Puskas, Czibor e Kockis. Quando se perdem horas a mergulhar nos dias de glórias da Aranycsapat essa santa trindade surge a cada frame, em cada relato, em cada escrito. Mas apesar de geniais e inimitáveis, o trio mágico de magiares pertence realmente a um segundo plano na mitologia da equipa centro-europeia mais emblemática da história. Na cinzenta tarde de 23 de Novembro, no imperial Wembley, a história foi escrita pelo húngaro silencioso, o génio de um homem que jogava como vivia, com o arrojo de um impressionista dos relvados.
Estavam mais de 100 mil pessoas naquela tarde no Wembley, rainha recém-coroada incluida.
Os nervos apoderaram-se da esquadra húngara, habituada aos seus festins goleadores, quando começaram a vislumbrar a imensidão do estádio mais famoso do mundo. No túnel que antecedia a entrada em campo, húngaros e ingleses mediam-se com o olhar. Numa era sem tecnologias de ponta nem se conheciam sequer por fotos, marcavam-se pelos números nas camisolas e pelas sensações que iam in crescendo naqueles momentos de tensão. A sobranceira inglesa era visível e os habituais sorrisos daquele que se sente superior, até no respirar, acabavam por funcionar como uma provocação intencional. No meio da nervoseira, no meio da tensão, a tranquilidade do número 9 era assustadora. Tinha passado horas a falar com o seu mentor, o emocional Gustav Sebes, e sabia qual seria o seu papel naquela tarde. O de protagonista.
Hidegkuti estava destinado a ser uma lenda. Aquele foi, mais do que qualquer outro, o seu dia. O dia em que reinventou futebol.
O jovem extremo do MTK Budapest há muitos anos que era uma referência do futebol magiar do pós-guerra. Como extremo era talentoso e ao serviço do clube da capital tornou-se num dos mais influentes jogadores dos princípios dos anos 50. Mas na selecção nacional, orientada por Sebes, era uma figura secundária porque as alas estavam entregues à dupla Czibor e Kockis e não parecia haver espaço para ele no circulo de estrelas.
Em vésperas das Olimpiadas de 52, Sebes comunicou-lhe que seria suplente de Palotás, o seu colega dianteiro do MTK, e durante os primeiros jogos do torneio, o extremo limitou-se a seguir o jogo do banco. Mas nas meias-finais o seleccionador mudou de ideias e lançou-o frente aos suecos que acabaram trucidados por um 6-1 em que Nandor acabou por ser o protagonista. De tal forma que repetiu a exibição na final (ganha por 2-0 à Jugoslávia) e nunca mais abandonou o onze. O fiel aluno do mentor Marton Bukovi no MTK tornou-se igualmente no homem de confiança de Sebes que preparou, para ele, um lugar especial na história.
Aos 23 segundos de jogo a bola chegou aos pés de Hidegkuti pela primeira vez.
E o Wembley sentiu a diferença. O número 9 recuou no terreno da sua posição inicial e deixou um imenso vazio humano entre ele e a defesa inglesa. Billy Wright e Harry Johnston, os dois centrais escalados por Walter Winterbottom (e considerados então como os melhores do Mundo) ficaram sem saber o que fazer. Se subir no terreno e acompanhar o avançado centro. Ou ficar à espera.
Vinte segundos depois a bola estava nas redes, depois de Hidegkuti, com todo o espaço do mundo devido à hesitação dos centrais, ter rasgado a arrogância imperial britânica com um disparo colocado.
Despertos do choque, os ingleses tentaram reagir. Enquanto Wright ficou de olho em Puskas, o único nome conhecido dos locais, Johnston seguiu Hidedkuti. Mas ao fazê-lo rapidamente deixou atrás o espaço por onde o magiar colocou bola atrás de bola e por onde apareceram os velozes Czibor e Kocskis, quase num mano a mano com o guarda-redes inglês, Gil Merrick Num só movimento em campo Sebes - e o seu pupilo - tinham destroçado por completo 20 anos de WM, a mutação táctica de Herbert Chapman que moldou o futebol inglês e tornou-se no santo e senha do jogo britânico. Não foi a primeira vez que os ingleses foram colocados em cheque. Mas foi a definitiva.
O modelo de jogo europeu seguiu fiel ao ideário de Jimmy Hogan, o pai do futebol continental, e ao seu 2-3-5. Os russos do Dynamo Moskva já tinham ensaiado a sua versão de jogo de toque horizontal na sua visita a Highbury e tanto o Wunderteam austríaco como o Der Blau Elf alemão tinham demonstrado, nos anos 30, que o WM não era uma vaca sagrada no universo táctico.
