Pode dizer-se que hoje diz adeus o mais completo jogador inglês dos últimos 20 anos. Talvez Alex Ferguson o saibi melhor do que ninguém. O seu jeito calado, o seu estilo guerreiro, essa pose de miúdo introvertido afastou-o do crédito que realmente nunca teve. A verdade é que houve poucos jogadores que personificaram tão bem a classe futebolística do que Paul Scholes. A bússola de Old Trafford anuncia a retirada e o "Teatro dos Sonhos" nunca mais será o mesmo...
Scholes foi, verdadeiramente, único. O mais completo de todos eles.
Houve o Ballon D´Or de Michael Owen. Os flashes à volta de David Beckham. As capas de jornais de Wayne Rooney. A reverência à figura de Alan Shearer. Os duelos entre Frank Lampard e Steven Gerrard e as lembranças de Steve McManamman, Paul Gascoine, David Platt e Paul Ince. Mas nenhum deles, e a lista podia prolongar-se um pouco mais, soube entender de forma tão completa a complexidade do futebol como Scholes.
O número 18 do Manchester United personificou, ao largo da sua carreira, todos os valores que Alex Ferguson procurou evidenciar. Foi um dos seus campeões de juniores daquela célebre geração de 1992. Demorou um ano mais que os restantes colegas a chegar à primeira equipa mas quando o logrou tornou-se imediatamente em peça nuclear na estratégia de jogo dos Red Devils. Enquanto a maioria dos jogadores se tornavam estrelas mediáticas por direito próprio, Scholes viveu sempre no anonimato. Até hoje poucos sabem algo da sua vida privada. Até mesmo a sua retirada, de que se falava em voz baixa, só foi conhecida antes de tempo por Ferguson e Giggs, o seu eterno parceiro.
Paul Scholes definiu com a bola nos pés o futebol inglês das últimas duas décadas. Como toda essa geração faltou-lhe um titulo com a selecção. Era peça importante na estratégia de Glenn Hoddle para atacar o Mundial de França e foi um dos homens de confiança do projecto de Kevin Keegan. Com Sven Goren Erikson participou em duas provas, o Mundial de 2002 e o Europeu de 2004. No final do torneio anunciou a sua retirado quando entendeu que o sueco iria preferir sempre os nomes que a imprensa defendia a unhas e dentes, Lampard e Gerrard. A partir daí a Inglaterra nunca mais teve critério com a bola nos pés. Ao contrário do seu United. Depois de afirmar-se em 1996 como titular indiscutível, a sua grande mágoa foi falhar a final de Barcelona de 1999 por acumular de amarelos na meia-final com a Juventus. Nove anos tirou a espinha da garganta marcando presença na final de Moscovo. Depois voltou a participar em mais duas, ambas perdidas para o Barcelona. Onde jogava Xavi, talvez o jogador que mais se tenha assemelhado ao inglês na última década e meia.
Com uma visão de águia de rapina, Scholes sabia onde e como colocar a bola.
Com o passar dos anos foi recuando estrategicamente a sua posição no terreno de jogo onde podia pensar e fazer jogar com mais tranquilidade. O seu magnifico pé direito permitiu-lhe por diversas vezes marcar golos decisivos do nada. Logrou um total de 102 golos em 466 jogos pelo Manchester United. Durante meia década teve invariavelmente o mesmo parceiro, o irlandês Roy Keane. O "carrot" (cenoura) colocava tranquilidade onde Keane semeava o pânico. Com o irlandês, Beckham e Giggs formou o meio-campo mais celebre da história do Manchester United. Um quarteto que se manteve unidos durante seis anos. As saídas de Keane e Beckham significaram uma mutação no estilo de jogo, mais directo, do clube. O individualismo de Cristiano Ronaldo e a chegada de jogadores com mais musculo mas menos critério com a bola, como foram Hargreaves, Carrick e Fletcher, foram isolando Scholes.
Com menos parceiros para associar-se, o número 18 foi perdendo protagonismo. O jogo do United deixou de trabalhar-se no miolo e apostou na velocidade do ataque, menos associativo do que a dupla Cole-Yorke, primeiro com van Nistelrooy e depois com Rooney. Ao seu médio criativo Ferguson passou a pedir mais passes a rasgar e o jogo de Scholes mutou-se uma vez mais e tornou-se, também ele, mais físico. Apesar de nunca ter sido um jogador excessivamente duro, o médio interpretou bem o papel e soube manter-se vivo na equipa principal apesar da idade. Da sua estreia na primeira equipa, aos 20 anos, já só havia longas lembranças. Como Ryan Giggs soube entender os novos tempos e o ritmo dos novos colegas, todos eles recrutados fora do espírito de Carrington Road que tinha apresentado ao mundo o seu talento bem como o de Nicky Butt, os irmãos Neville ou o carismático Beckham. Nas últimas épocas Scholes continuou a ser um dos jokers preferidos do treinador escocês mas o tempo de jogo foi diminuindo consideravelmente. Em Roma, na final de 2009, ficou evidente que Scholes não aguentava já o ritmo intenso da alta competição exigida pelo sangue jovem do Barcelona e desde então a retirada começou a sobrevoar a sua cabeça. Deixou até ao último jogo do ano, o jogo que mais queria ganhar, até fazer pública a sua decisão.
Quase silenciosamente, Paul Scholes recolheu as suas coisas e deixou Old Trafford sem fazer o mínimo de ruído. Com ele - e Gary Neville e muito proximamente Ryan Giggs - termina oficialmente a era mais espantosa dos Red Devils. Durante quase 20 anos o pequeno grande médio centro encarnou o espírito guerreiro da filosofia fergusoniana. Ao mesmo tempo demonstrou que no futebol inglês há muito mais classe e imaginação do que os preconceitos convidam a imaginar. Talvez olhe para o presente e veja Jack Whilshire como o seu herdeiro moral, o passar do testemunho geracional. Em Old Trafford sentirão, e muito, a sua falta. Não há no mundo do futebol um jogador da sua dimensão para tapar o vazio que deixa atrás um jogador que definiu, com os seus pés, muitos capítulos da história do futebol inglês.