Rafa Benitez uma vez soltou uma dessas confissões que raramente escutamos de treinadores e que nos ajudam a entender a diferença do jogo visto de dentro e de fora. Para o espanhol o primeiro nome que colocava no alinhamento de cada jogo importante que tinha pela frente não era nem o do espanhol Torres, do guardião Reina ou do capitão Gerrard. Para ele, e muito poucos, o equilibrio do seu "Pool" dependia de um holandês pouco convencional que sabia impor a sua lei.
Dirk Kuyt faz mais lembrar os grandes dianteiros nórdicos do passado, os Tore Andre Flo, Keneth Anderson, Niels Liedholm, Hans-Peter Nielsen e companhia do que, propriamente, uma estrela do futebol mediático contemporâneo. E no entanto há poucos futebolistas tão supremamente decisivos nos esquemas tácticos das equipas onde jogam como ele. O anti-divo é também o anti-holandês, com todos os preconceitos que isso pode trazer na imagem pública de um jogador que entende como muito poucos o conceito de desporto de equipa.
Kuyt define-se não pelos golos que marca nem sequer pelos passes que realiza, ambos com certeira regularidade. O espaço é o verdadeiro medidor da sua real influência, tanto na sua etapa holandesa no Feyenoord como mais tarde tanto em Anfield como de laranja ao peito. Dentro do panorama internacional é dificil encontrar um dianteiro que saibai tão bem entender o espaço como ele. E essa caracteristica tão holandesa parece escapar áqueles que se ficam pelo exterior e por esse aspecto de bom gigante que o afastam do herói romântico cultivado por Cruyff e prolongado mitologicamente por van Basten, Bergkamp, Sneijder ou van Persie.
Sem ter a magnitude histórica de Ruud Gullit - um desportista mais do que um simples futebolista - este é o verdadeiro espelho onde se deve medir a influência de Kuyt sobre os padrões contemporâneos. Quando o futebol do Liverpool começou a empalidecer, nos últimos dias de Benitez ao leme e durante o curto mandato de Hogdson, mais do que a falta de golos de Torres, da irregularidade de Reina e das lesões de Gerrard, os adeptos da Kop lamentavam a perda de influência de Kuyt no manejo do ritmo de jogo colectivo. Posicionado habitualmente nos extremos, Kuyt abre e fecha o campo com a autoridade de um general que decide quando mandar a cavalaria atacar o flanco adversário ou penetrar as linhas centrais da infantaria com uma carga determinante.
Ao apontar o segundo golo no histórico confronto contra o Manchester United o holandês ganhou o direito de voltar ás capas dos jornais e revistas. Mas poucos têm medido a recuperação do clube pelo reencontrar do melhor ritmo de jogo do dianteiro. Kenny Dalglish, treinador mais inteligente do que muitos querem conceder, sabe que tem em Suarez e Carroll uma dupla importante no ataque mas que sem o jogo de Kuyt o trabalho do inglês e do uruguaio vê-se, demasiadas vezes, multiplicado por dois.
Kuyt nunca ganhou um titulo ao serviço dos Reds mas esta temporada já foi parte importante na campanha que levará o Liverpool a defrontar o Cardiff na final da League Cup e agora revelou-se instrumental em garantir a passagem ás derradeiras etapas da prestigiosa FA Cup, dois troféus em que os homens de Dalglish podem, legitimamente, sonhar em vencer. Se a liga há muito que é uma miragem - e mesmo um lugar na Champions League - coleccionar troféus aparentemente secundários pode resultar num estimulo revigorante para a psique de Merseyside, profundamente depressiva depois de mais de duas décadas sem levantar um troféu ligueiro. Kuyt viveu toda essa maré de descontentamento mas, paradoxalmente, sempre pareceu ser uma das mais eficaz soluções para ambicionar a algo mais. Tal como van Marjwick, o seleccionador holandês, entendeu, ter um jogador das suas caracteristicas, tanto fisicas como tácticas, é uma mais valia que nenhuma equipa moderna pode desprezar. O seu sentido de oportunidade já faz parte da lenda de Anfield e apesar dos seus 31 anos não permitirem a mesma frescura quando soube ao tapete verde de vermelho ao peito, a sua influência na estrutura táctica de uma equipa que este ano deambula entre o 4-4-1-1 e o 3-5-2, já se revelou determinante. A lembrança das suas parcerias com Kalou em Roterdam, Torres em Liverpool e van Persie com a selecção holandesa trará sempre á memória a lembrança de jogadores como John Toshack, Teddy Sheringham ou Chris Sutton, elementos fundamentais no sucesso goleador dos seus colegas de ataque que acabaram por não receber o aplauso mediático que tanto mereciam. Tal como o galês do Liverpool com Keegan, também Kuyt soube transformar-se um mago do espaço e da oportunidade e fez-se mais jogador cada vez que deixou o caminho livre para o seu parceiro de ataque brilhar. Anfield, como sucedeu com Toshack, sempre lhe reconhecerá essa generosidade que o transforma, ao mesmo tempo, num dos jogadores tacticamente perfeitos para qualquer treinador. Benitez soube-o, Dalglish sabe-o e van Marjwick, que o conhece bem dos dias de vermelho e branco, talvez saiba-o mais e melhor do que ninguém.
Se em Liverpool o génio de Kuyt encontra-se perfeitamente reconhecido, o próximo Europeu dará ao holandês uma oportunidade de ouro para vencer o primeiro grande troféu numa carreira que, curiosamente, se fez quase sempre sem titulos. O seu lugar no quarteto ofensivo da Laranja Mecânica parece inquestionável mesmo que isso provoque a suplência de algum dos grandes artistas que os holandeses levarão com armas e bagagens para conseguir o que em Joannesburgo ficou por lograr. Enganar o fantasma da história!