflacionar transferências, salários e comissões não é o que o futebol português precisa para ser competitivo. Porque o modelo não está a funcionar. Qual é a alternativa se os resultados já são maus suficientes assim?
Para clubes com passivos na ordem dos 200 ou 400 milhões de euros, gastar todos os anos entre 30 a 40 milhões em jogadores é algo incomportável e impossível de entender. A não ser que os dirigentes dos clubes não se preocupem com o futuro e consigam encontrar algo de rentabilidade no momento. Muitos deles podem até estar associados, indirectamente, aos mesmos agentes que movem jogadores a valores que não se praticam em mais nenhuma liga europeia a não ser por clubes que são detidos por grandes fortunas. Herrera, Reyes, Quintero, Ghilas, Markovic, Djuricic, Fejsa e Lisandro só podiam ter sido pagos pelos valores que são pagos em Portugal. Analisando jogadores do mesmo perfil noutras ligas - financeiramente mais fortes, sociedades mais desenvolvidas - e ninguém encontra essa soma de quase 60 milhões de euros em oito jogadores quase adolescentes sem nada demonstrado.
Claro que há outro caminho. Mas os comentadores, dirigentes e alguns opinion-makers colocados pelos clubes em espaços de reflexão dirão que não. Que o futebol português precisa destes fundos, destes agentes e destes jogadores se quer seguir no caminho certo. Fazem lembrar as empresas que nos dizem que sem um GPS não podemos conduzir, esquecendo-se de que o prazer da condução muitas vezes está em seguir pela estrada fora sem ter um "grilo falante" a dizer-nos o que fazer. Esse grilo afastou o futebol português da sua essência e entregou-o a uma meia dúzia de personagens que tem sido responsável directa pela sua decadência e que enquanto se encontrar em situações de poder perpetuará as suas acções. O dinheiro gasto (mal) nestes e noutros negócios (e o que desaparece, sobretudo) poderia ter abatido passivos, reforçado a formação, servido para baixar o preço de entradas para levar adeptos ao estádio ou para pagar museus sem recorrer a financiamentos de empresas estrangeiras. Poderia ter sido utilizado em reduzir o custo do merchandising, para criar iniciativas de conexão com a sociedade local ou para reforçar a massa salarial dos melhores jogadores para evitar a sua venda. Mas sem venda não há comissões. Sem preços de entradas altas os adeptos nos estádios poderiam ser mais humildes e mais exigentes do que os que encaram hoje o futebol como uma ópera a céu aberto. E poderiam começar a fazer-se mais perguntas para as quais as respostas são como as salsichas. O FC Porto gastou 30 milhões em quatro jogadores que não ofereceram nada à equipa mas deram muito a quem a gere. O Benfica e a sua armada sérvia (e algum sul-americano que chega e parte sem dizer olá) está na mesma situação. Começa a ser hora que as rivalidades desportivas entre adeptos sejam postas de parte e que alguém pare o jogo e comece a indagar e a fazer as perguntas que alguns têm medo de ouvir!