Um dia, numa tertúlia organizada pelos Cahiers du Cinema, o então critico Jean-Luc Godard surpreendeu a mesa afirmando que o "travelling é uma questão de moral". Uma frase nuclear para entender a filosofia do movimento Nouvelle Vague, essa sensação de superioridade moral que Godard sentia que acompanha o seu trabalho e os dos restantes elementos do movimento. O futebol contemporâneo podia perfeitamente reunir-se à mesa e ouvir algo similar. "A posse de bola é uma questão de moral"! Em Barcelona tentam vender essa superioridade intelectual mas o futebol está repleto de muitas morais...
Há uma histeria colectiva no ar. Irrespirável por certo.
Talvez o mesmo grito surdo que tinha rasgado os ouvidos de tantos no passado. O futebol está repleto de espartanos. De bárbaros. De egípcios preguiçosos. Mas há só uma Atenas. Uma reluzente capital da razão, do conhecimento, da verdade absoluta. Barcelona quer ser a Atenas do futebol mas para sê-lo antes tem de convencer o mundo que todos somos bárbaros, espartanos, persas, egípcios e ignorantes. E que devemos contemplar e adorar a luz da razão sem queixume. Os ensinamentos de Sócrates, Platão, Aristóteles são hoje as palavras de Cruyff, Xavi ou Rexach. Claro que Guardiola, nisto, não é como Temistocles, arrogante até ao fim.
Essa histeria que Can Barça propaga ganhou adeptos na imprensa. O jogo bonito, o tiki-taka inventado por um cronista espanhol já falecido, que a morte outorga esse sentido poético às coisas, parece que irrompeu do nada nas pernas dos culés. E que se tornou no seu producto exclusivo. Ninguém consegue entender a verdade a não ser eles da mesma forma que o champagne não é champagne senão cava. Alguns estão lá perto. Arsenal, Dortmund, Villareal...mas mesmo estes, em confrontos directos, são indignos da verdadeira luz. Ouvir hoje Xavi Hernandez, talvez o melhor jogador espanhol da história, é algo profundamente comovedor. A roçar o ridículo. O centro-campista que pauta o jogo da escola blaugrana quer emergir como o arauto dessa verdade absoluta e impoluta. Depois de cada jogo sobe ao púlpito e discursa com a fleuma de um orador ciceriano. Fala dos indignos, das tácticas violentas e desproporcionadas, da ignorância e fraqueza humana e intelectual do rival e da superioridade moral de uma ideia de que só ele, e os que são como ele, podem falar com total propriedade. É fácil ouvir os seus sequazes com o mesmo discurso, mesmo os mais traquinas Alves, Valdés e Busquets, que passam tanto tempo nos palcos dos anfiteatros atenienses, perdão, barceloneses, que ganham dotes interpretativos especiais. Essa mensagem ganha eco com a imprensa, sempre com sede de semi-deuses, e do público que em geral come o que lhe dizem para comer e não protesta. Não pensa. E pior de tudo, não tem memória. Cruyff fala na sua posse de bola como Godard falava dos seus travellings. Com ele a câmara era uma arma. Com Cruyff a bola também. A Nouvelle Vague resultou curiosa, teve um ligeiro sucesso comercial e depois matou-se a ela mesma com uma série de sofríveis filmes que terminaram com o enterro de uma ideia. Mas a intelegentzia, a critica, continuou a adorá-la e aos seus herdeiros. Em Barcelona logrou-se o mesmo. Por muito mal que seja a performance ela será adorada porque assim o diz o senhor. Ou a razão iluminada, que por aqueles lados acaba por ser o mesmo.
Esses atenienses, como os do passado, estão de tal forma isolados que vivem numa concha, alheios ao resto do Mundo.
Talvez, no meio de tudo isto, Guardiola seja aquele que melhor percebe esta realidade. Afinal, ao contrário dos seus, ele correu mundo e ouviu antes de agir. Ouviu Bielsa, ouviu Capello, ouviu Sacchi, ouviu Van Gaal, ouviu Ferguson, ouviu..pasme-se, Mourinho. E percebeu que como na vida também o futebol tem muitas morais. E nenhuma é superior à outra. A moral da bola, a moral do espaço, a moral do golpe, a moral do homem, a moral da defesa, a moral de... Um sem fim de narrativas com o seu passado, presente e futuro. O futebol inglês que dominou o futebol europeu durante tantos anos nunca precisou da moral de Cruyff para atingir o brilhantismo. A mágica geração italiana dos princípios dos 60 e mais tarde, do final dos anos 80 e princípios da década seguinte fez da posse de bola algo supérfluo se o espaço era ocupado devidamente. E essa sua moral também, hellas, triunfou. Talvez Cruyff se lembre dessa longa notte em...imagine-se, Atenas. Esses 4 golos sofridos foram em si uma lição de moral. Há travellings que têm de parar em algum momento.
