O rival de amanhã de Portugal já faz parte da história. E com todo o mérito. É campeã da Europa e do Mundo em titulo. Não perde um jogo em eliminatórias há quatro anos e pelo caminho venceu Itália, Rússia, Alemanha, Portugal e Holanda, ficando apenas por provar o seu valor contra o dueto histórico sul-americano. Mas apesar da grandeza indiscutível dos números, o estilo de Espanha é também o mais aborrecido de que há memória. Longe do tiki-taka do Barcelona, vertical e constantemente ofensivo, a equipa espanhola joga com a bola nos pés sempre para não sofrer e muito pouco para atacar.
Portugal sabe que amanhã será dificil ter a bola nos pés durante muito tempo.
Não que isso seja uma preocupação. A de Paulo Bento é uma equipa de tracção dianteira habituada à velocidade e ocupação de espaços. Só com a República Checa logrou superar os 50% de possessão num jogo e isso foi, sobretudo, porque os checos foram ainda mais defensivos do que os lusos contra a Alemanha, não criando uma só oportunidade de golo. Mas os espanhóis são diferentes. Defendem com a bola.
Em 2008 a equipa chegou repleta de dúvidas à Áustria. Tinha-se qualificado para o Europeu através de um play-off sofrido, o treinador Luis Aragonés já tinha anunciado que se ia embora e havia muitos jogadores criticados pela imprensa do país vizinho, ainda incapaz de acreditar na ausência de Raúl. Num grupo acessível, a selecção somou os 9 pontos habituais - Espanha ganha, quase sempre, a fase de grupos - e nos Quartos quebrou a maldição contra uma Itália a quem nunca ganharão em 120 minutos. Os penaltys, essa malapata, levou-os a umas meias-finais onde destroçaram os russos, ainda cheios do vodka da celebração da fantástica e inesperada vitória frente à Holanda. Foi o seu melhor jogo numa fase final. Seguiu-se a grande final com uma Alemanha ainda sem a filosofia Low e o primeiro de cinco jogos consecutivos a eliminar a vencer por apenas 1-0. Contra a França quebrou-se a tradição, mas só com um penalty no último minuto. Estatisticamente a Espanha venceu por 2-0 mas só rematou uma vez às redes de Lloris. Tipico.
O futebol espanhol tornou-se, com o tempo, profundamente previsivel. A equipa alinha com o maior número de médios possíveis, joga essencialmente pelo corredor central, e com as linhas muito juntas. Isso permite sempre uma rápida recuperação da bola, que haja sempre um colega disponível para garantir a posse. Mas também deixa evidente a incapacidade de jogar pelas alas com extremos e, sobretudo, jogar com um ponta-de-lança. David Villa jogava como falso avançado onde hoje se move Fabregas. Sem essa referência, há sempre mais alguém para tocar a bola no meio. Mas os defesas ficam sem elemento de marcação, sobem linhas e asfixiam mais o jogo num espaço reduzido. Por vezes as tabelas sucessivas encontram um espaço e surge o golo. Mas isso acontece uma, duas vezes por jogo. Espanha tem um problema grave em criar oportunidades de golo, especialmente com equipas que se agrupam bem no miolo e perturbam esse eterno "meinho".
Apesar de eficaz, o futebol da equipa espanhol aborrece o mais entusiasta do futebol de posse.
É diferente ao jogo do Barcelona em três aspectos fundamentais. Não usa quase nunca os laterais como falsos extremos, apesar do espaço que a maioria das equipas lhes deixam nos flancos. A posse de bola é sempre horizontal e procura poucas diagonais porque Iniesta, em lugar de jogar no miolo, é um dos falsos extremos (e Silva é outro), jogadores habituados a serem eles a criar os passes por dentro. E porque não há Messi, esse diabo à solta, em constante movimento, como referência ofensiva, ainda que sempre móvel. Essa verticalidade ofensiva fez do Barcelona de Guardiola o que é. A sua ausência faz da Espanha a sua nemésis moral. A bola e os bajitos continuam a ser o eixo central, mas são usados primeiro para defender e depois para atacar.
