Faltavam poucos segundos para acabar. Um livre envenenado de Danny Murphy encontrou a cabeça de Geli, perdido no meio de tantos jogadores. Não é assim que costumam acabar os contos de fadas mas foi assim que chegou a fim a final europeia mais empolgado da última década. Dez anos depois o Deportivo de Alavés milita na 2º B espanhola. Não é assim que costumam acabar os contos de fadas. Mas ninguém duvida que a história dos alaveses é digna de uma fábula futebolística.
A boa noticia para os adeptos do Alavés é que o pior parece ter passado.
A equipa de Vitória, capital do País Vasco, está no pote de clubes que irá lutar pela promoção à Liga Adelante, a segunda divisão do país vizinho. Há muito tempo que os alaveses andam perdidos nessa floresta de equipas caídas em desgraça. O seu caso tem uma explicação muito simples, nefastamente comum. Um pretenso milionário ucraniano, Dimitri Pitterman, comprou o clube e desfez o projecto em fanicos. Ficou apenas a memória do futebol de elite. E daquela noite em Dortmund. A noite de um 16 de Maio. Há dez anos atrás.
Numa equipa sem estrelas, que rapidamente seria desmembrada pelo poder de atracção do dinheiro fácil, ninguém esperava uma noite assim. Os jogadores do Alavés sabiam-se outsiders e apenas queriam dar a cara, responder ao orgulho dos adeptos que os acompanharam na sua caminhada europeia. O grande momento, a grande gesta tinha ficado para trás, numa fria noite de 22 de Fevereiro. O San Siro, cheio, testemunhou como o anónimo Alavés batia por 0-2 o poderoso Internazionale, uma semana depois de aguentar um 3-3 em casa. Jordi Cruyff, ao minuto 78, abriu a contagem que Tomic fechou 10 minutos depois para desespero de Marcello Lippi, Christian Vieri e companhia.
Mané, técnico modesto e com aquele espírito guerreiro de antes quebrar que torcer que moldou a escola vasca, nunca esperou a resposta dos seus jogadores depois do grande jogo do Inter em Vitória. Esta era uma equipa onde a estrela, pelo apelido, era Jordi Cruyff. Muitos jogadores espanhóis com largos anos de futebol secundário nas pernas formavam o esqueleto do conjunto. Num 5-3-2 que apostava profundamente no contragolpe, a segurança defensiva de Karmona e Tellez era fundamental. Os dois centrais, decisivos nos lances de bola parada, formavam o esqueleto. Mas era a velocidade do romeno Contra, a qualidade de passe de Desio e o instinto goleador de Javi Moreno que chamavam à atenção. Antes daquele duelo com o Internazionale a equipa tinha eliminado dois conjuntos noruegueses (Lillestrom e Rosenborg) e nas rondas seguintes bateu o igualmente modesto Rayo Vallecano e o Kaiserlautern alemão. Dois anos depois de ser promovido à Liga espanhola, o Aláves estava numa final europeia.
Olhando para trás, é fácil perceber o milagre do conjunto basco.
O espírito de equipa, a natureza dos rivais e a clara aposta do clube na prova da UEFA, o escaparate perfeito para fazer alguns milhões no defeso, funcionou como catalisador. Mané criou um forte sentido colectivo nos jogadores que saiam a jantar juntos com as famílias todas as semanas, comiam “pintxos” tradicionais em pleno balneário e que sentiam que partilhavam tanto as agruras como os elogios. A maioria da equipa tinha subido de divisão dois anos antes, incluindo o técnico. Os poucos que chegavam de forma ao Mendizorrozza integravam-se sem problemas e no final de contas foi esse espírito que permitiu ao clube dar a cara diante do poderoso Liverpool.
A equipa de Gerard Houllier chegava à sua primeira final pós-Heysel com uma das suas mais espantosas gerações. Tinham batido com autoridade o Barcelona, FC Porto e a AS Roma. Contavam com a estrela europeia de moda, Michael Owen, mas também Robbie Fowler, Steven Gerrard, Jamie Carragher, Danny Murphy, Gary MacAllister, Dietmar Hamman e Emile Heskey. Eram favoritos e sabiam-no. Mas não esperavam uma resistência de proporções épicas. Naquela tarde noite no Westfallenstadion a vitória do Liverpool ficou ofuscada pela exibição do modesto Deportivo. Os golos de Babbel, Gerrard, MacAllister, Owen encontravam sempre resposta. Ivan Alonso, Javi Moreno e Jordi Cruyff, no minuto 89, teimavam em amargar a festa dos reds. A tensão começava a tomar conta do banco do Liverpool e os alaveses acreditavam que um milagre, um milagre futebolístico, estava prestes a tornar-se realidade. A três minutos do fim o conto de fadas acabou na cabeça de Geli, nesse desvio para as redes de Herrera e nesse desalento que dura há dez anos. O Alavés esteve perto de fazer história. Sem entender muito bem como, acabou realmente por fazê-la, à sua maneira.
Depois dessa noite épica o mundo nunca mais se esqueceu dos vitorianos. Mas a sorte abandonou o Deportivo com aquele cabeceamento. Dois anos depois o conjunto foi despromovido à 2º Divisão. Voltaria no ano seguinte mas a gestão criminal do ucraniano Pitterman levou a instituição à falência e ao calabouço da 3º Divisão. A pouco e pouco o modesto clube começa a erguer-se. Mas faça o que fizer, sempre que o nome apareça numa noticia em qualquer recanto do mundo, a única imagem que nos saltará à cabeça é a dessa noite onde o futebol foi mais futebol do que nunca e em que ficou claro que os contos de fadas às vezes não acabam como queremos. Mas nunca deixam de ser mágicos.