Falava Godard ao ver Hiroshima, Mon Amour, essa bela obra inaugural da filmografia de Alain Resnais. Podia falar Cruyff do último Real Madrid vs Barcelona que hoje à noite se repete, pela segunda vez em quatro tentativas de evangelização. Porque, não nos enganemos. O Barça já não joga futebol: evangeliza. Educa o futuro. Quando Messi chuta a bola contra os adeptos rivais, ri e depois muda por completo a expressão facial, está a evangelizar. A fazer com que o Mundo acredite que o seu semi-Deus actual (como já foram Ronaldinho, Rivaldo, Figo, Ronaldo, Romário...todos não-catalães, todos mercenários da nova Atenas) é incapaz de cometer tal acto. É tudo um engano, tudo um erro de percepção. O "Messias" caminha sobre as águas mas nunca terá tanta humanidade em si para perder a cabeça como, digamos, um falso Ronaldo. E para calar bocas, as paredes dissolvem-se, o discurso muda e começamos a ouvir o chavão, sempre o mesmo eterno chavão. O de melhor equipa de todos os tempos.
Será que alguém nas redações realmente perdeu todo o seu tempo a ver todas as equipas da história? Será que uma equipa em actividade pode comparar-se a projectos fechados e focalizados no seu próprio tempo e espaço. O Liverpool do final dos anos 70 não foi também a melhor equipa de todos os tempos? O Real Madrid do final dos 50? O AC Milan de Sacchi? O Inter de Herrera? O Manchester de Busby ou o de Ferguson valem? Lá Maquina do River? O Ajax de Michels?E as selecções da Hungria, Austria, Brasil, Alemanha, Uruguai, Argentina, França, Holanda? Que fazer com todas essas equipas que nasceram, cresceram, morreram e tudo sem evangelizar. Eram espartanos, bárbaros, egípcios ou persas? Não nos deixam saber.
Falamos de uma equipa cujos feitos em titulos se reduzem a conceitos básicos do futebol contemporâneo, feitos que nem sequer destoam do seu historial particular ou do país em geral. Falamos de um estilo de jogo que também não inventou nada. O Dream Team de Cruyff já tinha aplicado o modelo de rondo central. O Milan de Sacchi já tinha instrumentalizado o poder da pressão defensiva. E Messi não inventou a posição de falso-avançado. Foi um tal Hidegkuti, em Wembley, num mitico Inglaterra-Hungria. Mas não digam a ninguém, serão queimados como hereges.
Ao poderoso Barcelona cabe hoje mais um duelo com os violentos espartanos. Uma equipa que não sabe jogar futebol porque não bascula lateralmente durante hora e meia à procura que o rival se canse, adormeça como a ler um livro de Proust, e abra espaços na defesa. Não, ai dos espartanos que gostam dos quatro toques antes do grito de guerra. Os espartanos italianos e ingleses migraram para Madrid e plantam cara à inigualável Atenas. Por essa Europa fora os demais bárbaros, persas e egípcios esperam a sua hora. Também eles são evangelizados à distância com essa filosofia do toque curto, do futebol lateral, do teatro dos seus interpretes e da eficácia de uma equipa que precisa de fazer quatro vezes mais passes para chegar ao mesmo objectivo que o rival: o golo, afinal o que realmente importa nisto do futebol. Mas não digam a ninguém, não contrariem a palavra do senhor. Sentem-se no sofá e recebam o evangelho blaugrana, sintam-se inferiores porque a vossa equipa não tem a capacidade intelectual de João César Monteiro. Afinal a moral deles, dos que têm a luz, é essa. Fazer sentir todos os outros nas trevas. Até que surgem flamantes dispostos a iluminar o mundo e resgatá-los desses espartanos e desse passado vergonhoso de um desporto que ensinou Camus a ser Homem.