Quando em 1965 os Beatles apresentaram ao mundo o album Revolver, a história da música moderna nunca mais voltou a ser o mesma. O conjunto de Liverpool tinha encontrado a sua alma e depois de vários albuns que soavam ao mesmo que se podia ouvir em qualquer sitio arrancaram para uma série de trabalhos inovadores e originais. Até ao fim. O seu nome ficou para a posteridade. Os das (muitas) restantes bandas não. Ao saber reciclar-se e inovar, os Beatles entenderam como se contorna a neurose da vitória, uma doença que abala fortemente o mundo do futebol. Os projectos desportivos têm vida curta e não sabem como encontrar a sua alma. Apagam e começam do zero. E a neurose vence. E a imortalidade vai-se.
O grande Ajax dos anos 70, aquele que deu azo ao conceito de Futebol Total, nasceu numa tarde fria de 1966. Dezembro para ser mais preciso.
O então modestissimo clube holandês, profissionalizado há um par de anos, derrotou o Liverpool inglês por 5-1. Com quatro golos na primeira parte. O público não conseguia acreditar. Bill Shankly também não. A equipa foi eliminada pelo modesto Dukla de Praga na eliminatória seguinte. E só três anos depois chegaria à sua primeira final (perdida por 4-1 ante o AC Milan). E só cinco venceria a primeira de três consecutivas. Durante esse periodo Rinus Michels, que herdou a mentalidade ofensiva de Vic Buckingham e uma fornada de jogadores maravilhosos capitaneados por Johan Cruyff, foi-se reinventando. Uns anos foi a defesa, outros o ataque, até que chegou ao conceito Total. Um projecto que tardou cinco anos até funcionar a todos os niveis. Uma eternidade para o futebol de hoje que, como todos, quer tudo já. O imediatismo tomou conta da sociedade e transformou o desporto num paciente neurótico crónico. Vencer deixou de ser o consagrar de uma ideologia, de uma escola, de um grupo. Passou a ser uma verdadeira neurose médica.
Como aquele conjunto ajaccied, também o Liverpool de Shankly começou a desenhar-se na Second Division, quando o escocês chegou e impôs o seu método e abriu passo ao Boot Room. Daria ao clube de Merseyside 20 anos de glória, mas Shankly nunca venceu uma Taça dos Campeões Europeus. Tratou, simplesmente, de preparar o caminho. Hoje a nenhum técnico lhe é permitido tanto. Os clubes, salvo raras excepções, pensam que a vitória é a única justificação. Esquecem-se de que há três ou quatro provas a disputar e muitos que as disputam. Os vencedores são a excepção, não a norma. E nunca poderá haver mais excepções do que normas. Pena ninguém se dar conta.
O Real Madrid era o clube de moda nos anos 50 quando a televisão resgatou o futebol do mundo da rádio. As gerações de então cresceram a admirar os "merengues" e clubes de moda nos anos 70 como Leeds e Monchenlagbach, mudaram o equipamento para o branco impoluto para reencarnar o espirito do clube de Madrid. Mas hoje o histórico vencedor de 9 Champions League vive num estado frenético e catatónico de dificil cura. A cada ano que passa sem titulos a histeria toma controlo da Castellana. O Real Madrid não aprendeu nunca a perder. Não aprendeu nunca a ter paciência. A confiar no tempo. Treinadores, presidentes, jogadores vão-se sucedendo em catadupa sem deixar uma marca de futuro impressa. Milhões e milhões de euros depois, os directivos do clube branco esquecem-se do mais importante: que só pode ganhar um e nunca é o mesmo quem ganha. Alguns, simplesmente, vivem num planeta à parte.
