Não há nenhum país onde o vermelho ocupe um papel tão fundamental na cultura futebolística como sucede no historial imponente do futebol britânico. Lendas de noites de glória, tardes de sonho e apoteose sob o signo de uma cor que conquistou o mundo com autoridade. Em Turim, numa fria noite de Abril de 1999, o vermelho voltou a triunfar e ajudou a definir os contornos de uma das grandes lendas modernas do futebol mundial. Em Barcelona esteve a emoção mas a grandeza futebolística foi evidente semanas antes, naquela noite em Turim, a noite em que o Manchester United avisou a Europa que estava pronto a renascer. Outra vez!
Dos Busby Babes aos heróis de Shankley e da Kop, as camisolas vermelhas de Manchester United e Liverpool, são parte fundamental da iconografia do futebol moderno. Entre ambos estão 80% dos títulos de campeão nacional inglês e o dobro das Taças dos Campeões Europeus dos restantes clubes ingleses juntos. O vermelho impõe aqui um respeito que não conhece em nenhum outro país, em nenhuma outra realidade social.
A cor que dá vida e força, para lá do humanamente possível, aos dois gigantes ingleses, também destaque de forma evidente nas suas grandes noites europeias. Como sucedeu com a lenda do Liverpool de Bob Paisley, o homem tranquilo que herdou o clube mais bem preparado do Mundo das mãos do seu mentor, Bill Shankley, também Ferguson encontrou nas meias-finais do torneio supremo do futebol de clubes a sua grande noite de glória. O Liverpool venceu cinco finais da Taça dos Campeões (perdeu duas) mas nenhum desses jogos, talvez com a excepção recente do milagre de Istambul, ressoa tanto na épica encarnada do futebol como a noite da segunda mão das meias-finais de 1977 contra os franceses do Saint-Ettiene. Naquela noite a Kop começou a explicar ao mundo o que significava não caminhar só. O clube de Liverpool já tinha ganho ligas e provas europeias (a Taça UEFA), mas aquela vitória, desenhada por Keegan e pintada no céu pelos adeptos Reds, definiu como nenhuma outra a sua lenda europeia. Em Manchester, cidade a 43 kms, habituada ao sofrimento e à perda, as meias-finais europeias estavam sempre associadas ao sofrimento, ao luto, à dor. Foi sonhando com elas que os Busby Babes conheceram o seu fim. Foi nelas que os projectos de Ferguson teimavam em tropeçar e foi numa meia-final que o sonho de Eric Cantona se encontrou com uma noite terrível para Raymond van der Gouw, o suplente holandês de Schmeichel num duelo em casa com os futuros campeões, o Borussia Dortmund, em 1997.
Talvez por isso aquela noite em Turim tenha tido mais impacto emocional do que a maioria das vitórias de um clube que se habituou a sofrer para ganhar as suas finais. Em 1968 precisou do prolongamento. Em 2008 foram os penaltys que decidiram tudo e naquele ano milenar de 1999 todos sabemos como a história acabou. O êxtase do futebol, o orgasmo futebolístico contra o cronómetro, consagrou o grande United mas não apresentou ao mundo a sua melhor versão futebolística. Mostrou o seu lado mais heróico e britânico. O futebol, esse, foi apresentado em dois duelos sucessivos com os gigantes italianos, quando vir de Itália significava, ainda, para os clubes ingleses um sério problema.
O empate a 1-1 em Old Trafford (golos de Giggs e Conte, o actual treinador da Juventus) dava uma preciosa vantagem à Vechia Signora.
Ninguém duvida que aquela era a melhor formação da sua era. Tinham participado na final da Champions nas últimas três épocas, a primeira vez que algo assim sucedia desde o triplo triunfo do Bayern Munchen nos anos 70. A diferença estava no resultado. A Juve tinha vencido a primeira, frente ao Ajax de van Gaal, mas depois a cada participação somava uma dolorosa derrota, com o Dortmund em 1997 e com o Real Madrid no ano seguinte.
