De Messi o mais simples que se pode dizer é que é um jogador consensual. Poucos na história lograram ter tanta gente rendida aos seus pés ao mesmo tempo. O recorde logrado na passada noite é apenas um detalhe na sua longa e espantosa biografia como futebolista. Aos 24 anos Messi bateu todos os recordes de precocidade e a esmagadora maioria dos registos de absoluta maturidade. A forma como o mundo do futebol se rende facilmente aos seus pés explica também o seu impacto social e a dura herança que deixará a um Barcelona habituado a estrelas cadentes.
César tinha o recorde e a César o que é de César.
Mas nem nessa maravilhosa equipa das "Cinc Copes", talvez uma das maiores da história do jogo, César era a estrela da companhia, o icone que todos pretendiam emular. Os seus números (232 golos) eram de um goleador nato, de um Dixie Dean á espanhola, mas nem Dean nem César nem Pichichi simbolizam uma era. Messi sim.
O Barcelona está habituado a ter nas suas filas a jogadores de elite. Dois dos quatro ases de poker da história do jogo (Cruyff e Maradona), os dois mais espantosos jogadores das últimas duas décadas (Ronaldo e Ronaldinho) e um leque de glórias que começam nessa equipa de César com o hungaro Kubala e que terminam no jovem argentino. Pelo meio Suarez, Liniker, Laudrup, Stoichkov, Romário, Guardiola, Figo, Rivaldo, Etoo, Xavi ou Iniesta ajudam a entender o nível de classe técnica e talento a que o Camp Nou se habituou nas últimas cinco décadas. E no entanto nenhum desses jogadores conseguiu alguma vez recolher a unanimidade de Lionel Messi. Esse é, sobretudo, o seu grande triunfo.
Pelé foi talvez o único futebolista da história incontestado. Pelo seu aparecimento precoce e espantoso e pela forma como construiu do nada uma equipa que se tornou símbolo de magia e qualidade durante todos os anos 60 até á sua despedida dos grandes palcos com o mais memorável Mundial de que há memória. Por essa época passaram Garrincha, Eusébio, Rivera, Charlton, Best, Fachetti, um precoce Beckenbauer, um veterano Di Stefano e nunca ninguém se lembrou de questionar a supremacia de Edson Arantes de Nascimento. Cinquenta anos depois sucede um fenómeno similar. Excepto os mais acérrimos defensores de Cristiano Ronaldo, a maioria dos adeptos reconhece que o estado de graça de Messi nos últimos quatro ou três anos tem sido espantoso. Não é a primeira vez que um jogador se mantém no mais alto durante tanto tempo, Di Stefano, Cruyff, Beckenbauer e Platini que o digam. Mas quem se lembra disso? Na era moderna, na era global, o mundo habituado a estrelas cadentes surpreende-se com algo que dura mais do que um nano-segundo. Muitos ainda olham de lado para o génio de Ronaldo, Zidane ou Ronaldinho porque, pelo paradigma contemporâneo, sempre parece uma memória efémera. Messi repete-se a si mesmo semana sim semana também, marca golos com a facilidade de um matador, gera jogo com a perspicácia de um playmaker e quando o Barcelona mais débil da era Guardiola se parece afundar, o argentino sai ao seu resgate. Este ano, mais do que nenhum outro, o Barça deve-se a Messi mais do que Messi se deve á espantosa orquestra montada á sua volta.
De Messi já se disse muito e pouco ficará sempre por dizer.
Os titulos somam-se no final da carreira e se as suas três Champions (a primeira como elemento secundário, é preciso relembrar) empalidecem ainda com as cinco de Di Stefano a verdade é que o recorde de Cruyff, Beckenbauer e van Basten já foi igualado. Os prémios individuais, essencialmente o prestigioso Ballon D´Or, colocaram-no lado a lado com Platini e Cruyff e a partir de agora será fácil que a história pende para o seu lado. E no entanto Messi, esse símbolo de uma cultura futebolística que se transformou de contra-cultura a espelho dominante, tem aquilo que nenhum outro grande clássico do passado teve. Uma Némesis á sua verdadeira altura.