Aqui a preocupação é circular a bola o máximo de tempo possível, mas sempre na linha entre o meio-campo e a grande área. É raro assistir a tabelas dentro da área, é raro ver o jogo nas alas e mais raro ainda criar oportunidades atrás de oportunidades. Durante largos minutos a bola chega de Piqué a Fabregas para voltar Piqué, passando por cada um dos jogadores de campo. E recomeça outra vez. Isso cansa o rival, fisica e psicologicamente, obriga a uma concentração tremenda e, sem bola, obriga as equipas a jogar mais no espaço.
O problema está na questão psicológica. As equipas entrem em campo já derrotadas. Aconteceu com a França como com a Holanda, Alemanha e Portugal no último Mundial. Posicionam-se demasiado atrás, abdicam dos seus principios de jogo para adaptar-se aos do rival e abandonam os seus homens da frente à sua sorte porque pensam que um defesa ou um médio mais faz a diferença. Mas não faz. Espanha joga igual contra um meio-campo de três, quatro ou cinco. Mas atrás ficam os espaços, que ninguém sabe explorar.
No Mundial de 2010 o Paraguai e o Chile, equipas sul-americanas com outra mentalidade, souberam usar esses espaços e apesar de terem perdido causaram mais problemas aos homens de Del Bosque do que os seus rivais europeus, mais organizados mas perfeitos para uma equipa que vende a imagem do jogo bonito mas que, na realidade, é a nova Itália no sentido pragmático e positivo do termo. Para eles um 1-0 vale tanto como um 4-0.
Apesar de ter ganho tudo o que havia para ganhar, não há semelhanças posssiveis entre o espirito desta equipa e os miticos conjuntos hungaros, brasileiros, holandeses e franceses do passado. Pelo contrário, há uma profunda semelhança com a Argentina de 86, a Itália de 82 ou mesmo o Brasil de 94, grandes equipas que pensavam sempre primeiro no aspecto defensivo e só depois na fome de golos. Espanha foi a selecção campeã do mundo com pior média de golos da história e só uma goleada contra a inofensiva Irlanda lhe permite ser a segunda equipa mais goleadora da prova até agora. Sem esses golos, seria a última.
Del Bosque poderá alinhar o seu onze base (com Fabregas e sem Torres) mas também pode optar pela velocidade de Navas e Pedro, jogadores que criam mais perigo do que Silva e Iniesta, mas que não entram no espirito do seleccionador e que acabam por ser utilizados mais como revulsivos. Contra o 4-6-0 espanhol (que pode ser um 4-5-1 se jogar Torres) a equipa portuguesa não pode repetir a estratégia francesa ou a que usou Queiroz em 2010. Colocar mais defesas não resolve o problema. Nem sequer reforçar o miolo. Sabendo que Ronaldo não irá ajudar a defender, o substituto de Postiga tem de ser capaz de bascular entre os extremos e o miolo para pressionar o jogo de Busquets. Moutinho e Meireles serão os apaga-fogos encarregues de ganhar e soltar a bola o mais depressa possível mas devem evitar jogar longe de Ronaldo e Nani, que terão sempre 3 a 4 rivais pela frente. Ao contrário do Barcelona, a defesa espanhola de quatro é inamovível e está sempre recuada no terreno. Os laterais terão a tendência de fechar ao centro, mas devem também explorar as falhas defensivas de Iniesta e Silva e, sobretudo, a dupla de centrais deve estar atenta à tendência do jogo espanhol com o fora-de-jogo, esse limite onde ás vezes um árbitro mais sensibilizado à figura de Angel Maria Villar no palco pode fazer a diferença.
Portugal tem jogado um melhor Europeu que a Espanha mas não é favorita. É um mérito tremendo da equipa lusa estar onde está e merece os aplausos de todos. Mas vencer a equipa campeã mais aborrecida da história deve ser um estimulo. Os primeiros a derrotar esta Espanha, como sucedeu com o Senegal em 2002 e a Checoslováquia de 1976, ficarão sempre para a história. Para consegui-lo, além de muito trabalho, os portugueses devem ser, sobretudo, muito fieis a si mesmos. É o único caminho para romper com a história!