Se o Real Madrid é a epitome do futebol actual, desesperado pelo agora, incapaz de pensar no amanhã, o Barcelona tornou-se no exemplo perfeito da excepção. Do clube que ultrapassou a sua neurose pela vitória. E que assim conseguiu, finalmente, começar a ganhar. Olhar para o palmarés do Barça até 1990 dá pena. Pequeno demais para um clube tão importante. O vitimismo catalão criou amigos em todo o Mundo e dessa solidariedade social viveram os blaugranas até chegar Cruyff. O holandês soube unir o que de melhor tinha a escola holandesa (o pressing, o futebol de toque, as transições) e a escola catalã (a raça, o querer) e moldou a primeira equipa da cidade Condal a ter um sucesso real. Mas precisou de anos de derrotas para lá chegar. O Pep Team começou a moldar-se com a primeira derrota de Cruyff no banco do Barcelona. Ou, se quisermos, entre a tristeza da final perdida de Sevilla contra o Steaua (o vitimismo blaugrana no seu melhor) e aquela tarde de glória do Ajax em 1966. Os processos maduraram, a vicória deixou de ser tão importante. E o tempo ganhou o seu espaço. Hoje o Barcelona, mais do que um projecto consolidado, é um projecto filho de outros projectos consolidados. Preparado para perder, sabendo como ganhar. Todo o contrário do seu eterno rival que nunca soube lidar com a neurose da vitória.
Se o Barça é a excepção (como o Arsenal de Wenger ou o Manchester de Ferguson), a regra continua a ser a monotona postura das direcções que acreditam constantemente no começar do zero. O Sporting de Braga, a viver a sua era dourada, ameaça cair nesse erro deixando sair Domingos Paciência, um técnico que aproveitou a boa onda do projecto desportivo do clube (bem gerido desde a chegada de Salvador) para levá-lo a outro patamar. Recomeçar do nada apenas porque o sucesso interno não se reproduziu é o maior erro que pode cometer o conjunto bracarense. O Braga deve entender que o resultado de 2010 é a excepção. Para tornar-se norma tem de se tornar excepção mais vezes. E para ser excepção tem de haver anos onde a norma se imponha. Mais claro impossível.
O Benfica, por outro lado, tem uma oportunidade de ouro de seguir um modelo que nunca funcionou na Luz, outro clube nervoso, como o Real Madrid, que lida mal com as derrotas mas pior com as vitórias. Quando a depressão da derrota é substituida pela euforia das vitórias, e dos titulos, o clube perde o norte. E esquece-se da realidade em que convive. Deixar partir Jesus, por muito polémico que o técnico possa ser, será sempre um erro porque o amadorense tem a vantagem de ter o tempo do seu lado para moldar um projecto de longo prazo. Mas para isso os adeptos e directivos têm de aprender a lidar tanto com o medo de perder como com a neurose de ganhar. Nenhum clube vence tudo todos os anos por muita demagogia que imprensa, directivos e equipas técnicas tentem vender. Quando superarem essa fobia, estarão no caminho certo, o mesmo que percorre o FC Porto há largos anos. O clube das Antas escolheu o presidente como figura central, em lugar do técnico, mas aprendeu a conviver com as vitórias. Talvez por isso nos anos em que elas, com naturalidade, não aparecem, nunca há tanto drama nem guerra civil entre os seus. Apenas a compreensão de que os ciclos são feitos de altos e baixos e não de circulos perfeitos. Uma licção que mais ninguém em Portugal parece ter aprendido e que será fundamental para que o futebol português possa crescer.
Olhar para os projectos falhados de Real Madrid, SL Benfica, SC Braga, ou qualquer outro clube contemporâneo, é como seguir uma das muitas bandas que, desde os anos 60, se repetem nas listas de vendas. Um êxito pontual, aqui e ali, e muitos singles atirados directamente para o esquecimento. A norma diz-nos que assim será sempre. Os Beatles tornaram-se únicos porque souberam ser iguais a si próprios e mesmo nos momentos de maior fracasso pareceram estar no controlo da situação. Yellow Submarine não está à altura de Revolver, mas abriu passo a Sg Peppers Lonely Hearts Club Band ou The Beatles, as suas obras-primas. Da mesma forma que o Barcelona de Antic, por exemplo, é um oásis num projecto que conta com Cruyff, Robson, van Gaal, Rijkaard e Guardiola no seu best of. Bandas históricas, como clubes com projectos de futuro, sempre souberam lidar com a neurose da vitória. Eles são a excepção. Será que algum dia poderão tornar-se na norma?