Mas Hidegkuti levou as coisas para outro patamar. À medida que Johnston se ia dando conta que era incapaz de aguentar o ritmo louco de um jogador à solta, sem posição fixa, o magiar foi tendo mais tempo a bola nos pés. Começou a jogar com os alas, começou a criar superioridade no meio-campo e, sobretudo, começou a encontrar espaços para ele mesmo tentar o golo. Aos 60 minutos de jogo já tinha completado o seu primeiro hat-trick com a camisola encarnada. Mais importante que isso, a sua movimentação no campo tinha permitido criar os espaços para Puskas apontar outros dois tentos, num dos quais depois de destroçar o implacável mas impotente Wright com um primoroso gesto técnico só ao alcance dos génios. Os ingleses mal tocaram a bola mas, mesmo assim, ainda apontaram três golos antes dos húngaros fecharem a contagem com um disparo sem piedade de Bozkik. No final dos 90 minutos todos tinham a sensação de que tinham assistido à história em directo.
A metamorfose do Aranycsapat centrou-se na figura de Hidegkuti como nunca um técnico tinha utilizado um jogador como ferramenta táctica.
As suas características de jogo, a excelente visão aliada a um ritmo possante, tornavam-no no falso nove ideal. 60 anos antes de Guardiola decidir que Leo Messi tinha tudo para romper com o ideário da defesa de 4, o húngaro redefiniu uma posição, até então considerada sagrada.
A Hungria de Sebes apresentou-se em Wembley com um falso 2-3-5. Na realidade o quinteto ofensivo resumia-se a dois extremos (Czibor e Budai), dois avançados interiores (Puskas e Kockis) e um quinto homem que funcionava como um Joker, ora equilibrando o meio-campo, ora criando superioridade no ataque, sem posição fixa, procurando o espaço dos extremos, combinando com os interiores e, acima de tudo, sempre com um olhar nas redes rivais.
Do 2-3-5 Sebes começou a idear os princípios que se converteriam rapidamente nos que moldariam o Futebol Total holandês apostando num 2-3-3-2 extremamente equilibrado, apto tanto para defender como para atacar como um colectivo. Com os extremos bem abertos, os interiores mais recuados no terreno - permitindo o recuar de dois médios laterais para a defesa - e um falso nove a jogar entre linhas numa posição que nos anos seguintes seria celebrizada por Di Stefano, Pelé, Eusébio, Charlton ou Cruyff. E hoje, como não, o génio de Messi.
Pela primeira vez em largos anos a táctica foi o elemento diferencial na história do jogo. O 2-3-3-2 húngaro, encarnado como ninguém por Hidegkuti, deitou a base para o 4-2-4 brasileiro, o 4-4-2 britânico e o 3-4-3 holandês. De tal forma foi o impacto do modelo de jogo hungaro que seis meses depois, no Nepstadion de Budapeste, os magiares confirmaram a superioridade da sua ideia goleando, outra vez, e por uns claros 7-1, a armada inglesa. A vitória em Wembley só surpreendeu os isolacionistas ingleses e quando os húngaros chegaram à Suiça, para disputar o Mundial, ninguém apostava noutro cavalo ganhador. Hidegkuti, como sempre, foi fundamental, apontando quatro golos ao longo do torneio - e realizando sete assistências - incluindo o decisivo tento nas tensas meias-finais contra o campeão Uruguai. Mas na final os alemães - goleados por 8-3 na fase de grupos - tinham aprendido a lição. Sempre que o mágico número 9 recebia a bola, naquela chuvosa tarde de Berna, o meio-campo (e não os defesas) apertava uma marcação à zona pouco usual para a época. O futebol dos húngaros ressentiu-se e o Milagre de Berna significou o fim da hegemonia húngara. No final do torneio o clima de crispação em Budapeste e a avançada idade da maioria dos jogadores da equipa, já a entrar na casa dos 30, deixou evidente que os melhores dias tinham passado. Dois anos depois, e aproveitando uma digressão pelo estrangeiro, a maioria dos jogadores da Aranycsapat desertou para Espanha e Itália. O seu maestro no relvado foi a excepção. Preferiu manter-se ao lado da família do que aceitar os convites que chegavam de Madrid, Barcelona e Milão, onde brilharam alguns dos seus colegas de selecção.
De menino pobre num dos bairros sociais de Budapeste a ícone nacional, a vida de Hidegkuti transformou-se outra vez quando levou a sua inteligência no terreno de jogo para o banco de suplente. Começou em pequenos clubes locais, longe do olhar atento das autoridades da federação - que nunca perdoaram à sua mágica geração a debacle de Berna - e acabou por brilhar na Fiorentina, vencendo em 1961 a primeira edição da Taça das Taças. Depois da experiência italiana voltou à Hungria e levou o modesto Gyori ETO da segunda divisão ao titulo nacional e - mais importante ainda - à meia-final da Taça dos Campeões Europeus com um conjunto sem estrelas e que só caiu diante do Benfica de Eusébio e companhia. Uma década depois, farto da intromissão das autoridades governamentais na gestão desportiva húngara, o mítico Nandor conseguiu um passaporte para viajar até ao Egipto onde se tornou no pai do moderno futebol faraónico, aplicando a base do 5-3-2 que ainda hoje é santo e senha no futebol local e que se tornou no modelo que levou a selecção egípcia a dominar o futebol continental na última década. Uma última lição de um homem que mudou a história do futebol debaixo do nariz dos mesmos homens que se vangloriavam do seu invento.