Lippi tinha partido e era Ancelloti o homem que comandava uma nave onde o génio de Zidane, o trabalho de Deschamps, Conte e Davids e a magia de Del Piero davam a Inzaghi as oportunidades suficientes para fazer sonhar os tiffosi com um regresso à elite continental. O Manchester United, na sua versão mais continental, tinha eliminado de forma tremendamente convincente o Inter de Ronaldo e companhia nos Quartos de Final. Mas nem nesse jogo (1-1) nem antes a equipa tinha logrado uma vitória em território italiano. E salvo um empate a mais de dois golos, vencer era necessário para sonhar com reencontrar o Bayern Munchen em Barcelona. Na fase de grupos os Red Devils tinham defrontado os bávaros e viajado à capital da Catalunha. Em 28 de Maio esperava-lhes a história mas para lá chegar era preciso passar aquela noite em Turim.
Turim, cidade malfadada para os ingleses desde a celebre série de penaltis do Mundial de 1990. Turim, cidade onde o gang de Michael Caine comete o mais audaz dos assaltos, num duelo nacionalista com a polícia e a máfia italiana, no mítico The Italian Job (versão original). Turim, uma cidade que viveu também a sua tragédia aérea com os heróis do Torino. Turim, cidade fria e que esperava o United conhecendo os seus problemas psicológicos nas grandes noites europeias.
Aos 11 minutos Turim parecia ser tudo isso e mais ainda. Dois golos do eterno oportunista, Filippo Inzaghi, o homem de quem Ferguson disse ter nascido em offside. Um Manchester United sem Giggs, lesionado, e com Scholes no banco, tocado, era incapaz de dominar o espiritio criativo de Zizou e encontrar espaços na defesa amuralhada bianconera. Um resultado assim seria suficiente para destroçar o sonho de qualque adepto do United. À memória vinham, seguramente, outras noites europeias trágicas. Nesse momento ergueu-se do terreno de jogo a figura de Roy Keane.
O irlandês era o líder espiritual da equipa desde a saída de Eric, le roi, e puxou dos galões como nunca. Reduziu de cabeça depois de um centro de Beckham - e é preciso voltar atrás no tempo para lembrar o quão perfeitos e únicos eram os centros do "Spiceboy" superado injustamente nesse ano no Ballon D´Or por Rivaldo - e suportou estoicamente a punhalada no coração quando o amarelo de Urs Meier o condenava a não disputar a final. Cuspiu para o chão, olhou para o céu e gritou com tudo o que se movia à sua volta. A partir daquele minuto, era Old Trafford outra vez.
Antes do intervalo o empate, aquela parceria que ficou para a história como as "Twin Towers", Yorke-Cole, encontrou espaço para colocar a eliminatória do lado inglês. Obrigaram Ancelloti a arriscar, obrigaram a equipa italiana a subir no terreno, obrigaram Schmeichel a mostrar porque no seu último ano de vermelho algo mágico se sentia no ar. E obrigaram Scholes a entrar em campo para por pausa ao jogo e levar o outro amarelo malfadado que também lhe impedia a ele disputar o jogo decisivo. No meio da dor e do sofrimento, o terceiro golo, ao cair do pano, porque na ópera a obra não se acaba até que Cole marque. Não só Turim deixava de ser um pesadelo como visitar Itália deixava de dar medo. Numa das maiores performances desportivas de um clube inglês em provas europeias, o Manchester United de outros tempos renasceu e confirmou na Europa a sua hegemonia recente do futebol insular. Carimbou o passaporte para a final com autoridade e certezas.
Parecia uma heresia que os Red Devils tivessem chegado a este ponto apenas com um título europeu no bolso. Hoje têm três, fruto do trabalho legendário de Alex Ferguson. Mesmo assim continuam a dois de igualar o recorde encarnado do Liverpool de Paisley, Fagan e Benitez. É a decisiva quimera futebolística de Sir Alex, lembranças das noites de Turim pretéritas e futuras que lhe permitem superar a idade e agarrar-se à sua cadeira de sonho com a esperança de voltar a saborear a sensação de grandeza de epopeia clássica que só noites como aquela de Turim podem fazer sentir alguém que venceu tudo o que havia para ganhar. Noites de lenda, noites de memória perdidas na bruma.