O futebol está habituado a reinados curtos mas de uma só personalidade. Durante esse breve ocaso uma estrela brilha de uma forma incontestável enquanto lá em baixo, no firmamento, outras tentam imitar sem sucesso os mais grandes. Mas os números espantosos de Messi encontram-se todas as semanas com os números não igualmente depreciáveis de Cristiano Ronaldo. O português perde em relação ao argentino sobretudo em três apartados que, no final, vão ser suficientes para criar uma imagem de eterno segundo que muitas vezes é tremendamente injusta.
Ronaldo, ao contrário de Messi, vai no seu terceiro clube em sete anos. O recorde de César é possível para quem cresceu e fez-se génio na melhor versão histórica de um clube, onde uma orquestra de génios (primeiro Ronaldinho, Deco e Etoo, depois Xavi, Iniesta, Henry, Alves, Pedro, Fabregas e Villa) permitiu o seu aperfeiçoamento. Ronaldo poderia, se tivesse tido a perspicácia mental, repetir esse feito de Red Devil. Mas a ambição pode mais que a razão e em Madrid o seu nome será sempre comparado com Di Stefano e isso são palavras maiores para qualquer um. E no entanto o português hoje pode fazer o seu 100 golo em Liga com o Real Madrid, em apenas duas épocas e meia. Uma média de um golo por jogo é o seu registo actual no clube e isso sem ter atrás de si estrelas tão brilhantes e (sobretudo) regulares como as do seu rival. Se a Cristiano lhe perde essa comparativa entre cantera vs dinheiro e sentido de pertença vs arrivismo, é sobretudo o caracter do português que lhe faz perder a luta mediática onde se decide a história. Messi vive também dos seus silencios, geridos habilmente pelo clube, e longe de ser um simbolo mediático como foi Pelé o Di Stefano, um profeta como Cruyff, um rebelde como Maradona é, sobretudo, um triunfo do anonimato. Naturalmente que os seus rendimentos publicitários falam de alguém preparado a sacar até ao último euro do seu mediatismo mas a incapacidade de brilhar fora de campo com a palavra como o faz dentro com o pé transforma-o num ser que não ameaça ninguém e que, por efeito oposto, se torna facilmente atractivo. A sua unanimidade ganha-se, sobretudo, com a capacidade que tem o argentino de não gerar anticorpos. Quando cospe em rivais, dispara a bola contra adeptos, protesta sobre a independência arbitral ou é assobiado na sua pátria o enfoque é ligeiro e rapidamente substituído por vídeos das suas eternas e perfeitas diabruras. A máquina propagandística que o Barcelona tão bem sabe levar e que capturou a atenção de mais de meio mundo transformou-se no melhor exercido de relações públicas que um atleta pode querer. O perfil de Ronaldo é mais conflictuoso porque simboliza o novo-riquismo do jogo que os mais românticos desprezam. Para esses, os logros de uma máquina física, como muitos o apelidam, nunca poderão ter o mesmo valor que os de um jogador feito na rua contra todas as adversidades do corpo humano.
A história do desporto fez-se sempre de grandes duelos. César é um nome que evoca um passado brilhante mas cujo o registo goleador pertence a outra era, outra simbologia. Messi, por outro lado, ambiciona ir mais além, talvez os 1000 golos de Pelé e sobretudo causar nos adeptos as mesmas sensações que Maradona, Di Stefano ou Cruyff lograram. Mas para ser o herói deste filme tanto o jogador como o clube que o transformou sabem que qualquer história precisa de um vilão. Ali e Frazier apenas combateram um par de vezes. Borg e McEnroe não disputaram tantas finais como a memória nos faz lembrar e mesmo Prost e Senna foram rivais apenas por um triénio em que dispuseram de armas similares. No desporto-rei esse duelo nunca existiu realmente porque nunca dois jogadores estiveram simultaneamente ao máximo das suas capacidades. O resultado final parece importar pouco porque o Mundo já decidiu quem ganhou á partida mas a contenda vai prolongar-se e continuar a entusiasmar os mais apaixonados adeptos. O génio superlativo de Lionel Messi existe por si só mas ganha ainda mais valor quando se relembra, semana atrás semana, contra quem se mede.